Podemos dizer que a mídia é a principal janela interpretativa da vida contemporânea. Por ela conhecemos o mundo através dos desenhos, filmes, seriados, jornalismo, talk shows, entre outros produtos produzidos para atrair o maior número de pessoas (consumidores) possível e gerar lucros. É por ela que construímos uma ideia de como são os povos do outro lado do mundo, de como se comportam cidadãos de diversas culturas, classes e etnias. Dessa forma, podemos também absorver seus valores, sua forma de ver o mundo, seu ethos liberalista ou conservador. Ou seja, tomar a interpretação da mídia como verdade e, assim, construir a nossa visão política.
Antes de continuar, faço uma ressalva. Este texto não trata de uma maneira de mostrar que existe uma manipulação poderosa e irresistível por trás das grandes produções midiáticas de tal forma que a elite – com total domínio dos meios – controle o pensamento das massas de forma irrepreensível. Não, como se sabe, a teoria da manipulação pura e simples é uma argumentação ultrapassada.
Trata-se, portanto, de fazer uma leitura crítica e mostrar que todos os produtos da mídia carregam pontos de vista culturais e sociais específicos que nos ajudam na construção do entendimento da realidade. Ou seja, é através da difusão das ‘representações sociais e culturais’ veiculadas na mídia, que certos valores são perpetuados, rejeitados ou transformados.
Para entender melhor o que são essas representações, apresento uma pequena análise de três produtos midiáticos atuais: o programa CQC (transmitido pela Band), a novela Caminho das Índias (Rede Globo) e o jornalismo da Folha de S.Paulo.
Custe o Que Custar
Em menos de um ano, o CQC (Custe o que Custar) ganhou notoriedade e forte audiência no país. As representações contidas no produto são variadas. Há representações ideológicas positivas e outras negativas. No lado positivo, pode-se argumentar que o programa apresenta jovens honestos, extremamente insatisfeitos com a corrupção na política e na sociedade, chegando a sofrer ameaças de censura. Assim, pode-se dizer que sua representação serve como uma espécie de ‘incentivo’ aos jovens para tomar consciência política cidadã; exigir conduta ética de seus representantes e combater a corrupção.
Já do lado negativo, pode-se dizer que o programa possui o seguinte ‘eu ideológico’: é totalmente formado por homens, brancos e representantes da classe média e alta paulista. Diversas piadas machistas são feitas durante o programa e, não raro, sexistas, colocando a mulher como simples objeto sexual. Não é à toa que o programa já foi processado diversas vezes. Um exemplo que ficou notório foi o caso das integrantes do grupo musical Sexy Dolls, que foram chamadas de prostitutas pelo apresentador Marcelo Tas. O lado machista do programa também é reforçado pelas piadas e brincadeiras satirizando os homossexuais, com ironias sobre comportamentos que seriam ‘típicos’ de um gay, entre os próprios integrantes, às vezes, como se fossem vergonhosos. Assim, sua representação ideológica aponta para o homem branco heterossexual, honesto, machista, sem espaço claro para outras etnias.
Caminho das Índias
Produto cultural bem mais complexo, a novela envolve várias representações sociais e culturais bem mais diversas. Na verdade, seria necessário um livro para analisá-la corretamente à luz dos estudos culturais. Pode-se argumentar que o programa mostra como é errado e ignorante qualquer tipo de preconceito, assim como a exclusão social ao dramatizar a vida dos integrantes da casta indiana Dalits, considerados pó, e não filhos do deus supremo. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que a dramatização das castas indianas aponta, de maneira velada, contra o radicalismo religioso de alguns segmentos no Brasil, como no caso dos neopentecostais e até mesmo da Igreja Católica – contrária ao uso de métodos anticoncepcionais.
Ao mesmo tempo, é possível notar alguns traços conservadores. A novela reforça os laços familiares, principalmente quando compara os valores das famílias brasileiras com as da Índia. O que leva a uma reflexão da importância do respeito aos pais, à esposa e aos filhos. Assim, de maneira sutil, acaba fazendo uma crítica aos valores liberalistas culturais, ao mostrar que as conservadoras famílias indianas estariam sendo desmembradas justamente por uma onda liberal ocidental, tornando-as infelizes.
Essa visão, no geral, acaba retomando a posição conservadora patriarcal da família, onde o homem deve ser peça fundamental para guiá-la, no intuito de torná-la bem sucedida. Caso contrário, poderá ser um desastre. Fato reforçado pela imagem da família do personagem Zeca, onde o pai, Sérgio, não ‘controla’ os momentos impulsivos da esposa, nem coloca limites nos filhos. A falta de atitude paterna faz com que Zeca seja rebelde e arruaceiro.
A posição conservadora também é vista no personagem Raul (na ocasião, marido da Sílvia), que acabou pagando um alto preço por causa de seu adultério com a vilã Ivone. O que mostrou que pode ser extremamente arriscado e doloroso ao homem cometer adultério – não vale a pena. Já a vilã Ivone, uma das poucas mulheres independentes da trama, é mostrada como ambiciosa, criminosa, cínica e totalmente desprovida de moralidade, associando as mulheres solteiras e independentes a uma imagem misteriosa e pouco confiável.
Folha de S.Paulo
O jornalismo atual possui diversas teorias bem articuladas. Elas possibilitam análises esclarecedoras sobre o processo de produção de notícias. Uma delas, inserida no grupo que compõem as teorias construcionistas do jornalismo (newsmaking), é a Teoria Interacionista ou Teoria dos Definidores Primários. Tendo essa perspectiva em mente, vamos à pequena análise.
Todos sabemos que o jornal Folha de S.Paulo é voltado para os valores liberalistas. Portanto, sua representação social contribui para a construção de uma realidade que acredita na intervenção mínima do Estado na economia, na privatização, no liberalismo econômico e cultural. É extremamente cosmopolita e, historicamente, simpatizante dos partidos de direita.
As vozes sociais ouvidas na grande maioria das reportagens partem da subordinação às opiniões das fontes que têm posições institucionalizadas, também chamadas de definidores primários. Essas fontes definem o rumo de qualquer notícia. Como diz Nelson Traquina no livro Teorias do Jornalismo, ‘essa interpretação comanda a ação em todo o tratamento subseqüente e impõe os termos de referência que nortearão todas as futuras coberturas’.
Assim, quando a Folha de S.Paulo ouve algum ‘mega economista’ dizendo que o governo deve enxugar sua folha de pagamento, se posicionando contrariamente à grande criação de concursos públicos, parte de uma visão que defende os interesses da classe de empresarial hegemônica. Ela gera uma série de outras reportagens que partem da primeira visão liberalista. A representação interpretativa inicial, portanto, acaba saindo como uma verdade norteadora das reportagens seguintes, inclusive quando se ouve opiniões contrárias.
Prevalece sobressalente, portanto, a crença num mundo liberalista econômico e contrário ao crescimento do Estado. Recentemente, por exemplo, a Folha de S.Paulo defendeu, em editorial, o fechamento da TV Brasil, afirmando que a mesma é um claro sinal de desperdício do dinheiro público. De maneira bem clara, quis afirmar que a melhor saída será sempre a iniciativa privada.
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Jornalista e professor de História, Rio de Janeiro, RJ