Não me recordo o nome dela ou dizer ‘não me recordo’ talvez seja uma desculpa por não ter perguntado. Resolvi chamá-la de Maria porque talvez esse fosse o nome dela. Lembro-me bem, no entanto, da sua história e da minha surpresa ao saber que aos 32 anos de idade já tinha oito filhos, sendo que o mais velho acabara de completar 16. Olhando aquela mulher – negra, pequena, muito magra, com os cabelos em desalinho e um sorriso de poucos dentes, estragados – não pude deixar de sentir compaixão por ela. Convém explicar que compaixão nada tem a ver com pena e comiseração; uso a expressão para tentar demonstrar a forma como me senti diante de um ser humano que, assim como qualquer outro, deseja ser feliz, e não, sofrer. Tentei imaginar o mundo com o olhar dela. Tentei imaginar o que ela via e pensava, o que planejava para o futuro, que sonhos tinha.
Naquele sábado, Maria estava diante de Adriana, uma estudante de Medicina com pouco mais de 20 anos, para mais uma reunião mensal dentro da instituição que prestava atendimento às pessoas de uma comunidade pobre, em um loteamento na periferia de Jacaraípe, um dos bairros mais populosos do município da Serra, na região metropolitana de Vitória (ES). Formado por uma área nobre, que cobre toda a extensão da praia, o bairro se viu formado por várias ocupações irregulares um pouco mais distantes. Adriana tinha como tarefa orientar as mulheres da comunidade sobre prevenção à gravidez e doenças sexualmente transmissíveis.
Importante para alguém
Maria era acompanha pela estudante há dois anos. Tinha ido ao programa logo após ter dado à luz seu oitavo filho e pediu à estudante algo que não a deixasse ter mais filhos. Já havia feito o pedido ao ginecologista que fez seu parto, mas não soube explicar por que não tinha sido atendida e não pôde ser ‘operada’. Antes dos encontros na instituição, Maria já havia tomado anticoncepcionais, mas sempre os deixava de lado em algum momento, por esquecimento ou por vontade, não se sabe. O resultado surgia nove meses depois. Nesses dois anos em que se encontrou com Adriana todos os sábados, ela tomou o remédio na hora certa, sem esquecer um dia sequer e, apesar de viver com um companheiro, não havia engravidado. Expressei em voz alta o que tinha pensado: o que mudou? Ela sorriu e sacudiu os ombros.
Observei a conversa entre ela e a estudante de Medicina, que durou pouco mais de 10 minutos, pois havia mais quatro ou cinco mulheres esperando do lado de fora da sala. Adriana perguntou se ela estava bem, se estava se alimentando direito, se estava preparando a comida conforme a sua orientação, se bebia muita água e se cuidava da higiene pessoal. Perguntou também se estava dormindo direito, se estava limpando a casa, se os filhos estavam bem, se o companheiro havia encontrado um trabalho, se estava feliz.
O tom de voz de Adriana era sério, cordial e de sincero interesse. A mulher não falava nada que já não soubesse, mas perguntava assim mesmo. Não era uma consulta médica; era uma conversa de amiga interessada e preocupada. Pensei se esta não seria a diferença e porque aquela mulher teria ido durante oito anos aos postos de saúde, recebido atendimento médico, pegado o remédio na farmácia pública e engravidado mesmo assim. Desde que começou a frequentar a instituição, ela se comprometeu com Adriana de que não teria outro filho; e todos os sábados confirmava o compromisso. Pode ser que tenha assumido esse compromisso depois de perceber que era importante para alguém, ainda que esse alguém a visse uma vez por semana, por 10 minutos apenas.
Um processo fragmentado
A história de Maria não é apenas uma história que me comoveu. Assim como ela, há muitas mulheres jovens, muito jovens, que parecem ter mais idade, com muitos filhos e com a sensação de que o mundo se resume a um ir e vir da maternidade a cada nove meses ‘porque a vida é assim’. A história de Maria surgiu em minha memória ao ler sobre a morte de Zilda Arns e suas iniciativas para reduzir a mortalidade infantil. Iniciativas que, em alguns momentos, foram desacreditadas e até desconsideradas, dada a simplicidade dos métodos.
O grande trunfo de ‘dona Zilda’ – e, por que não dizer, da estudante Adriana – se chama comunicação. Suas idéias e iniciativas não teriam alcançado sucesso se não houvesse a firme disposição de entrar no mundo de quem se beneficiaria delas. Ela tinha convicção de que não bastava montar um posto de distribuição de multimistura ou formar um grupo para ensinar às mães a preparar o soro caseiro. Informar apenas não seria suficiente para evitar a diarréia, a desidratação, a desnutrição e a morte. Era preciso mostrar a importância da família na manutenção da saúde das crianças, era preciso verificar as condições de higiene em que viviam essas famílias e era preciso, fundamentalmente, acompanhar suas vidas e se interessar por elas. Era preciso se comunicar com as mães, entrar no mundo delas, fazê-las compreender os motivos pelos quais medidas tão simples podiam representar a fronteira entre a saúde e a doença.
Adriana, a estudante de Medicina, parece ter vencido o desafio da comunicação com Maria ao tratá-la com um ser único, com uma história única, com desejos, sonhos e frustrações compartilhados por milhares de mulheres na mesma situação, mas incapazes de vivê-los da mesma maneira. Ao transformar cidadãos em números e estatísticas, o poder público e as políticas públicas estabelecem um processo de comunicação de mão única, fragmentado, incoerente. E ao receberem informação – como uma cartela de anticoncepcionais entregue por um funcionário do posto de saúde a cada 30 dias – quem deveria se beneficiar dos programas não se sente parte deles e, portanto, não vê motivos para se comprometer a mudar suas atitudes.
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Jornalista, mestre em Educação, Serra, ES