Hollywood tem se estranhado com as empresas de tecnologia do Vale do Silício. A associação que reúne os maiores estúdios de cinema dos EUA acusa os sites de busca, como o Google, de destacar sites de pirataria para download de filmes.
“Conseguiram convencer muita gente de que na internet tudo é de graça, o que prejudica os produtores de conteúdo. Nada é de graça”, disse à Folha Chris Dodd, 70, presidente da Motion Picture Association of America (MPAA), o poderoso lobby de Hollywood.
Senador democrata por 30 anos e há quatro à frente da MPAA, ele diz que a China, segundo mercado de cinema no mundo, é “concorrente e parceira” e que as cotas brasileiras para conteúdo nacional “são uma resposta falsa a um problema legítimo”.
“Em tempos de filmes em celulares e tablets, não adianta querer obrigar o consumidor a ver filmes. A indústria só cresce quando as pessoas querem mesmo ver.”
Dodd recebeu a Folha na sede da MPAA, a um quarteirão da Casa Branca. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
As empresas do Vale do Silício derrotaram Hollywood ao derrubar leis contra a pirataria na internet. No que Hollywood errou?
Chris Dodd – As empresas de internet usaram um argumento esperto, que funcionou com os jovens, dizendo que éramos contra a liberdade e que na internet tudo é de graça. Mas livros, filmes, jornais, música só existem com propriedade intelectual.
Nos EUA, na lei orgânica do século 18, quando rascunhávamos nossa Constituição, a proteção da propriedade intelectual foi incluída. Se você tiver uma ideia, será protegido e terá o direito de lucrar por um bom período.
Respeitamos inovadores. Esses garotos que criaram nas garagens a Microsoft e a Apple não teriam sobrevivido sob pirataria ou roubo.
Por que os sites de busca se recusam a retirar sites de download ilegal?
C.D. – Os sites de busca, como o Google, deveriam eliminar ou mandar para a página cinco ou seis os sites onde se pode baixar filmes e séries pirateados. Hoje, eles os colocam na primeira página! Por que não removem? O jornalista [americano, 1880-1956] H. L. Mencken dizia que “quando dizem que não é pelo dinheiro, sempre é pelo dinheiro”.
O modelo de negócios desses sites é você. Cada vez que busca algo, você está dando audiência para eles. Está dando suas informações, seus gostos e hábitos, e serão vendidos. Não se iluda, não é caridade. Eles vendem publicidade com os seus hábitos.
O sucesso do Netflix aponta uma saída para a comercialização de filmes?
C.D. – Esse debate amadureceu e estamos trabalhando com as empresas de tecnologia. Criamos um site (wheretowatch.com), que reúne mais de 400 sites para aquisição legal de filmes a um preço razoável. Estamos conversando com empresas de cartão de crédito e com agências de publicidade. Ainda há muito a ser feito.
Temos que educar as pessoas. Se um site distribui filmes pirateados de graça, ele vai ganhar dinheiro como? No Reino Unido, alguns desses sites estavam roubando dados dos cartões de crédito dos usuários. São criminosos.
O ato de ir ao cinema está ameaçado? Como o sr. vê esse negócio nos próximos anos?
C.D. – O cinema está crescendo no Camboja, Paquistão, Vietnã. Nem tudo envolverá o ato de ir ao cinema, muita gente vai ver filmes no celular, no tablet. Mas acho que a experiência de ir ao cinema não desaparecerá. Você pode ter cozinha, e ainda assim, frequentar bons restaurantes.
Você precisa de um bom produto, de uma boa história, de um cinema confortável e limpo, de preços razoáveis. Ir ao cinema ainda é mais acessível que ver um show de música ou uma competição esportiva mais disputada.
A China é o mercado que mais cresce no mundo, mas que só permite a estreia de 34 filmes estrangeiros por ano, contra 600 produções locais. Como é essa concorrência?
