‘A tecnologia é essencial para o desenvolvimento de um país plural e democrático.’ Isso é o que defende o pesquisador canadense David Eaves, um dos principais expoentes do Open Data, movimento que defende a transparência nos dados públicos. Para ele, as democracias modernas, em especial aquelas mais jovens, como a do Brasil, só amadurecerão quando a tecnologia se tornar uma ferramenta ativa para a divulgação e democratização das informações governamentais e de interesse público.
Pós-graduado pela Universidade de Harvard e atualmente pesquisador do Centro de Estudos da Democracia, da Queen’s University, em Vancouver, no Canadá, Eaves defende que, do ponto de vista econômico e social, toda a sociedade pode se beneficiar da divulgação das informações públicas, o que para ele nada tem a ver com o vazamento de dados como o capitaneado pelo site WikiLeaks – que vem criando saias justas para boa parte dos governos ocidentais.
Antes de embarcar para Brasília para participar do Congresso Internacional Software Livre e Governo Eletrônica (Consei), promovido pela Escola de Administração Fazendária (Esaf) para debater os grandes problemas da governança eletrônica e que termina hoje, David conversou com o Correio. Defendeu a ideia de que o ativismo digital pode ‘salvar’ os governos democráticos do que ele chama de retorno das ‘políticas orientadas por ideologias distantes dos dados concretos’.
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Qual a razão de, mesmo com o desenvolvimento de ferramentas tecnológicas que possibilitam uma fácil e ampla divulgação das informações públicas, ainda ser tão difícil ter acesso a elas?
David Eaves – Há três respostas a essa pergunta. Muitos governos não compartilham dados porque não podem. Eles não sabem quais dados têm e suas informações estão trancadas em sistemas ultrapassados, que impedem o acesso público. Há ainda aqueles que não entendem a importância da divulgação, que são incapazes de entender como a tecnologia está mudando radicalmente não apenas a economia e a sociedade, mas a natureza do governo. No entanto, além dessas duas questões, existe uma barreira definitiva para a abertura dos dados. A principal razão para a falta de transparência é uma ideologia contrária a isso. Os governos veem no Open Data uma ameaça à sua legitimidade, quando na verdade se trata de uma maneira de reafirmá-la.
Isso quer dizer que os governos não divulgam suas informações porque não estão interessados?
D.E. – A maior transparência permitirá aos cidadãos analisar melhor o seu governo. Inevitavelmente, isso significa que as ineficiências, as injustiças e os outros problemas serão vistos pelos cidadãos e por organizações. Os governos abominam qualquer crítica, e um sistema que permitirá o surgimento de críticas vai experimentar alguma resistência. Há ainda uma razão mais obscura que explica por que alguns governos se opõem aos dados abertos. Acho que estamos no meio de um ressurgimento da política orientada por ideologias, e não por dados. No fim do século 19, com o surgimento das ciências físicas e sociais, as políticas passaram a ser elaboradas a partir de dados concretos. Hoje, experimentamos um movimento inverso. No Canadá, por exemplo, o governo aboliu o recenseamento completo. Sem informações sobre uma série de questões sociais importantes, é difícil criar – e, principalmente, criticar – uma série de políticas para os marginalizados.
Então, de que forma a tecnologia poderia contribuir para o amadurecimento de jovens democracias como a brasileira?
D.E. – Eu acho que a coisa mais importante que a tecnologia pode fazer para as jovens democracias é manter conversas políticas focadas nos dados. O que funciona? O que não funciona? Frequentemente, nas democracias (jovens e velhas) a conversa pode deslocar-se para valores baseados em questões ideológicas e distante dos dados concretos. Minha esperança é que a abertura dos dados públicos possa permitir a uma geração de eleitores e líderes manter seus olhos sobre o que é realmente importante – como tornar o governo mais eficaz – e evitar lutas devastadoras focadas na disputa ideológica entre as velhas noções de ‘certo’ e ‘errado’ que estão distantes da realidade moderna.
Neste sentido, como a internet 2.0 pode colaborar para uma sociedade mais transparente?
