Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Ser e estar no mundo da Cultura Tecnológica

‘A Cultura Tecnológica é, hoje, nosso novo meio natural, nossa natureza domada e dominante’, comenta o pesquisador argentino Eduardo Vizer. Em entrevista à IHU On-Line, realizada por e-mail, ele fala sobre como a Cultura Tecnológica intervém em nossa vida social, em nossa compreensão quanto a ser e estar no mundo de hoje. ‘Toda tecnologia tem dois lados: um pode nos liberar, nos potencializar e nos projetar mais além de nossos limites físicos tradicionais. No outro lado, nos fazemos dependentes desses dispositivos. E mais ainda: as Tecnologias da Informação e Comunicação – TICs podem registrar e transformar qualquer ação humana em informação. E quem tem acesso a essa informação pode controlar ou incidir – direta ou indiretamente – sobre nossas ações e nossos movimentos’, analisou.

Eduardo Andrés Vizer é graduado em Sociologia pela Universidad de Buenos Aires (UBA) com especialização em Teorias da Comunicação Linguística e Semiologia pelo Instituto Di Tella e em Psicodrama Terapêutico e Pedagógico Grupal pela Associação Argentina de Psicodrama e Psicologia de Grupo. É doutor em Sociologia pela Universidade de Belgrano (Argentina). Realizou pós-doutorado pela Universidade de Bonn (Alemanha), University of Massachusetts (EUA) e Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Atualmente, é professor na UBA e na Universidade Federal da Integração Latino-Americana. É autor de A trama (in) visível da vida social: comunicação, sentido e realidade (Porto Alegre: Sulina, 2011), Mídia e movimentos sociais: linguagens e coletivos em ação (São Paulo: Paulus, 2007), entre outros. Confira a entrevista.

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Como as ciências da comunicação podem servir de aporte à intervenção social?

Eduardo Vizer – A comunicação já é uma intervenção na vida social. Estamos permanentemente ‘intervindo’ nos contextos sociais. Porém, acredito que a pergunta é sobre uma intervenção ‘profissional’. Neste sentido, há várias metodologias e técnicas desenvolvidas pelos saberes comunicacionais.

Por exemplo, em minha disciplina de Comunicação Comunitária e Promoção Social na Universidade de Buenos Aires – UBA ‒ desenvolvemos a socioanálise como um método para pesquisar, diagnosticar problemas e intervir nas comunidades e instituições. A pesquisa-ação é um exemplo específico de intervenção da comunicação.

O senhor aponta que temos deixado de viver em ambientes naturais. Em que tipos de ambientes estamos hoje?

E.V. – Basta ver onde e como vivemos: os lugares em que vivemos, nossos bairros e cidades. Não vivemos mais ‘na’ natureza, mas ‘dentro das’ nossas culturas marcadas pela ciência, tecnologia, cálculos, dispositivos técnicos que controlam e organizam a infraestrutura física (material) de acordo com os centros e fluxos de energia e dispositivos tecnológicos (ou seja, uma cultura tecnológica).

O que acontece com nossas cidades e nossas vidas quando há cortes de energia e apagões? A humanidade tem cultivado e desenha constantemente a natureza e nossos entornos físicos, como faz um urbanista com as cidades, um arquiteto com os edifícios e o agricultor com a terra. Brasília é um exemplo perfeito: nos espaços verdes que existem é proibido construir. Esses espaços verdes são para exercitar a memória e apreciar culturalmente quem sobreviveu ao espaço natural anterior.

A Cultura Tecnológica atual é de controle, como Deleuze afirmava há 20 anos?

E.V. – A Cultura Tecnológica é, hoje, nosso novo meio natural, nossa natureza domada e dominante. A genialidade de MCLuhan foi a de conceber visionariamente esta nova cultura moldada como uma ecologia que associa uma infraestrutura hard (dispositivos eletrônicos e os fluxos de energia elétrica) com uma superestrutura soft: informação, percepção humana, as linguagens digitais, as projeções subjetivas associadas a redes e representações virtuais.

Toda tecnologia tem dois lados: um pode nos liberar, nos potencializar e nos projetar mais além de nossos limites físicos tradicionais. No outro lado, nos fazemos dependentes desses dispositivos. E mais ainda: as Tecnologias da Informação e Comunicação – TICs podem registrar e transformar qualquer ação humana em informação. E quem tem acesso a essa informação pode controlar ou incidir – direta ou indiretamente – sobre nossas ações e nossos movimentos.

É o caso das denúncias contra a telefonia móvel que registra nossos movimentos no espaço. Esses ‘mapas espaciais virtuais’ adquirem um enorme valor econômico. A informação obtida por esses meios pode ‘desenhar’ mapas espaciais que revelam nossos interesses e preferências de circulação e de consumo. Sustento que o valor econômico na nova economia surge mais dos processos de circulação do que da própria produção, como correspondeu à economia industrial. Por outro lado, vemos a proliferação das câmeras nas ruas e nos edifícios que registram tudo o que se passa desde um ponto fixo durante 24 horas por dias e certos celulares podem fazer isso a partir de um sujeito em movimento.

Como o senhor descreve esse ambiente tecnológico no qual estamos vivendo hoje?

E.V. – Em primeiro lugar, temos que reconhecer que há ao menos três níveis diferentes, talvez três etapas correspondentes a um processo universal. Primeiro, a maior parte da humanidade – ao menos no mundo pré-industrial – ainda vive em ambientes pré-tecnológicos, ainda que o rádio e a telefonia móvel estejam penetrando e modificando as formas de vida tradicionais.

Numa segunda instância, temos uma maioria que migra das cidades e passa a viver em ambientes tecnológicos correspondentes à era industrial. É a cultura dos meios de massa que paulatinamente cria padrões de modernização social e cultural: o cinema, a televisão, o telefone, etc. É o ambiente tecnológico da emissão que obriga o receptor a prestar atenção de forma fisicamente passiva, ainda que subjetivamente não seja percebido assim no ‘ambiente escuro’ de um cinema ou na intimidade da casa.

Por último, temos setores ainda minoritários que estão começando a viver em ambientes hipermidiatizados pelas TICs. Quando pensamos em rótulos como ‘Sociedade da Informação’ ou ‘do Conhecimento’, estamos apontando para esses setores ‘de ponta’ onde a digitalização tem se transformado na palavra mágica do ingresso de novas realidades que fundem o virtual com o real, e que, além disso, o realizam.

Como esse ambiente vai alterar os modos de ser e estar no mundo?

E.V. – Está é a pergunta de um milhão de dólares. O que sabemos é que as TICs são capazes de construir e redefinir nossas percepções sobre o tempo e o espaço. E sempre vivemos no tempo e no espaço, mas já não são naturais: são construídos por meios e dispositivos técnicos dos quais nos apropriamos para colocá-los a nosso serviço, ainda que, ao fazer isso, também estamos modificando nossas percepções, nossas ações, nossos modos de ver e estar no mundo.

Nossos modos de ‘estar’ no mundo irremediavelmente modificaram nossos modos de ‘ser’, já que se virtualiza a própria realidade (pensemos no exemplo do Avatar e, por outro lado, pensemos em como se redefine a proposição fenomenológica dos ‘mundos da vida’). Nossos mundos da vida passam a estar cada dia mais ‘midiatizados’ por dispositivos tecnológicos, pelo processamento da informação, pelos processos de percepção conformados pelo uso e pelos rituais de operação e manipulação dos dispositivos técnicos.

Quais são as ordens e as desordens presentes na trama social atual?

