Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tom Leão

‘No momento em que ‘A Paixão de Cristo’ (que estreou aqui na sexta-feira) causa polêmica internacional por causa de suas cenas violentas, alguns filmes do passado, igualmente polêmicos em suas épocas de lançamento no Brasil, estão sendo exibidos em canais de TV por assinatura discretamente, sem provocar a grita de antes.

São eles: ‘Saló ou os 120 dias de Sodoma’ (1975), de Pier Paolo Pasolini; ‘O porteiro da noite’ (1974), de Liliana Cavani; ‘O último tango em Paris’ (1972), de Bernardo Bertolucci (1972) – estes nos canais da rede Telecine – e ‘A última tentação de Cristo’ (1988), de Martin Scorsese, que passou no Telecine e agora circula nos canais TNT e MGM. Há ainda o clássico ‘Sindicato dos ladrões’ (1954), de Elia Kazan, na programação do canal Cinemax, que também andou exibindo recentemente ‘Laranja mecânica’ (1971), de Stanley Kubrick.

Curiosamente, esses títulos, à exceção dos de Scorsese e Kazan, são dos anos 70, época em que o cinema contestador e de temáticas politizadas proliferou. Curioso notar também que os diretores – exceção de Kubrick e Kazan – são todos italianos (Scorsese é ítalo-americano). O que mostra que o cinema dos anos 70 (especialmente o europeu) era tematicamente mais ousado; e que diretores fora do esquema padronizado de Hollywood tinham mais chance e liberdade para filmar, e, talvez até por isso, arriscavam mais.

Se hoje grupos religiosos se preparam para fazer protestos na frente dos cinemas brasileiros que exibem ‘A Paixão de Cristo’, não foi diferente com ‘A última tentação de Cristo’. Evangélicos faziam piquetes nas portas dos cinemas do Rio e, em São Paulo, o então prefeito Jânio Quadros tirou o filme de cartaz – temporariamente – uma semana depois da estréia. No México foi pior. O filme de Scorsese estava proibido lá desde 1988 e só agora será lançado naquele país, curiosamente (e mercadologicamente) para competir com o de Mel Gibson. Realmente, os tempos são outros. O filme de Pasolini também causou protestos por aqui, quando finalmente foi exibido, nos anos 80, mais por parte de matérias chamativas na imprensa do que do público, já que o filme e o diretor não eram populares.

Já ‘O porteiro da noite’, ‘O último tango em Paris’ e ‘Sindicato dos ladrões’, que também chegaram aqui só no fim dos anos 70 e início dos 80, foram proibidos pela Censura Federal, numa época em que o Brasil vivia uma ditadura militar. O último por incitar a greve, num tempo em que greve por aqui dava cadeia. E os dois primeiros por seus supostos altos teores de erotismo (embora ambos sejam mais para o dramático e deprimente). ‘O último tango…’ especialmente por causa da famosa (e sofrida) cena da manteiga. Já ‘O porteiro da noite’ mostra a relação sadomasoquista entre uma judia e seu ex-algoz dos tempos do nazismo, só que com inversão dos papéis.

O filme de Bertolucci, que nos EUA ganhou um ‘X’ (de pornográfico, comparado a um reles ‘Garganta profunda’, por exemplo), ficou anos em cartaz num cinema em Paris, único jeito de os brasileiros, pelo menos os mais abastados, assistir, já que ainda não havia a pirataria em vídeo. De todos, foi o único que passou na TV aberta, não sem causar polêmica. Exibido pela Rede Bandeirantes já no fim dos anos 80, o filme passou em todo o Brasil, menos em São Paulo, por causa de uma liminar impetrada por grupos conservadores.