D.E. – A web é essencial para fornecer dados públicos, não só porque é um mecanismo pelo qual mais e mais pessoas têm acesso à informação, mas porque a internet é também o principal local onde os dados abertos são interpretados, transformados em ideias, serviços e visualizações mais facilmente compreensíveis pelas pessoas. A web permite que qualquer pessoa que usa dados abertos para criar um novo serviço e tenha alguma ideia brilhante, possa compartilhá-lo com o mundo. Sem a web, dados abertos seriam algo que interessa apenas a uma pequena elite, sem uma conexão profunda com a maior parte do público. Muitos especialistas defendem que os dados públicos sejam divulgados apenas para certos profissionais, como médicos, advogados e jornalistas. Vejo essa visão como bastante limitada. Em maior ou menor escala, as informações públicas interessam a toda a população.
Na prática, como isso acontece?
D.E. – Não faltam casos concretos. Tomemos por exemplo o escândalo de despesas do Parlamento do Reino Unido. Foi por meio da web que as pessoas puderam analisar os gastos dos deputados e também foi por meio dela que as histórias sobre o escândalo puderam ser lidas e divulgadas. Os recursos multimídias dessa plataforma foram o que permitiu a visualização dos problemas e fez as pessoas entenderem o tamanho do escândalo. Outro caso é o da Morningstar, uma empresa de fundos de pensão. Ele usa dados abertos de segurança dos EUA e da Comissão de Valores Mobiliários para avaliar o desempenho dos fundos de investimento. Isso afeta como milhões de norte-americanos vão investir suas economias para a aposentadoria. Esse uso é totalmente inesperado e é uma forma muito interessante de utilização dos dados públicos.
E do ponto de vista econômico? A disponibilização de dados públicos também é economicamente vantajosa?
D.E. – Existe uma enorme gama de grupos que podem se beneficiar desse tipo de ação. De ambientalistas, desenvolvedores de software e associações de bairro a grandes empresas. Veja o caso do Google. O Maps tem informações sobre o trânsito de centenas de cidades ao redor do mundo. Frequentemente, essas cidades compartilham suas planilhas de trânsito, num formato chamado GTSF. Com esses dados, empresas como o Google elaboram ferramentas de navegação. Centenas de milhões de pessoas agora podem planejar viagens em dezenas de idiomas. Se você vier a Vancouver, por exemplo, no site de planejamento local de trânsito não vai ser possível planejar uma viagem em português, mas usando o Google Maps você pode. Outro exemplo são as informações meteorológicas. No Canadá e nos EUA, todas essas informações são geradas por estações do governo, então o trabalho das empresas é traduzir isso para uma linguagem mais próxima do cidadão. Acredita-se que esses sistemas movam uma indústria de mais de US$ 2 bilhões.
A geração Y está chegando ao mercado de trabalho e aos cargos políticos. Esses jovens poderiam usar sua relação mais íntima com a tecnologia para dar mais transparência às informações de interesse público?
D.E. – Talvez. Eu sou otimista, mas com certa cautela. Acho que estamos prestes a presenciar uma batalha entre a mudança trazida por uma geração e a cultura institucional já estabelecida. Muitos baby boomers (pessoas que nasceram nos anos imediatamente no pós 2ª Guerra), quando tornaram-se políticos ou funcionários de governos, acreditavam na transparência e em um governo aberto. Por que eles não conseguiram botar isso em prática? Porque o desejo das organizações de manter o sigilo é mais forte que o de um indivíduo em torná-la mais aberta. Então, tanto aqueles que estão do lado de dentro das organizações – os políticos e os funcionários públicos – como os de fora – os eleitores e cidadãos – têm um papel importante nesse processo. Nossa demanda por transparência é o que vai mudar o sistema, e não apenas a chegada de uma nova geração.
Os movimentos como o WikiLeaks não seriam uma forma forçada de dar mais transparência a esses governos que se recusam a divulgar dados?
D.E. – Acho que uma coisa importante sobre o WikiLeaks é reconhecer que ele não tem nada a ver com transparência pública. O movimento transparência é sobre a criação sustentável, aberta e autorizada dos dados dos governos. É, além disso, um esforço para mudar o governo, aumentando a sua legitimidade, tornando-o mais transparente. Em contraste, o WikiLeaks é um método não autorizado que gera informações de maneira não sustentável. É um esforço para mudar o governo, mas tornando-o menos legítimo, por meio da divulgação de suas ações. Esse não é um julgamento moral sobre transparência pública ou Wikileaks, é um fato simples sobre as diferenças entre eles. Agora, se ela vai ser uma forma eficaz para cobrar dos governos? Ainda não é possível saber.