Ao admitir pela primeira vez que o sistema eleitoral informatizado do Brasil não é 100% seguro, o presidente do Superior Tribunal Eleitoral (TSE), ministro Carlos Velloso, anunciou que pretende ‘acabar com o último reduto de fraude na Justiça Eleitoral’ a partir de 2 de outubro próximo, quando deverá começar o recadastramento dos 121 milhões de eleitores brasileiros juntamente com o referendo para saber se a população é a favor ou contra a venda de armas. Os títulos de eleitor em uso no país serão trocados por um novo modelo, muito mais seguro segundo o TSE, com foto e digital.
A meta inicial do tribunal – neste segundo recadastramento nacional em 19 anos – é conseguir trocar em outubro 20 milhões de títulos, beneficiando eleitores dos estados de Minas Gerais, Mato Grosso e Maranhão. Os 101 milhões restantes, caso o cadastro atual esteja correto, receberão seus títulos no decorrer dos próximos três anos. Velloso confirmou a novidade no seminário ‘Identificação do Eleitor e Reforma Política’, realizado pela Escola Judiciária Eleitoral (EJE), no Kubitschek Plaza de Brasília, nos dias 6 e 7 de abril – evento que contou com a participação de presidentes de TRE de todo o Brasil, desembargadores, juízes e alguns representantes de partidos.
O presidente do TSE observou que para que o trabalho comece realmente em outubro é necessário que o Congresso, antes, aprove a realização do referendo das armas o mais rápido possível – de preferência ainda neste mês de abril. Explicou que também falta o TSE decidir sobre o título que substituirá o atual.
Outra realidade
Dois modelos estão sendo analisados: um em papel, com código de barras tridimensional, com digital e foto do eleitor – igual ao cartão de identidade em uso na Colômbia, ao custo de alguns centavos de dólar a unidade; e um outro, tipo smart card, com chip embutido, também com foto e digital, ao custo de 2 dólares a 4 dólares a unidade – custo relacionado as quantidades a serem encomendadas.
Dependendo do modelo, com base no que explicou um dos palestrantes, Paulo Seigi Nakaya, da Secretaria de Informática do TSE, a mudança de títulos poderá custar cerca de 500 milhões de dólares (1,5 bilhão de reais) – para mais ou para menos. Além dos títulos em si, com chip ou código de barras com leitura vertical e horizontal, será necessário instalar novas leitoras óticas nas 405 mil seções eleitorais do país para conferir o título e a digital.
Uma questão importante levantada no debate é que apesar da convicção do ministro Velloso de que basta mudar o título para acabar com a fraude no cadastro de eleitores, a realidade – comprovadamente – é outra. O engenheiro Osvaldo Catsumi, também da Secretaria de Informática do TSE, ao ser questionado se o novo título, smart card ou cartão com código de barras, acaba por si só com fraudes como as de Camaçari, na Bahia – onde numa única rua de 17 casas existiam 7 mil títulos – foi obrigado a dizer ‘não’. Explicou que só o título, por mais moderno que seja, não garante a lisura, porque é fundamental que os cartórios eleitorais trabalhem corretamente – concedendo apenas um título a cada eleitor.
Título com retrato
Em Camaçari, Grande Salvador, foi preciso que o próprio TSE, com auxílio da Polícia Federal, desse ouvidos às reiteradas denúncias de fraude comprovadamente feitas pelo advogado José Roberto Rocha e por Douglas Rocha, da direção do PPS local, posteriormente ajudados pelo presidente nacional do PDT, Leonel Brizola, e por dois técnicos de informática – Amílcar Brunazo Filho e Roger Chadel. Apesar de três recadastramentos feitos pela Justiça Eleitoral da Bahia, milhares de eleitores-fantasma continuaram votando no município – até a intervenção saneadora do TSE.
Os recursos necessários para a troca dos 121 milhões de títulos no Brasil não assustam o ministro Velloso: ‘A democracia tem custos e não tenho dúvidas de que tanto o Executivo quanto o Legislativo saberão compreender a importância desta iniciativa da Justiça Eleitoral para o pleno exercício da cidadania’ destacou, reiterando que ‘não há como evitar a fraude de um eleitor votar pelo outro’ se não for trocado o título em uso.
– É preciso que a Justiça Eleitoral tome uma posição e vamos tomar. Nossa meta é recadastrar todos os eleitores do país e conceder a eles um título com retrato, com impressão digital, com registro geral – caso o tenha; com número do CPF e até mesmo com tipo sanguíneo, como acontece hoje em alguns documentos – disse Velloso.
A mais simples das fraudes
Os títulos agora considerados inseguros entraram em uso em 1986 quando o TSE promoveu um recadastramento nacional de eleitores depois da campanha das Diretas Já – como primeiro passo para a informatização total das eleições brasileiras – meta alcançada em 1996, quando entraram em uso as urnas eletrônicas. Em 1986, cada eleitor ganhou um número – o mesmo que, a partir de 1996, passou habilitar as urnas eletrônicas para o voto.
Embora a informatização seja sempre exaltada pela Justiça Eleitoral, os títulos antigos, cancelados, eram muito mais seguros do que os atuais. Eles continham a foto e a digital do eleitor e várias outras informações, como a filiação do titular, assinatura, endereço, número da identidade e, no verso, ainda havia espaço para rubricas do presidente da mesa receptora de votos a cada eleição – o que reforçava, e muito, a segurança do documento: quem não reconhece a própria rubrica?
O título hoje em uso, além do nome do eleitor, da seção e da zona onde o cidadão vota, contém apenas a chancela do juiz eleitoral. Com o passar dos anos acumularam-se as críticas contra ele por permitir a mais simples das fraudes, a de um eleitor votar pelo outro, caso não seja acompanhado da identidade. Críticas corriqueiras inclusive no Fórum do Voto Eletrônico, página da internet que desde 1998 questiona as deficiências do sistema eleitoral brasileiro e que resultaram em manifesto da comunidade acadêmica de informática do país (disponível em www.votoseguro.com/alertaprofessores).
Fraude admitida
O presidente do TSE, ao defender no seminário em Brasília os novos títulos, disse que eles são necessários porque no Brasil há 30 milhões de pessoas que só possuem o título de eleitor como documento e que é por isto que a Justiça Eleitoral deixou de exigir carteira de identidade do eleitor na hora de votar: muitos seriam impedidos ‘de exercer o direito que consagra o cidadão’ por falta de documentos. Fez questão de assinalar ainda que a fraude maior, ‘a praga do mapismo’, foi extirpada pelas urnas eletrônicas, cabendo agora resolver a questão da identificação ‘para que se chegue ao ideal de cada eleitor, um voto’.
Mas no seminário os questionamentos não se restringiram ao título. O ex-ministro do TSE Fernando Neves, na sua palestra, ao falar sobre problemas ainda existentes no sistema, observou que em determinada seção eleitoral, no fim do horário de votação, um presidente pode combinar com os mesários e – se não houver fiscalização – eles votarem no lugar dos eleitores que não comparecerem.
O secretário da Corregedoria-Geral do TSE, Sérgio Dias Cardoso, após elogiar ‘a excelência das urnas eletrônicas’, admitiu – como Fernando Neves – que é possível o presidente de uma seção eleitoral, com a conivência de mesários, votar pelos eleitores ausentes – fraude jamais admitida antes pelo TSE. Segundo os críticos das urnas, este é um dos pontos mais vulneráveis da concepção do sistema brasileiro, porque o presidente e os mesários recebem junto com as urnas uma lista com o nome e o número do título dos eleitores, exatamente o que faz a máquina funcionar estando o eleitor presente ou não.
Fugindo da pergunta
O segundo dia o seminário foi dedicado à reforma política. O deputado Ronaldo Caiado, relator do projeto em discussão na Câmara dos Deputados, apresentou os principais pontos que estão sendo analisados. A discussão foi esvaziada pelas ausências do ministro Nelson Jobim, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), e do senador Renan Calheiros, presidente do Senado Federal, palestrantes, que não compareceram por estarem em Roma na comitiva do presidente Lula para as exéquias do papa João Paulo II.
Perto do encerramento, na última palestra do seminário, o representante da Casa Civil da Presidência da República, José Antônio Dias Toffoli, que em 2003 se empenhou pelo fim da impressão do voto eletrônico no Brasil, foi questionado sobre sua atitude. A impressão do voto eletrônico – fundamental para garantir a recontagem – foi abolida pela Câmara dos Deputados, com apoio do TSE, segundo lei sancionada em 24 horas pelo presidente Lula – com ajuda do chefe do Gabinete Civil, José Dirceu.
Um integrante da platéia perguntou a Toffoli como podia considerar as eleições brasileiras seguras, como afirmara na palestra, se a urna eletrônica em uso no país não permitia a recontagem de votos, princípio fundamental em qualquer eleição. Toffoli, fugindo da pergunta, disse que pelo que sabia, a recontagem de votos não tinha acabado no Brasil. Só não explicou como fazê-la sem o comprovante do voto.
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Jornalista; participou do seminário como integrante do Diretório Nacional do PDT