E.V. – Devemos pensar que as tramas, os vínculos sociais são somente um sistema ou domínio semiautônomo. Uma comunidade, um bairro, uma organização, estão inseridos dentro de tramas e relações sistêmicas: físicas, políticas, econômicas e culturais. De modo que as ideias de ordem e desordem são sumamente relativas. Associamos ‘ordem’ à organização, estabilidade, previsibilidade. E é precisamente a entrada em crise de todas essas ideias que nos leva a entender nossas realidades presentes no outro extremo do conceito de ordem: vivemos cada dia em meio de sistemas, contextos e processos marcados pela falta de ordem, de previsibilidade e de estabilidade.

A ordem econômica e financeira, a ordem política, a ordem geopolítica do pós-guerra estão sendo constantemente desafiadas por novas forças: desde os derivativos financeiros que multiplicam a forma virtual por quase 50 o movimento da economia real, às demandas das instituições democráticas mais participativas e o surgimento dos novos centros de poder mundial.

Tudo isto incide sobre a ‘ordem das tramas sociais’. A vida urbana com suas novas práticas e sociabilidades tendem a instalar a desordem na vida cotidiana como novas formas de lidar com o imprevisível (no trabalho, por exemplo). A desordem e a insegurança passam a ser o preço que pagamos por novas possibilidades e liberdade que temos ganhado. Para conviver com a desordem, precisamos gerar sentido, significados mentais, ideias e certos saberes que nos ajudem a gerar certa previsibilidade, certa estabilidade emocional. Se aplica perfeitamente ao princípio dos construtivistas radicais como Von Foerster ou Maturana: nos vemos na necessidade de gerar formas de ordem a partir da desordem. [Heinz von Foerster foi um cientista austríaco-americano que combinava física com filosofia. Juntamente com Warren McCulloch, Norbert Wiener, John von Neumann, Lawrence J. Fogel, Gregory Bateson, Humberto Maturana, Francisco Varela e outros, von Foerster foi um dos arquitetos da cibernética. Humberto Maturana é um neurobiologista chileno crítico do Realismo Matemático e criador da teoria da autopoiese e da Biologia do Conhecer, junto com Francisco Varela. Faz parte dos propositores do pensamento sistêmico e do construtivismo radical.]

Podemos dizer que os novos modos de comunicar transformaram a cidadania?

E.V. – Em meu livro A trama (in) visível da vida social: comunicação, sentido e realidade, abordo precisamente as questões de como se ‘instituem’ as redes, as relações e as práticas produtivas e as políticas (como a questão do poder), a apropriação (e o cultivo) dos espaços e dos tempos na vida cotidiana; como se constituem os vínculos e as representações sociais e culturais nas comunidades e as instituições.

Os modos de viver e comunicar, de cultivar espaços e lugares, de regular os tempos para as diferentes atividades, os modos de construir – e de se opor – ao poder constituído, a absoluta necessidade de estabelecer vínculos, de ser como aranhas numa teia (como mundo da vida). E como essa trama se constitui pela linguagem, pela ação, pelos rituais, pelos imaginários e pelas experiências vividas. As TICs vão aceleradamente estabelecendo-se como mediadoras entre e dentro das redes, entre os atores sociais e entre todas as instâncias mencionadas anteriormente.

Os novos modos de nos comunicarmos são também os novos modos de ‘ser e estar’ no mundo. O conceito de cidadão se refere, sobretudo, à dimensão política do ser e estar no mundo, ao modo de nos relacionarmos com o Estado e as novas formas de institucionalização dos coletivos sociais. Com o avanço da midiatização social, paulatinamente se vai aceitando a noção do e-Government, as exigências de transparência pública e novas formas institucionalizadas de participação cidadã. Mas não devemos esquecer que a comunicação pública é, sobretudo, um campo de luta de interesses e não um lugar bucólico de inocentes indivíduos que buscam dialogar simetricamente entre eles para chegar à verdade. Lamentavelmente, essa é uma visão ingênua e ‘habermasiana’ de constituição do público. O paradigma subjacente aos discursos ‘politicamente corretos’ de uma visão da democracia como um diálogo entre iguais esconde uma realidade muito mais ‘darwinista’ de constituição do público.