No início de fevereiro deste ano, logo após a inqualificável audiência pública do Serviço de Comunicação Digital (SCD) realizada no Rio de Janeiro, a nossa prezada jornalista Cristina de Luca se apressou a soltar um tijolaço no Globo elogiando as maravilhas da nova maracutaia da Anatel que, devido ao caráter de exaltação explícita, acabou motivando o artigo ‘O Globo – Festival de bobagens sobre telecomunicações’, publicado neste Observatório em 10/2/2004 [remissão abaixo].
Aparentemente admitindo que jogou muito confete pro alto, nossa intrépida jornalista, em reação meio incomum para o jornal O Globo, publicou novo artigo restabelecendo a verdade sobre o SCD, no qual reconhece ter sido mais uma vítima da baba-de-quiabo do superintendente de universalização da Anatel, Edmundo Matarazzo. Depois disso, a jornalista mudou-se de mala e cuia para o jornal O Dia, onde se tornou editora do caderno Internet & Tecnologia, e passou a acompanhar a maracutaia da Anatel com a prudência necessária de quem, a exemplo de seus colegas dos demais jornalões, não havia entendido patavina sobre a invenção do ‘novo’ serviço de telecomunicações, ficando sem emitir opiniões, tanto favoráveis, porque poderia estar mentindo a seus leitores, quanto desfavoráveis, porque poderia desagradar as telecoms, detentoras de verbas publicitárias praticamente infinitas que ajudam a pagar salários.
No entanto, sabe-se lá por que, logo após a Anatel ter publicado no dia 8 de outubro um press release anunciando que o presidente da agência, Pedro Ziller, havia encaminhado ao ministro Eunício ‘Sumidão’ de Oliveira exposição de motivos com a minuta do decreto presidencial que institui a exploração do SCD em regime público, Cristina não conseguiu mais conter a vocação para a ingenuidade e, no dia 13 de outubro, voltou a encher a bola do SCD no artigo ‘Revolução silenciosa’, no qual prestou novamente um desserviço aos leitores e ao país, defendendo a cascata inventada pela Anatel para emplacar o ‘novo’ serviço de telecom, dando ênfase especial ao pretexto de que a finalidade do SCD seria implantar internet nas escolas públicas de localidades remotas, começando por aquelas situadas no meio do nada, onde não existe luz elétrica para ligar os computadores nem merenda para encher o bucho das crianças.
Escapando das perguntas
Infelizmente, parece que a jornalista ainda não adquiriu intimidade suficiente em assuntos de telecom para informar corretamente, pois bastaria um pouquinho de conhecimento da Lei Geral das Telecomunicações (LGT) para perceber que uma minuta de decreto elaborada pela agência para posterior aprovação pelo presidente da República deveria ter sido obrigatoriamente colocada em consulta pública (artigos 40 e 42 da LGT), principalmente por este decreto envolver o destino de um fundo com 3 bilhões de reais.
Mesmo desconhecendo a lei, não se pode deixar passar em branco o fato de que os documentos enviados pela Anatel ao ministro não ficaram disponíveis no site da agência para que os cidadãos tomassem conhecimento deles. Afinal, quem não deve não teme, e aos jornalistas caberia encher o saco do Ziller até ele revelar o motivo de estar escondendo a rapadura, pois esta atitude é considerada, pela Lei 8.429 (a mesma que ferrou o Collor), ato de improbidade administrativa, que pode transformar nosso ilustre preposto da Telemar em ex-presidente da Anatel.
Uma outra falha, esta monstruosa, da jornalista foi ter deixado passar a seguinte declaração de Ziller:
Todos esses detalhes constarão do regulamento do serviço e do Plano Geral de Outorgas, que a Anatel já colocou em consulta pública. ‘Assim que o presidente Lula decretar a criação do SCD trataremos de divulgar o regulamento’, disse Ziller.
A jornalista esteve presente na audiência pública do SCD realizada no Rio e pôde testemunhar que o Matarazzo se esquivou descaradamente das perguntas referentes ao regulamento, assumindo o compromisso público de respondê-las posteriormente, no site da Anatel.
Estranha minuta
Portanto, até mesmo por dever de ofício, era obrigação perguntar ao Ziller o motivo de estar colocando a carroça na frente dos bois, ao enviar ao ministro a minuta de um decreto propondo a instituição do SCD para ser prestado em regime público, sem antes ter respondido às perguntas que ficaram pendentes nas audiências públicas (isto é uma violação ao Artigo 42 da LGT).
Por outro lado, qualquer vírgula que tenha sido alterada na minuta de regulamento do SCD colocada em consulta pública no início deste ano (Consulta 480), deveria ter sido acompanhada de justificativa formal da agência (artigo 40 da LGT), pois afinal foram enviadas mais de 800 críticas e colaborações à consulta, que também deveriam ter sido examinadas e respondidas no site da Anatel. Com isso, o regulamento-surpresa que Ziller quer divulgar depois que Lula assinar o decreto-surpresa só vai valer se estiver igualzinho à minuta apresentada na consulta 480 que, por sua vez, aparentemente tem tudo que o Ministério Público precisa para indiciar seus autores em crime de falsidade ideológica.