Todos os filmes citados continuam fortes quando vistos ou revistos ainda hoje, pouco dataram. Arte necessita de liberdade de expressão. E esses filmes, goste-se ou não deles, conseguiram seu lugar na História, independentemente das polêmicas que causaram. ‘O último tango em Paris’ passa dia 27, às 19h45m, no Telecine Emotion (também pode ser visto em madrugadas nos canais MGM e Retro). ‘Saló’ foi exibido no começo do mês e terá só uma exibição em abril, dia 11, à 1h50m, também no TCE. Os demais já tiveram as suas exibições este mês, mas continuam nas grades de programação dos canais.’



Folha de S. Paulo

‘‘A Paixão de Cristo’ ganha lágrimas e críticas’, copyright Folha de S. Paulo, 20/03/04

‘O filme ‘A Paixão de Cristo’, em que o diretor Mel Gibson retrata as últimas horas da vida de Jesus Cristo, estreou ontem nos cinemas brasileiros, causando comoção principalmente entre grupos cristãos.

Em São Paulo, às 11h de ontem, cerca de 90 pessoas assistiram à primeira sessão do shopping Metrô Santa Cruz.

Na opinião do casal de aposentados Eugênio Nascimento, 75, e Luzia da Silva Nascimento, 73, ‘A Paixão de Cristo’ é uma interpretação ‘muito bonita’ do que é descrito na Bíblia. Para Eugênio, os romanos foram os culpados pela morte de Jesus Cristo.

O estudante budista Rodrigo Chen, 18, disse que a violência apresentada havia superado suas expectativas. Em sua opinião, os judeus foram os responsáveis pela morte de Jesus.

Fernando Nogueira de Araújo, 60, militar reformado, estava emocionado ao sair da sessão: ‘Ainda estou tentando me recuperar’. Disse que a culpa pela morte de Cristo pode ser atribuída à ‘turba ensandecida’ e comparou os soldados romanos aos fiscais de Marta Suplicy que vigiam os camelôs do centro de SP.

No cinema do shopping Pátio Higienópolis, havia cerca de 60 pessoas na sessão das 12h30.

Voluntária de um grupo de carmelitas, Camila Chaves, 22, chorou na saída do cinema. ‘Mostra o sofrimento de Cristo como foi realmente. Os maiores culpados foram os romanos’, disse.

Para administrador judeu Nessin Misrahi, 56, o filme ‘não leva a nada, é violento e só mostra o lado negativo da história. Até para o lado católico é ruim. Não se deve mexer no passado dessa forma’.

No Cine São Luiz, em Fortaleza, uma fila dava voltas na praça do Ferreira, na tarde de ontem, apesar da venda antecipada de ingressos para o filme de Gibson.

‘Foi o melhor filme a que já assisti. Mas nunca mais quero ver, porque Jesus sofreu muito, é muito chocante’, disse Josué Batista, 23, católico praticante.

‘Quando pegam o chicote e arrancam um pedaço de Cristo é de despedaçar qualquer um’, disse Weber da Conceição, 27, protestante da igreja congregacional.

Em Manaus, católicos e evangélicos praticantes assistiram ontem à sessão de estréia do filme.

‘O diretor não condena nenhuma religião, já que mostra um Jesus misericordioso’, disse Vera Lúcia Lexas, 53, evangélica.

‘O filme é um relato fiel ao que aconteceu nas últimas 12 horas da vida de Jesus e não é anti-semita’, disse Greice Mariano, 42, católica.

Apresentado às 13h [14h em Brasília] na rede Severiano Ribeiro, o filme levou 78 espectadores a uma sala de 300 lugares.

Gritos de aleluia, palmas para a cena da ressurreição de Cristo e muito choro nas cenas do martírio marcaram a sessão.

O grupo Severiano Ribeiro também promoveu, na noite de quinta-feira, no Rio, sessão beneficente de ‘A Paixão de Cristo’, com ingressos a R$ 100. O dinheiro foi revertido para a construção do Seminário Maria Mater Ecclesiai.

Entre os presentes ao evento estavam a socialite Carmem Mayrink Veiga, a deputada federal Denise Frossard (PSDB-RJ), além dos padres José Maria e Jorjão.