C.D. – Os chineses são concorrentes e parceiros ao mesmo tempo. Os chineses abrem 16 novas salas por dia. Eles faturavam US$ 120 milhões [cerca de R$ 368 milhões] por ano em 2005 com venda de ingressos de cinema. No ano passado, faturaram US$ 5 bilhões [cerca de R$ 15 bi]. Estão criando público. Estão fazendo filmes nacionais muito bons, com muita bilheteria. Os estúdios americanos já fazem coproduções lá.
Agora, claro que competimos. Competimos entre nós sem parar! Se colocar os chefes dos seis estúdios que bancam a MPAA nesta sala, eles se matam entre si [risos].
O Brasil criou cotas para filmes nacionais na TV a cabo e limitou o número de salas para um mesmo blockbuster em um multiplex.
C.D. – Fico dividido ao falar de cotas. Não se cria indústria doméstica forçando as pessoas a assistirem. Hoje, com a internet, você decide o que assiste. No final, o consumidor sempre vence.
É uma resposta falsa a um problema legítimo. Adoro que o Brasil se importe com o cinema e é politicamente atraente para os produtores terem reserva de mercado. Mas você só cresce se tiver filmes que as pessoas queiram ver.
A França conseguiu criar um grande mercado doméstico para os seus filmes.
C.D. – A França está certa, defende sua excepcionalidade cultural e investe no cinema. É um país que vê a potencialidade dessa arte e indústria.
A França promove seu cinema no exterior, a China faz um trabalho de criar audiência doméstica e de filmes para milhões. O cinema americano soube se vender no mundo. Se perguntarmos para os imigrantes que se mudam para cá, tenho certeza que muitos dirão que gostaram dos EUA pelas cenas do cinema. Os países devem saber contar sua história.
Como o cyber ataque à Sony Pictures mudou o comportamento de Hollywood?
C.D. – Todos na área de cinema estão mudando seus procedimentos. Os hackers roubaram mais informação do que todos os arquivos da Biblioteca do Congresso juntos.
Quando dizem a você que tal coisa é segura, não acredite: nada mais é. Você acorda e vê que seus e-mails foram espalhados. Os dias de “ninguém vai ler isso” acabaram. Eu falo com a minha secretária sobre muitas coisas que antes eu enviava por e-mail.
A única coisa que não vai mudar é a autocensura. Neste país podemos fazer filmes sobre qualquer assunto. Duvido que deixem de falar do [ditador norte-coreano] Kim Jong-un por receio.
O sr. foi durante muitos anos membro da Comissão de Relações Exteriores do Senado e esteve várias vezes no Brasil. Como vê essa mudança da política de Obama com Cuba?
C.D. – Ainda jovem, andei de carona na América do Sul e fiz passeios de barco na Amazônia. Um pouco como Che Guevara nos “Diários de Motocicleta”. Participei dos Peace Corps [agência humanitária americana] na América Central e falo espanhol com sotaque cubano.
Estou otimista com essa Cúpula das Américas. Obama fez a coisa certa. Há décadas tínhamos que reatar com Cuba, mas ninguém conseguia. Os EUA e a América Latina precisam se relacionar mais. É bom para os dois lados, que têm mercados enormes e com tanto potencial.
Nos últimos dois anos, foram aplicadas multas bilionárias contra bancos por negócios ilícitos com hipotecas. O sr. é coautor da lei que procura punir más práticas financeiras. Como vê sua implementação?
C.D. – Se você compra uma TV com problemas, você é defendido pela lei. Mas não se seu banco vende uma hipoteca podre. Precisávamos restaurar a confiança no sistema e proteger o consumidor.
Os contribuintes pagaram muito do seu bolso para resgatar esses bancos. É impossível evitar crises no futuro, mas não podemos deixar problemas menores passar em branco.
A lei é imperfeita. A direita acha que fomos muito longe, a esquerda queria mais. Para funcionar, deveríamos harmonizar leis semelhantes na Europa, na Ásia, no Brasil.
Bancos venderam hipotecas sem valor em um efeito dominó –26 milhões de pessoas perderam seus empregos e 6 milhões perderam suas casas nos EUA. Foi a maior crise em 80 anos. Não podemos fazer de conta que nada aconteceu.
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Raul Juste Lores, da Folha de S.Paulo, em Washington