Na edição passada, comentei que as fotos emblemáticas da Guerra do Iraque estavam sendo produzidas pelas próprias câmeras digitais e celulares dos soldados [remissão abaixo].
Poucos dias depois, Donald Rumsfeld, secretário de Defesa dos Estados Unidos, decidiu banir o uso desse tipo de aparelho das bases militares no Iraque.
Pelo menos foi isso que noticiaram a Agência France-Presse, a Folha Online
(www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u16029.shtml)
e centenas de outros jornais pelo mundo, como Yahoo! News (http://news.yahoo.com/news?tmpl=story&u=/afp/20040523/
tc_afp/iraq_britain_us_rumsfeld_040523111731), Washington
Times
(http://www.washingtontimes.com/upi-breaking/20040523-050824-
2805r.htm), Sydney Morning Herald (http://www.smh.com.au/articles
/2004/05/23/1085250873479.html?from=top5), entre outros.
Pena que era tudo mentira.
História mal-contada
Li a matéria na Folha e já pensei: escrevo sobre isso na sexta, ele proíbe no domingo, perfeito. Já tenho minha próxima coluna.
Na verdade, considerando o estrago que essas fotos têm causado, o governo semi-ditatorial de Baby Bush até demorou muito para tomar essa decisão.
Entretanto, o clamor público que deveria ter se seguido não aconteceu. Decidi pesquisar um pouco mais a fundo.
A matéria da Folha, reproduzida da Agência France-Presse, cita como fonte um tal jornal The Business. Não poderia haver nome mais geral e vago. A medida que a notícia era reproduzida por todo o mundo, a nacionalidade do jornal variava. Veículos ingleses diziam que o The Business era inglês, australianos, que era australiano.
Até o news.com.au (http://news.com.au/common/story_page/
0,4057,9643950%255E401,00.html), confiável portal de notícias
da Austrália, citava o The Business como sendo um jornal australiano.
Quem sou eu para desdizer?
Sou um jornalista que sabe encontrar as coisas na internet. E, com exceção de reproduções dessa falsa notícia, não há nenhuma outra menção de jornal inglês ou australiano chamado The Business. Além disso, curiosamente, ninguém dava o link da matéria original. Será que existe um jornal australiano ou inglês que não possua site?
Felizmente, não fui só eu que procurei. Vários outros jornalistas, blogueiros e diletantes em geral também tentaram ir fundo nessa história e deram com a cabeça nas pedras. As teorias foram muitas – seria o Sunday Business ou o Business Times? – mas a verdade é que não havia evidência suficiente para apoiar nenhuma conclusão.
Eram tantas pulgas atrás da minha orelha que elas escorriam pelos meus ombros. Uma coisa é certa: essa história estava incrivelmente mal-contada.
Imprensa enganada
Em texto que postei em 30/4 no blog Liberal Libertário Libertino
(http://liberallibertariolibertino.blogspot.com/2004_04
_01_liberallibertariolibertino_archive.html#108322773978530931),
mostrei como notícias falsas, criadas por sites humorísticos, estavam
circulando pela internet como se fossem verdade, e enganando até jornalistas.
Semana passada, por exemplo, Ricardo Noblat (http://noblat.blig.ig.com.br), excelente colunista de O Dia, caiu no trote. O Cocadaboa (http://www.cocadaboa.com/archives/003797.php) veiculou uma notícia (falsa, como tudo o que mais que eles publicam) sobre Lula ter sido zoado pelo programa humorístico norte-americano Saturday Night Live.
Noblat engoliu tudo. Reproduziu a matéria completa, sem citar a fonte, e ainda acrescentou:
‘É o que dá arranjar briga sem necessidade. Se Lula não tivesse mandado expulsar do país o correspondente do NYT, ninguém lá fora teria dado importância ao que ele escreveu. E aqui dentro também não.’
E eu pensei cá com minhas teclas: teria a imprensa mundial caído em um enorme trote digno do Cocadaboa?