‘Temos uma tendência a banalizar o que Cristo passou. Mel Gibson foi fiel àquele sofrimento, e isso não é contra os judeus’, disse a evangélica Ana Cássia Araújo dos Santos, 29.

O público que deixou o Cinemark ontem à tarde em Porto Alegre se mostrou dividido.

A estudante católica não-praticante Daiane Mallmann, 28, disse ter gostado dos ‘efeitos visuais’ e criticou o ‘excesso de brutalidade’ e ‘os estereótipos’ no filme.

O comerciário Gerson Pacheco, 23, que se diz agnóstico, afirmou ter gostado da história, mas que ‘não precisava tanta violência’. Também comerciário, o católico praticante Giancarlo Gutti, 40, achou que ‘a história de Cristo é muito bem contada no filme’ e que ‘as interpretações são boas’.’



Correio Braziliense

‘Violência gratuita e radicalismo cristão’, copyright Correio Braziliense, 19/03/04

‘Não é de hoje que o ator e o diretor Mel Gibson tem certa fixação por personagens vingativos, sanguinários, até mesmo sádicos – vez ou outra, como no caso de um Mad Max, até elevados à condição de ícones do cinema de ação. Longe dos estúdios, porém, Gibson é religioso ortodoxo, daqueles que ainda preferem ouvir missa em latim. Projeto pessoal por excelência, A paixão de Cristo perturba ao unir essas duas facetas do astro de Hollywood sem sutilezas ou meios-termos. É incômodo híbrido de violência gratuita e radicalismo cristão – pregação eloqüente pontuada por chavões grosseiros de cinema de entretenimento. Uma fita trash travestida de produto sacro.

Não é daqueles filmes que precisam buscar a polêmica a todo custo – já nasce controverso e duvidoso pelas próprias opções do cineasta. Ao escolher narrar as últimas 12 horas de vida de Cristo de forma didática, maniqueísta e chocante, Gibson apela para método arcaico de sermão: aquele que pretende converter ovelhas desgarradas pelo choque sensorial, pelo soco no estômago, pelo banho de sangue escatológico. Sem pretensões de jogar o mínimo de complexidade histórica sobre os Evangelhos, o cineasta oferece visão extremamente oca e unidimensional de um dos eventos máximos do cristianismo.

Em cenário à conto de fadas, onde bons são santos e maus são demônios, Gibson cai no inferno das simplificações. Não é por pouco que a produção chegou a ser acusada de anti-semita. Muito provavelmente, racismo não estava na lista de intenções do cineasta. Mas aí está o perigo de reduzir a narrativa a estereótipos: da mesma forma como os soldados romanos são invariavelmente perversos, o que o filme aponta como ‘povo judeu’ acaba retratado como massa uniforme e francamente favorável à condenação de Jesus. Até mesmo para efeitos missionários, planificar personagens e situações soa como recurso rasteiro. Em uma produção com ares de ‘ato educativo de fé’, é algo de ingenuidade imperdoável.

A razão de ser da obra, entretanto, ainda não está aí. Ela encontra-se espalhada nas intermináveis cenas de ultraviolência. Espetáculos à parte, esses trechos confirmam e elevam à décima potência a postura autoritária e revanchista do diretor. Gibson usa a pancadaria com o propósito agressivo de culpar o espectador, de fazer com que o público carregue a cruz de Cristo e saia do cinema com a consciência pesada. Para dar potência ao golpe, abusa de maneirismos apelativos – de trilha sonora épica a cenas em câmera lenta. Em flashbacks, ainda há certa tentativa de revelar lições de amor cristão. Mas elas empalidecem diante da carnificina, e são tratadas pelo diretor com suspeito desdém. Não é surpresa que a ressurreição de Cristo seja representada no filme por uma cena que dura menos de cinco minutos. E que, mais curioso ainda, parece até paródia de O exterminador do futuro.’