Há 40 anos morria em São Paulo o jornalista Julio de Mesquita Filho. Ele dirigiu o jornal O Estado de S. Paulo, à frente da Redação, definindo a sua linha editorial, entre 1927 e 1969. Nesse período, o Estado se consolidou como empresa jornalística, tornando-se o mais importante veículo de mídia impressa na América Latina e conquistando respeito internacional. Avançou tanto em relação ao que se produzia no País que, segundo Claudio Abramo, em seu livro de memórias A Regra do Jogo, ficou sem concorrentes à sua altura. ‘O Estado era absoluto. Não havia nada que chegasse perto’, escreveu o jornalista, que foi secretário de Redação do jornal.
Mesquita Filho cuidava da parte editorial, enquanto seu irmão Francisco Mesquita conduzia as áreas de negócios e administração. Constituíam uma dupla afinada e inseparável. Francisco também morreu em 1969, no mês de novembro, quatro meses após o irmão.
Apesar do grande avanço registrado pelo Estado, em termos editoriais e empresariais, enquanto esteve sob a batuta de Mesquita Filho, qualquer tentativa de traçar seu perfil tendo como foco principal o jornalismo tende a ser rasa, incompleta. Revendo tudo que já se escreveu a seu respeito e também os textos autobiográficos que deixou, o que chama a atenção é o fato de jamais ter dissociado jornalismo e militância política.
Seu filho Ruy Mesquita, atual diretor de Opinião do jornal, tem uma visão mais radical a respeito da questão. Para ele, o jornalismo foi uma simples decorrência do interesse do pai por uma questão maior. Uma questão chamada Brasil.
O dramaturgo Nelson Rodrigues, que manteve uma coluna no Jornal da Tarde nos anos 60, manifestou opinião semelhante em crônica publicada três dias após a morte do diretor do Estado. ‘Se me perguntarem qual a sua grande ou, melhor, a sua única paixão, eu diria: o Brasil. Só viveu para o Brasil, só pensou no Brasil’, escreveu o autor de Vestido de Noiva.
Esteve em todas
Então, para que o jornal? Mesquita acreditava que podia moldá-lo como um veículo forte, influente, independente e, sobretudo, destinado a ajudar nas mudanças políticas que considerava necessárias para o País. Nos 42 anos em que esteve à frente do Estado, sucedendo ao pai, Julio de Mesquita, foi para isso que ele trabalhou.
A soma de 42 anos é formal. Pelas contas de Mesquita Filho seriam 37, uma vez que ele se recusava a contar os cinco anos, de 1940 a 1945, em que o jornal esteve sob intervenção da ditadura de Getúlio Vargas.
A intervenção ocorreu porque o jornal não aceitava a ditadura e o seu diretor estimulava e até participava de articulações contrárias ao regime. Vargas já tentara calar sua voz, em 1938, despachando-o para o exílio. Mas, como ele não silenciou, continuando a definir, de sua base no exterior, a linha editorial, foi decretada a intervenção.
Esse foi o segundo período de exílio enfrentado por ele. O primeiro havia sido após a derrota da Revolução de 1932.
Os dois episódios evidenciam o já mencionado envolvimento radical com a política. Aliás, quem cruzar a biografia de Mesquita Filho com a história do Brasil, entre os anos 20 e 60 do século passado, em qualquer momento, verá que sempre estiveram entrelaçadas.
Do ponto de vista político, foi um período dramático para o País. Abrigou, entre tantas crises, a Revolução de 1930, que pôs abaixo a República Velha, a Revolução Constitucionalista de 1932, a luta pelo voto secreto, o Estado Novo, o ensaio democrático do pós-guerra, a ditadura militar, a edição do AI- 5.
Sempre ao lado dos paulistas, o diretor do Estado envolveu-se com todo episódio político importante. Ou, ainda citando Nelson Rodrigues, ‘esteve em todas’. O jurista e ex-deputado constituinte Aliomar Baleeiro chegou a dizer: ‘Ninguém poderá escrever a história de nosso País nos últimos 40 anos sem mencioná-lo.’
Nada o demovia
Os sinais da militância se espalham por toda parte. Quem folhear os livros do brasilianista John W. F. Dulles, dedicado analista da era Vargas, verá que Mesquita Filho aparece por ali com notável frequência. Sempre combatendo Vargas.
Em 1992, convidado a escrever sobre o centenário de nascimento do diretor do Estado, Antonio Candido disse que ‘quem o conhecesse bem, mesmo discordando de suas posições políticas (era o meu caso), respeitava suas posições culturais, admirando a coerência com que as concebia e o destemor com que lutava por elas’.
A expressão ‘destemor’, utilizada pelo crítico literário e fundador do PT, não parece exagerada quando confrontada com fatos biográficos. Por causa de suas posições, o diretor do Estado perdeu amigos, foi exilado duas vezes, esteve preso em 17 ocasiões, enfrentou a censura, foi chamado de turrão, reacionário, conservador.
Nada disso o demovia de suas ideias. Em 1948, em um discurso diante de alunos da USP, observou: ‘Dizia Renan que não deveria recear parecer fora de moda quem, em matéria política, quisesse que o futuro lhe desse razão.’
Modernizar o ensino
Seu último embate foi com a ditadura militar. No dia 13 de dezembro de 1968, logo após a edição do AI-5, agentes policiais impediram a circulação do Estado, por causa do editorial ‘Instituições em Frangalhos’, com críticas ao marechal-presidente Arthur da Costa e Silva.
