Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma encruzilhada da história

Essa apresentação, abaixo, do presidente da agência reguladora francesa, feita para o Senado da França, mostra que o tema da TV por ADSL é muito importante. [O serviço foi lançado recentemente pela France Télécom].


A TV por ADSL (ou seja, Velox, para cariocas, ou Speedy, para paulistas) é uma realidade tecnológica, e logo será uma realidade marquetológica.


Nesse contexto, o poder das donas das redes de ADSL (as concessionárias locais de telefonia e as empresas de TV a cabo) será enorme. Bem por isso, quando uma telecom brasileira lançou um piloto em sua área de concessão, houve uma chiadeira dos radiodifusores.


Mas essa encruzilhada da história não pode ser resolvida escolhendo-se uma empresa para defender: todas têm interesses que se chocam contra o interesse do Brasil.


Os modelos


A regulação na França, e noutros países do Primeiro Mundo, não é por tecnologia, mas sim por ‘mercados relevantes’ (um conceito econômico que se define pelo perfil da demanda dos consumidores e pelo perfil da oferta dos fornecedores). Então, a oferta de conteúdos informacionais ou de entretenimento, de forma gratuita e aberta, é o marché (mercado) da televisão; a oferta de serviços de voz, móveis (com tecnologia GSM, CDMA, TDMA ou outra) é o marché do celular, e assim por diante.


Assim, a decisão sobre se alguma empresa é dominante pressupõe a definição prévia de qual é o mercado sujeito à dominação. Para exemplificar, a compra da Embratel pelos mexicanos tem aspectos positivos e, mesmo assim, pode ser uma ameaça maior à concentração econômica.


Os próximos meses vão mostrar um debate interessante.


A seguir, a apresentação.


Telefonia e televisão pela internet


Intervenção de Paul Champsaur, presidente da Agência de Regulamentação das Telecomunicações (ART), em seminário organizado no Senado da França em 20 de fevereiro de 2004.


Os debates desta manhã demonstraram, se é que era necessário, ao menos uma coisa: a convergência é um fenômeno atual. Temos exemplos concretos de TV por ADSL ou telefonia por IP. É que a convergência é hoje uma realidade, fonte de serviços inovadores que a regulamentação deve levar em conta, respeitando o princípio da neutralidade tecnológica. É este, por sinal, o objetivo das diretrizes européias no chamado pacote telecom, em andamento, especialmente aquela cuja meta é responder aos avanços da convergência tecnológica no setor de redes e serviços de comunicações eletrônicas.


A regulamentação atravessa hoje uma encruzilhada: deve se adaptar à competição em cada mercado. À medida que a concorrência se estabelece, a regulamentação setorial ex ante deve se retrair em favor de uma regulação ex post, no que tange aos princípios do direito comum que regem a concorrência. Convém então avaliar o grau de competição nos diferentes segmentos do mercado das comunicações eletrônicas. Foi o que constatou a ART há alguns meses. Após analisar o poderio das empresas em cada mercado relevante, a ART deverá exigir dos agentes identificados como dominantes obrigações proporcionais para atenuar, ou eliminar, os obstáculos ao estabelecimento de uma concorrência leal e efetiva.


Os mercados relevantes são aqueles para os quais se justifica uma regulação ex ante. Aos demais não se aplica tal regulação. Por conseguinte, seu controle só pode ser efetivado a posteriori, por ocasião de regulamentações específicas.


A Comissão Européia, em recomendação sobre os mercados relevantes de produtos e serviços de comunicações eletrônicas, propôs em fevereiro de 2003 uma lista de 18 mercados. O 18º diz respeito aos serviços de radiodifusão, destinados a conteúdo audiovisual para usuários finais. Está em curso a definição dos limites exatos a serem aplicados a este mercado.


Poderíamos admitir que a radiodifusão hertziana está aí abrangida, e que uma regulação ex ante poderia ser aplicada aos agentes dominantes deste setor, notadamente à TdF [a estatal francesa das telecomunicações, para TV, rádio e provimento de internet]. A distribuição a cabo também poderia estar nesta situação: a ART sempre defendeu a supressão do regime jurídico específico imposto ao cabo e que, até o momento, penalizou seu progresso e enfraqueceu sua rentabilidade. Baseados no princípio da igualdade tecnológica, também cabe a dúvida quanto à difusão de programas de rádio e TV por satélite. E, ainda, a difusão de conteúdo audiovisual por ADSL.


Por outro lado, registre-se que a Ofcom, a agência reguladora britânica, excluiu do campo da regulação ex ante o cabo e o satélite, assim como a TV por ADSL.


