‘Muitas pessoas já indicaram que a revolução do computador é maior que a da roda em seu poder de remodelar a visão humana e sua organização. Enquanto a roda é uma extensão do pé, o computador dá-nos o mundo onde a mão do homem jamais pôs o pé. (…) Assim como a roda é uma extensão do pé, o computador é uma extensão do nosso sistema nervoso, que só existe em virtude do retorno ou do circuito-sistema.’ (McLuhan, 1971, pg. 53)
O século 20 foi o século do nascimento do rádio, foi o século em que o rádio chegou ao auge e, também, o século de sua decadência. No século 20 o mundo descobriu o poder da radiodifusão com Orson Welles, com Adolf Hitler, com Hollywood. O rádio foi fundamental na história política do século, transmitiu, mais do que notícias, ideologias, medos, valores. Elegeu e sustentou presidentes. Aproximou o mundo através das redes, reuniu as pessoas diante de um aparelho na sala-de-estar, consolidou a idéia do ‘ao vivo’ ao transmitir os ataques da Segunda Guerra Mundial. Abriu caminhos para a televisão. O século 20, pode-se assim dizer, viu nascer a comunicação de massa, a ‘bala mágica’, a indústria cultural, a mentalidade índice-de-audiência, enquanto o século 21 já gesta a profundidade, a interatividade, a personalização, a especialização, a aldeia global.
A Era Digital, essa era dos bits, do intangível, uma era capaz de revolucionar um sistema secular como o bancário, uma mídia secular como a fotografia, promete transformar ainda no primeiro quarto do século 21 todos os conceitos aprendidos e estudados academicamente ao longo do século 20. Se Lasweel (apud HOHLFELDT, 2001) falava em um emissor, uma mensagem e um receptor como uma via de mão única, Negroponte (1996) fala em ‘puxar’ conteúdos, em cada indivíduo como emissor e receptor ao mesmo tempo. Se McLuhan fala que o meio é a mensagem, Negroponte (1996) afirma que ‘o meio não é mais a mensagem, e sim uma das formas que ela assume’.
Rádio deixa de ser apenas a transmissão de som por ondas eletromagnéticas e se transforma numa mídia em que predomina a voz. Pode até ser que o Rádio Digital venha a substituir o rádio via ondas eletromagnéticas, especialmente no caso das AMs, mas o rádio via ondas não será a única forma de se transmitir rádio, e já não o é. Os celulares, por exemplo, não serão receptores de Rádio Digital porque seria redundante: eles serão conectados à grande rede, chame-a de internet ou como quiser, e nela estarão disponíveis não só as rádios comerciais, educativas e públicas que têm seu prefixo no ‘mundo real’, mas também rádios de empresas, pessoas, organizações, clubes, enfim, rádios com ou sem qualidade, com ou sem rigor na apuração, com ou sem isenção, com ou sem jornalistas. Rádios pornôs, rádios suecas, rádios sobre golfe, rádios sobre bairros, condomínios, famílias. E todas elas concorrendo com as rádios informativas hoje conhecidas, que ainda existirão pelas antigas ondas eletromagnéticas, agora transmitidas e recebidas digitalmente.
Modelo e metáfora
Mas não vamos nos antecipar ao futuro, e sim continuar dando pinceladas sobre o presente. Numa época de mudanças tão rápidas, importa sabermos como a tecnologia do Rádio Digital é vista e em qual estágio de implantação está neste começo do terceiro ano do século 21. Até aqui pouco se escreve, pouco se registra nos órgãos oficiais e até pouco se discute sobre o Rádio Digital. Quase nada do ponto de vista da comunicação, um pouco mais do ponto de vista técnico, mais do ponto de vista econômico.
A Ultra-segmentação, a valorização do que é humano e criativo para contrastar com o que é racional e robótico, a aldeia global, a inteligência coletiva, o fácil acesso às ferramentas, a pluralidade exagerada de informação, tudo isso é mais importante do que a tecnologia em si do Rádio Digital, ou até mesmo da TV Digital. É uma mudança de paradigma que a Era Digital traz consigo. É a desmassificação da mídia de massa (TOFFLER, 1980). Não há mais espaço para grandes redes, para novelas assistidas por 70% das pessoas, para rádios que promovem ou destroem artistas, criam campeões de vendas literárias, senadores e até treinadores de futebol. E o jornalista terá de se perguntar qual o seu papel quando é o consumidor/ouvinte quem busca a informação, ou seja, quem escolhe não apenas o assunto como o viés ideológico e o formato da notícia.