Um outro fato muito estranho reside na própria minuta do decreto inventado pela Anatel para instituir o SCD em regime público, pois de acordo com a LGT esta disposição deve ser procedida pelo Plano Geral de Outorgas (PGO), um decreto que define as regras de exploração dos serviços de telecom prestados em regime público – e é aí que mora o perigo, pois, de acordo com o PGO (Decreto 2.534), o único serviço de telecomunicações que pode ser prestado em regime público é a Telefonia Fixa Comutada (STFC) e, para emplacar o SCD, a Anatel teria de propor a alteração do próprio PGO, sem que isso tivesse sido submetido a consulta pública, o que daria uma confusão literalmente federal.
Completo desmonte
A esta altura do campeonato, praticamente todo mundo (inclusive Ziller e sua patota) já sabe que da forma esquisitona e repleta de irregularidades como foi concebido pela Anatel, o SCD só vai ver a cor da grana do Fust se der um tilt geral nos ministros do TCU, o que transforma todo aquele papo-furado de colocar internet nas escolas em puro pretexto para evitar a criação de uma modalidade do Serviço de Comunicação Multimídia (SCM) para ser prestada em regime público. Com isso, resta apenas descobrir o motivo que está levando nossos honrados doutores a esculhambarem a LGT na cara de todo mundo.
Uma boa explicação poderia ser essa: se a Anatel for obrigada a reconhecer que os serviços de rede internet enquadram-se perfeitamente na definição de comunicação de dados estabelecida pelo Artigo 69 da LGT, isto significaria que eles deveriam ser prestados pelos autorizatários do SCM, e não pelas concessionárias de telefonia, devido à proibição explícita existente no artigo 86 da LGT.
O resultado seria um completo desmonte de todo um esquemão, que teve inicio em 1995, com a falecida Norma 004/95, que inventou um artifício para forçar que as conexões internet discadas fossem completadas nas redes de telefonia, e não na rede de comunicação de dados da Embratel, obrigando que os usuários domésticos pagassem tarifas de telefonia pública pela utilização de serviços de comunicação de dados, prática imoral que sobrevive até hoje.
Para evitar a ‘tragédia’
Só com a internet discada, as concessionárias perderiam cerca de 15 milhões de usuários que deixariam de pagar pulsos e muitos deles, com certeza, recorreriam aos tribunais pedindo de volta a grana paga indevidamente. Se juntarmos a este universo os usuários de banda larga e as empresas que contratam links de grande capacidade, torna-se impossível avaliar o tamanho do estrago.
Ironicamente, as concessionárias não poderiam recorrer à habitual choradeira da ameaça ao equilíbrio econômico-financeiro porque os serviços de comunicação de dados são prestados exclusivamente em regime privado, sujeitando as empresas aos riscos inerentes ao negócio, ou seja, o problema seria único e exclusivo delas, e o governo não teria nada com isso.
No entanto, talvez até para evitar esta tragédia, o governo Lula tem colaborado bastante com a Anatel e facilitado as coisas para emplacar o SCD. Por exemplo, derrubando o antigo presidente da agência (Luís Schymura), que votou contra a invenção do serviço, nomeando para o cargo Pedro Ziller, funcionário aposentado da Telemar, assim como nomeou Aristóteles dos Santos, ex-colega de Telemig e ex-colega de sindicato de Ziller, no cargo de ouvidor, para fazer as apreciações críticas sobre a atuação da agência, que são encaminhadas ao Conselho Diretor e ao Conselho Consultivo da agência, ao Ministério das Comunicações, a outros órgãos do Poder Executivo e ao Congresso Nacional.
Outra grafia
Pena não podermos mais contar com o antigo ouvidor, Fernando Fagundes, cujo mandato não foi renovado por Lula, pois ele era integrante do Ministério Público e costumava pegar pesado em seus relatórios sobre as irregularidades praticadas pela agência contra os usuários. A trajetória do SCD poderia ser bem diferente caso ele tivesse permanecido na agência.
Quem der uma conferida no site da Anatel poderá constatar que o link para as informações sobre o ouvidor está desativado, assim como não conseguirá encontrar o nome de Aristóteles em lugar nenhum, como se ele simplesmente não tivesse sido nomeado para o cargo em junho deste ano.
Será que a ‘Revolução silenciosa’ da referida matéria tem alguma coisa a ver com o fato de a Anatel ter ficado surda? Ou isso é apenas uma outra grafia para ‘Mutreta na Encolha’?
Essa encrenca da Anatel bem que merecia uma CPI.
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