Departamento de Defesa desmente
Xeni Jardin, jornalista da Wired e uma das responsáveis pelo ótimo
blog Boing Boing (http://www.boingboing.net/2004/05/23/camera_phones_in_ira.html),
decidiu ir fundo no assunto. Entrevistou um porta-voz do Departamento
de Defesa (veja em http://www.wired.com/news/politics/0,1283,63604,00.html)
e ele negou tudo.
Não houve a tal proibição, embora existam algumas diretivas bem gerais sobre o uso de aparelhos sem fio. Basicamente, as diretivas se resumem a ‘usem seu bom senso e juízo, hein!’
Ainda assim, fica uma dúvida: bom senso do ponto de vista de quem? Para o soldado torturador, bom senso seria não registrar seus crimes. Para o contribuinte norte-americano, bom senso seria divulgar as fotos e descobrir que tipo de atrocidades ele está financiando.
A farsa diária
A fonte do trote parece ser uma matéria do jornal satírico The Daily
Farce (A Farsa Diária), publicada no dia 6 de maio: ‘Surgem novas
fotos de abusos: Rumsfeld proíbe câmeras digitais no Iraque’ (New abuse
pictures emerge; rumself prohibits digital cameras in Iraq, em http://www.thedailyfarce.com/world.cfm?story=
2004%5C05%5Cworld_moreabusepictures_05200400006) . Alguns
trechos:
**
‘Para proteger os prisioneiros iraquianos de futuros abusos, todas as câmeras digitais, filmadoras ou telefones celulares com câmeras estão rigorosamente proibidos em qualquer instalação militar do Iraque.’**
‘To protect the Iraqi prisoners from any future abuses; any digital cameras, camcorders, or cell phones with cameras are strictly prohibited anywhere in any military compound in Iraq.’Outras manchetes em destaque na mesma página incluem coisas como ‘Tropas norte-americanas atiram em casamento iraquiano; Bush: ‘Pensamos que fosse um casamento gay’’ (‘U.S. fires on Iraqi wedding; Bush: ‘We had intelligence it was a gay marriage’’).
Ou seja, não dá para levar a sério.
Armas de fotografia em massa
A matéria enganou o mundo por ser extremamente verossímil. Baby Bush, em campanha pela eleição (só quem foi eleito pode ser reeleito), vai tentar de tudo para cobrir seus podres. Rumsfeld já chegou a afirmar:
‘Pessoas estão andando de um lado para o outro com câmeras digitais, tirando essas fotos inacreditáveis e passando-as adiante, contra a lei, para a imprensa, pelas nossas costas, quando elas nem mesmo chegaram no Pentágono.’
(‘People are running around with digital cameras and taking these unbelievable photographs and then passing them off, against the law, to the media, to our surprise, when they had not even arrived in the Pentagon.’)
Em artigo de opinião para o Houston Chronicle, ‘Sim para as armas de fotografia em massa’ (‘Yes to weapons of mass photography’ em http://www.chron.com/cs/CDA/ssistory.mpl/editorial/2570674), Clarence Page comenta essas declarações de Rumsfeld, dizendo:
‘Não, amigos. Aparentemente, na opinião de Rummy, o problema não é a grosseira falta de preparo desse governo para os problemas do Iraque pós-Saddam. O problema são esses garotos intrometidos e suas armas de fotografia em massa.’
(‘No, folks, it´s apparently not the administration´s gross lack of preparation for the management of post-Saddam Iraq that´s the problem, in Rummy´s view. It´s those pesky soldiers and their Weapons of Mass Photography.’)
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Colunista de internet da Tribuna da Imprensa, editor do Guia de Blog SobreSites (http://www.sobresites.com/blog) e mantém o blog Liberal Libertário Libertino (http://www.liberallibertariolibertino.blogspot.com/); e-mail (cruzalmeida@sobresites.com)