Quando se diz que o mundo descobriu o poder da radiodifusão com Orson Welles, com Adolf Hitler e com Hollywood está-se falando do poder que os meios de comunicação social assumem numa ‘sociedade de massa’, na qual se caracterizam como emissor. Entre as teorias que analisam a comunicação nesse contexto estão a Teoria Hipodérmica e a Agenda Setting. O poder de atingir ou agendar a sociedade é proveniente do fato de que a mídia de massa empurra os conteúdos para seu público, escolhendo nas redações que fatos merecem ser notícia e com qual hierarquia. Apesar de a sociedade também influenciar nas decisões da mídia, é evidente que a mídia coloca os holofotes sobre determinados fatos, eventos ou decisões, relegando outros e, com isso, atribuindo importâncias num processo não muito claro, no qual o que vale é o que Bourdieu (1997) chama de mentalidade índice-de-audiência. É o veículo, e não o ouvinte, quem escolhe o que e quando transmitir, e é esta a maior crítica feita a mídia de massa.
Até aqui o rádio e a televisão, especialmente, têm funcionado dessa forma: decidindo pelo ouvinte ou telespectador o que é importante que ele assista, em qual horário, com qual duração e formato. Quem decidiu, por exemplo, que apenas os jogos do Brasil na Copa do Mundo devem ser transmitidos ao vivo? Quem decidiu que deve haver tanta notícia de Nova York e tão pouca de Tóquio ou de Lisboa? Agora imagine num contexto digital, tome a internet como modelo e metáfora. Como o aparelho de Rádio Digital pode arquivar, digamos, as últimas 24 horas de programação das suas quatro emissoras preferidas, é você quem vai escolher o que ouvir e no momento em que quiser ouvir. A maioria dos programas não precisa ser transmitida em tempo real, um dado que embora seja crucial para a Era Digital é amplamente ignorado. (NEGROPONTE, 1996)
Personalização
A ouvinte do futuro mencionada pelo texto da Canadian Association of Broadcasters (1995), por exemplo, carrega o boletim meteorológico na hora em que acorda, e não necessariamente às sete e quinze ou nove e vinte e cinco. Essa mudança tecnológica aparentemente simples numa Era Digital tira a ‘bala mágica’ da mão da mídia e a coloca nas mãos do ouvinte, subverte a noção da agenda setting e obriga os diretores de programação a pensar num ambiente completamente novo, em que o programa das quatro da manhã compete com o dele, antes o do ‘horário nobre’.
Se o ouvinte, nessa nova concepção de meio de comunicação, escolhe um programa para ouvir dentre uma lista de opções, é natural que ele tenha a opção de aprofundar determinado assunto. Por exemplo, num noticiário de hora cheia ele pode se interessar mais pelo tornado numa cidade do interior gaúcho – onde mora seu irmão – do que pela ameaça de um novo ataque terrorista na Europa ou pela queda do dólar. Essa capacidade que o rádio e a televisão assumem de agir mutuamente com seu público é a chamada interatividade, apontada como um novo conceito em comunicação. Alguns exemplos de interatividade seriam a possibilidade de ouvinte, telespectador ou internauta interferir no programa definindo assuntos, participando ao vivo de debates, escolhendo ângulos de câmeras e fazendo compras. (NUÑES, 2000)
E, além da interação entre o emissor e o receptor, há uma interação entre as mídias em si. Na Era Digital não se pode pensar o rádio como um aparelho isolado. O avanço de redes e conexões sem fio permitirá a todos os aparelhos eletrônicos interagirem entre si: ‘As máquinas precisam comunicar-se facilmente umas com as outras a fim de que possam servir melhor às pessoas’ (NEGROPONTE, 1996).
Pode uma emissora de rádio enviar, por exemplo, via texto, a cotação do iene naquela hora e o ouvinte enviar esta informação para sua planilha eletrônica do computador que dirá quanto, em reais, ele tem disponível para saque. Ou imagine um carro do futuro, com um mapa da cidade para que o motorista se guie. Este carro poderia receber do Rádio Digital as informações de onde há congestionamento, mudança recente de mão das pistas ou até buracos perigosos. Nesse cenário o rádio seria, numa era de convergência das mídias, pela sua agilidade e instantaneidade, a fonte da informação para as outras mídias e outros aparelhos.
Outro conceito novo para a mídia de massa, comum na internet e no marketing, é a personalização, um conceito da informática que pode ser resumido como a definição do conjunto de parâmetros para que atenda às exigências de um usuário específico. Por exemplo, o nome que a pessoa pode colocar no visor de seu celular. No caso dos aparelhos de rádio, a única personalização hoje disponível é a escolha das rádios para salvar no dial, mas com o Rádio Digital o usuário conhecerá inúmeras novas possibilidades.