A esta altura não vou me estender sobre cabo e satélite, mas sobre a televisão por ADSL, considerado serviço inovador nos documentos europeus. De fato, as diretrizes atribuem aos reguladores nacionais a missão de promover e favorecer a inovação em todas as suas formas.


A TV por ADSL é incontestavelmente um serviço inovador, que corresponde à noção de mercado emergente definida nas diretrizes. Estes mercados emergentes são explicitamente excluídos da lista de mercados relevantes. Parece então pouco provável, em curto prazo, dado o caráter inovador deste serviço, que a TV por ADSL possa constituir um mercado relevante e seja objeto de regulação ex ante.


E mesmo quando nele houver empresas dominantes elas terão a vantagem do pioneirismo. É a primeira concessão a operadores e fornecedores que investem na abertura de mercados. Posteriormente, somente a análise dos mercados mostrará se se justifica uma intervenção, ou seja, se deverão passar à categoria de mercados relevantes.


Se a regulação ex ante não se aplica, cabe lembrar, entretanto, que na França este serviço continua sujeito ao controle ex post do Conselho da Concorrência, do Conselho Superior de Audiovisual e da ART.


Antes de explicar o papel da ART, é preciso lembrar que os serviços de TV por ADSL usam o par do acesso local da France Télécom, localizado entre o assinante final e a central telefônica. A tecnologia ADSL permite o uso desta infra-estrutura de cabos para fornecimento simultâneo de conexão à internet de banda larga, serviços de telefonia de voz e outros serviços, como difusão de programas (TV, pay per view), videoconferência etc.


Essa infra-estrutura de acesso não precisa ser duplicada por uma nova operadora, o que demandaria custo razoável, podendo ser igualmente utilizada, contra uma retribuição justa, pelos concorrentes da France Télécom, neste cenário de compartilhamento de redes [dégroupage], chamado opção 1 em nosso jargão. Hoje, contam-se na França um pouco mais de 300 mil redes com compartilhamento.


Isso posto, qual é a posição da ART sobre este novo serviço, de televisão por ADSL?


O lançamento, pela France Télécom, de seu serviço de acesso televisivo ‘Minha linha TV’, que permite oferecer ao cliente final conteúdo potencialmente atrativo, criou um laço entre a difusão de conteúdo audiovisual e o mercado de banda larga, mais precisamente, dois mercados de alta relevância: o de fornecimento de acesso compartilhado e o de acesso por banda larga. Para o usuário, este laço resolve a incompatibilidade de ser simultaneamente cliente de ‘Minha linha TV’ e de um operador de rede compartilhada que oferece acesso à internet por banda larga.


Na hipótese de que o serviço ‘Minha linha TV’ obtenha grande sucesso, o que nos alegraria, France Télécom poderia, então, a partir deste impulso, reforçar sua posição no mercado de ADSL e de acesso à internet banda larga.


Por isso, convém atentar para o que as operadoras alternativas venham a oferecer, pelas linhas compartilhadas e além da banda larga da internet – desde que desejem fazer os investimentos necessários –, em matéria de serviços atraentes de conteúdo audiovisual. À ART, claro, não cabe pronunciar-se sobre a questão do acesso a conteúdos audiovisuais. Em contrapartida, cabe-lhe assegurar que seja garantida a resposta técnica para que os concorrentes da France Télécom possam propor serviços audiovisuais.


A posição especial da France Télécom no acesso local justifica que a ART se interesse pelas condições técnicas e econômicas das centrais telefônicas, que permitam aos operadores alternativos serviços equivalentes à ‘Minha linha TV’, através do compartilhamento de redes: condições dos equipamentos necessários nas instalações da France Télécom, evolução operacional de processos técnicos e, eventualmente, condições de transporte do tráfego de vídeo pelas redes DSL.


Antes de concluir, gostaria de falar rapidamente de uma outra inovação, a voz por IP ou, mais precisamente, a oferta de serviços telefônicos por DSL. Hoje, graças à banda larga, esta antiga tecnologia (que já completou 10 anos) encontra seu modelo econômico, sua qualidade e um mercado explorável para fornecer serviços de telefonia de qualidade satisfatória. Trata-se de um nicho de mercado emergente, portanto não-relevante e excluído da regulação ex ante.


Se a telefonia por ADSL conquistar desenvolvimento importante, a análise dos mercados relevantes da telefonia fixa tradicional será influenciada, e a regulação, aplicada a este mercado. É a lógica das diretrizes que serão adotadas no plano europeu, e a ART não se atrasará nessa tarefa.


A regulação resultante das diretrizes leva em conta o objetivo de favorecer a inovação, segundo o conceito de mercado emergente. O papel da ART é encorajar e facilitar o desenvolvimento dos serviços inovadores, sejam eles desenvolvidos pela France Télécom ou por seus concorrentes.

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Advogado, São Paulo