Impedido de se expressar livremente e descontente com os rumos dados pelos militares ao movimento que ajudara a articular, em 1964, o militante silenciou. A morte veio sete meses mais tarde, às 16 horas do dia 12 de julho de 1969, em decorrência de uma malsucedida operação de úlcera no estômago.
Na avaliação de Ruy Mesquita, a causa mortis verdadeira foi o desgosto político, que enfraqueceu sua saúde, forte até então. ‘Ele morreu de traumatismo moral’, diz o filho.
Mesquita Filho se definia como defensor dos ideais do liberalismo e opositor de qualquer tipo de totalitarismo, de esquerda ou de direita. Advogava um processo de regeneração política, capaz de livrar a República de governantes oportunistas e demagogos.
Para essa regeneração ocorrer, porém, era preciso modernizar o ensino no País. Seguindo esse pensamento, ele se tornou o mais aguerrido defensor da criação em São Paulo de uma universidade pública, nos moldes europeus. Ela seria, acreditava, o melhor caminho para se oferecer às elites conhecimento e consciência para promover a modernização e o progresso que o Brasil necessitava.
Imagem final
Roque Spencer de Barros, que foi professor da USP e dirigiu a Faculdade de Educação, escreveu que o esboço dessas ideias já estava no primeiro livro de Mesquita Filho, A Crise Nacional, de 1925. Mais tarde, à frente do jornal, ele abre espaço para o debate em torno da universidade. Convida o educador Fernando Azevedo para conduzir uma pesquisa sobre o assunto e traça um plano detalhado para a empreitada.
O plano foi aproveitado por Armando de Salles Oliveira, quando, no dia 25 de janeiro de 1934, à frente do governo do Estado, assinou o decreto de criação da USP. Salles Oliveira era cunhado do diretor do Estado e havia sido nomeado interventor numa tentativa de cooptar o jornal e, com ele, importantes grupos políticos. A tentativa fracassou, conta a história.
Mesquita Filho também foi um dos mentores da proposta de trazer para o Brasil a ‘missão francesa’ – nome dado à equipe de professores franceses convidados para a primeira linha de frente de ensino na USP. Entre eles estava Claude Lévi-Strauss, expoente da antropologia e do estruturalismo.
O diretor do Estado gostava de manter contato com esses professores e intelectuais que visitavam o País. No começo da década de 60, manteve animada conversa com o pensador francês Jean-Paul Sartre, sobre o confronto entre Estados Unidos e União Soviética. Sartre saiu dizendo que nunca conhecera ninguém tão reacionário. Ruy Mesquita gosta de lembrar, no entanto, que a história acabou dando razão a seu pai.
O crítico literário Wilson Martins, professor emérito da New York University, escreveu que ‘a imagem final que dele nos resta é a de um homem que durante uma larga existência viveu apaixonadamente as próprias ideias.’
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Colaboradores guardaram boas lembranças
O professor Paul-Arbousse Bastide, fundador da cadeira de política da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da USP, na década de 30, guardava boas lembranças de Julio de Mesquita Filho, que o convidou para vir ao Brasil. Em artigo publicado em 1984, ele o chama de ‘fundador’ e ‘pai intelectual da USP’.
Ele diz também que todos os dias, após o fechamento da edição diária, o diretor do jornal abria sua sala de trabalho para receber os franceses. ‘A sede social do jornal O Estado de S. Paulo era então situada na Rua Boa Vista, num modesto imóvel ainda preservado, como então a quase totalidade, em São Paulo, contra aquilo que chamaram mais tarde ?a explosão vertical, tipicamente vertical?’, escreve. ‘Todos os dias, até bem tarde da noite, entre onze horas e meia-noite, Julio de Mesquita Filho aí se encontrava à disposição do grupo dos novos ?missionários? e desejava ser informado pessoalmente dos progressos da instalação da escola e de tudo o que pudesse facilitá-la.’
No mesmo artigo o professor francês lembra que a sala do diretor do Estado também abrigou várias vezes conferências abertas ao público, destinadas sobretudo a facilitar o contato dos franceses recém-chegados com os auditórios extrauniversitários. ‘Conferências públicas também foram organizadas na Sociedade de Geografia, na Rua Benjamin Constant’, diz ele. ‘Julio de Mesquita Filho seguia assiduamente, com seus amigos, todas as conferências, amplamente noticiadas pela imprensa de São Paulo e, especial, pelo Estado.’
O jornalista francês Gilles Lapouge, hoje vivendo em Paris, trabalhou durante 20 anos com Julio de Mesquita Filho. Diz se lembrar daqueles anos como ‘uma autêntica felicidade, e também como uma bela aprendizagem’.
Lapouge chegou ao Rio em 1951, contratado como redator, por recomendação do historiador Fernand Braudel. Mesquita Filho foi recebê-lo de carro,no Rio. Na viagem de volta para São Paulo, o diretor o surpreendeu ao falar fluentemente sobre literatura: ‘Mal podia crer nos meus ouvidos. Albert Camus, Jean-Paul Sartre, George Bernanos, Henry Montherlant: ele estava familiarizado com tudo o que havia de importante.’
Na opinião de Lapouge, expressa em artigo de 1982, essa paixão pela cultura esteve sempre associada à paixão política e às suas posições sobre o papel do jornal. Lapouge ainda anota que, embora suas opiniões nem sempre coincidissem com as do chefe, teve liberdade para expressá-las (leia mais sobre a relação entre Lapouge e Mesquita Filho no caderno Cultura). ‘E ele tinha um respeito absoluto pela honestidade intelectual.’
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Repórter do Estado de S.Paulo