Grupos específicos
Imagine, por exemplo, um jogo de futebol entre Grêmio e Inter. Suponha que a emissora transmita apenas em tecnologia digital, tendo assim a possibilidade de transmitir até cinco programas ao mesmo tempo, na mesma banda. Dessa forma ela pode transmitir o mesmo jogo com dois narradores diferentes, um gremista e um colorado. Ou, ainda, com um terceiro, neutro. Cabe ao ouvinte escolher, então, não apenas o conteúdo que ele quer receber, como a forma de receber esse conteúdo: ‘O digital autoriza a fabricação de mensagens, sua modificação e mesmo a interação com elas, átomo de informação por átomo de informação, bit por bit’. (LÉVY, 1999)
E apesar de Kussler (2003) e Sperotto (2003) demonstrarem ceticismo quanto à necessidade de o usuário utilizar do rádio algo além dos botões para ligar, sintonizar e aumentar o volume, citando como exemplo o pouco uso das agendas dos telefones celulares e do slow motion do videocassete, é preciso ficar atento às novas gerações, estas acostumadas com mídias que se adaptam a ela. Um bom teste é observar por 10 minutos uma roda de pré-adolescentes da classe média. Todos têm um celular na mão, mandam mensagens, jogam, dominam o aparelho e, por dominá-lo, têm facilidade e prazer em personalizar da agenda ao toque. Não é à toa que o mercado de telecomunicações oferece tantas opções de personalização. A confusão que estes estímulos adicionais podem causar inicialmente é ‘a experiência por que passa todo grupo e todo indivíduo quando busca ajustar-se ao ambiente sensorial único criado por uma nova tecnologia’. (MCLUHAN, 1971)
Nesse novo cenário para a comunicação de massa, em que o usuário escolhe o que ouvir, e não escolhe simplesmente qual emissora ouvir, deixariam de fazer tanto sentido os programas pasteurizados para audiências massivas, pois ‘quanto mais um jornal estende a sua difusão mais caminha para assuntos-ônibus que não levantam problemas’ (BOURDIEU, 1997).
Na verdade, esse é um fenômeno muito mais social do que comunicacional. Se a sociedade de massa – aliada à mídia de massa – se homogeneíza pela semelhança e identificação entre os indivíduos, a internet favorece a criação de grupos específicos, permite ao indivíduo encontrar seu grupo. Nesse cenário, em vez de uma multidão de pessoas apaixonadas por futebol assistindo à final do campeonato no canal aberto, temos grupos significativos de pessoas que praticam vôlei, tênis, tênis de mesa, surf, ginástica, punhobol, skate, corrida, automobilismo, aeromodelismo e infinitos outros esportes, cada um assistindo à competição mais importante do seu esporte numa transmissão via internet, por exemplo. Isso abre espaço para a criação de programas especializados, um pouco do que já acontece com a televisão a cabo. E, ao abrir espaço para uma programação mais diversa, mexe com um outro conceito da mídia de massa, a indústria cultural, nascida na Escola de Frankfurt.
O papel do jornalismo
De certo é que o Rádio Digital, isoladamente, pode não representar mais do que uma melhor qualidade de som e mais possibilidades aos mesmos grupos que hoje já fazem rádio. Principalmente porque o Brasil deve adotar um padrão tecnológico que transmita digital na mesma banda e no mesmo canal do analógico, o que limita muito as possibilidades dessa transmissão digital, resumindo-a a uma rádio de qualidade digital, e não Rádio Digital propriamente dito. Mas o crescimento da internet como meio de distribuição de conteúdo, de um aparelho de todas as mídias como meio de produção e recepção de conteúdo e o aperfeiçoamento das máquinas como produtoras de conteúdo devem ser uma revolução para o rádio ainda maior do que o próprio Rádio Digital.
Aliado a isso está o rompimento das fronteiras geográficas e políticas para a comunicação de massa. Assim como hoje se acessa qualquer site da internet de qualquer parte do mundo e se assiste à RAI italiana ou à TV5 francesa de qualquer televisão com Net, no Brasil, a convergência das mídias em direção à internet colocará qualquer emissora do mundo dentro da casa dos hoje fiéis ouvintes das rádios informativas, comunitárias e locais. É o globo terrestre reduzido à aldeia global (1969) de Marshall McLuhan, diminuído consideravelmente nas distâncias geográficas e no tempo em que elas ocorrem. (HOHLFELDT, 2001)
É preciso, enfim, que se avance no estudo do Rádio Digital enquanto tecnologia, mas para o jornalismo é imprescindível pensar no que esta mudança vai influenciar no rádio informativo como um todo. É preciso descobrir que finalidade conferir às novas (e velhas) ferramentas comunicacionais, se as competências dos seres humanos forem realmente reconhecidas como a fonte de todas as outras riquezas.
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Formando em Jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul