Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sobre bandidos e bandidos

Não raro é preciso complementar com a escuta da comunidade a observação crítica do que aparece na imprensa. Três semanas atrás, em conversa com jovens dirigentes de uma instituição educativa na Baixada Fluminense, ouvimos uma declaração ao mesmo tempo estarrecedora e sintomática: o tráfico de drogas estaria voltando a ocupar a região em que está instalada a escola.

Até aí, tudo normal, considerando-se o estado de coisas no Rio de Janeiro. O singular, entretanto, é que as jovens atribuíam o retorno dos bandidos à saída de outros. Antes, o local era dominado por uma milícia (policiais, ex-policiais, bombeiros, matadores autônomos). Como alguns dos chefes do grupo se elegeram para o Executivo e o Legislativo municipais, além do fato de que outros foram recrutados para cargos administrativos, a milícia se esvaziou, dando novamente vez aos traficantes.

A pequena história joga luzes fortes sobre o fenômeno e os fatos que vêm ocupando as páginas da imprensa carioca há mais de uma semana. Primeiro, a prisão – e pronta soltura – de um deputado estadual, um ex-chefe de polícia, policiais da ativa, tudo isto acompanhado do levantamento de suspeitas sobre um ex-governador. Depois, o episódio dos jornalistas de O Dia, aprisionados e torturados por milicianos de uma favela do Rio. E mais: o relatório de Philip Alston para a ONU sobre execuções sumárias em que a organização policial é apontada como criminogênica.

Mafialização da vida pública

Alguém há de perguntar sobre qual a ligação destes fatos com a história da milícia e a resposta não poderá deixar de apontar para o fenômeno maior da mafialização da política, algo que há anos tem sido objeto de estudos acadêmicos e de entidades não-governamentais. Milícia ou tráfico, o ilegalismo é questão social de porte cada vez maior, na razão direta da ausência de Estado em áreas estruturalmente carentes.

É certo que os fatos trombeteiam a situação do Rio. Esta cidade, como bem se sabe, foi Capital da colônia portuguesa, Capital da Corte e Capital Federal, mas jamais conseguiu realmente capitalizar a modernidade democrática para os seus processos político-eleitorais, mesmo levando-se em conta o argumento da liquidação de lideranças políticas pelo regime militar. Há um consenso de analistas quanto à ‘curralização’ de bairros, subúrbios e municípios, consolidada pelas câmaras de vereadores, que hoje são portas abertas para os ilegalismos de toda ordem.

Mas o Rio de Janeiro sempre foi caixa de ressonância de fatos importantes para o resto do país. É uma constatação-clichê cuja reiteração aqui se justifica pela evidência de um novo estado de coisas com aparências epidêmicas. Epidemia (do grego epidemos) significa literalmente aquilo que incide diretamente sobre (epi) o povo (demos). As irradiações contagiosas, seja uma doença física, seja um comportamento ou uma situação, adequam-se ao termo.

Não se origina no Rio a violência que cresce exponencialmente em grande parte dos estados da Federação, mas as aparências epidêmicas do fenômeno têm muita semelhança com a realidade carioca: segregação territorial acoplada à falta de políticas habitacionais, déficit de serviços e equipamentos públicos essenciais e o flagelo do tráfico de drogas associado à corrupção dos aparelhos policiais. Em certos casos, o envolvimento de políticos e de outros tipos de autoridade configura o fenômeno da mafialização da vida pública.

Vínculo comunitário ausente

No que diz respeito à mídia, é preciso ressaltar que parte da imprensa escrita vem cumprindo o seu papel de alertar a sociedade para a gravidade do fenômeno. Evidentemente, isto se faz nos moldes tradicionais em que o jornalismo entende a sua tarefa, às vezes investigando, mas no geral à espera dos acontecimentos que possam ser ‘gritados’ como sinais de realidade. O Globo, por exemplo, procurou ser completo na cobertura das prisões feitas pela Polícia Federal no Rio.

Entretanto, do ponto de vista de uma inserção maior do sistema informativo no problema em questão (uma inserção que pode ser socialmente reclamada quando se considera o montante do PIB investido em mídia e o peso do discurso informativo na vida de cada um), há buracos enormes. Por exemplo, apesar dos avanços tecnológicos da televisão e das comunicações, continua ausente da relação social gerada pela grande mídia (meios de massa dirigidos pelo mercado) a vinculação comunitária, isto é, a vida e o sofrimento dos indivíduos, para além das ‘rupturas’ que habitualmente suscitam as notícias. É, de fato, duvidoso que as novas perspectivas ‘relacionais’ do ordenamento midiatizado apontem para um resgate do isolamento dos cidadãos historicamente desfavorecidos.

Escolhas chocantes

Mas também se fazem progressivamente ausentes as narrativas públicas que legitimavam apenas racionalmente, simbolicamente – por meio do direito e da política – a sociabilidade. Mesmo tecnologicamente relacionado, ou melhor ‘comutado’ no espaço das redes de comunicação, o indivíduo permanece sob a égide das abstrações do universalismo jurídico e da economia monetária, relacionando-se basicamente em função do consumo ou da produção, tendencialmente indiferente ao contexto sóciopolítico. As articulações técnicas das redes parecem confluir sistematicamente para o extravasamento emocional da mídia de entretenimento.

Sim, é certo que à primeira vista podem tratar-se de ordens diferentes de problemas: o imediato, da criminalidade em ascensão, e a problematização teórica da mídia na sociedade contemporânea. Mas já não dá mais para deixar de fora a mídia quando se analisa o abismo existencial entre a modernidade do consumo e a realidade sofrida das periferias urbanas, mistificadas pela ideologia mercantil e entregues a uma ‘cidadania’ dirigida por hordas ilegalistas.

É uma cidadania que começa a fazer escolhas como a das jovens educadoras mencionadas no início deste texto. Disseram-nos que, matador por matador, preferiam o membro da milícia que, pelo menos, não impunha toque de recolher. É chocante.

******

Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro