Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma utopia pessoal

O engenheiro Neil Gershenfeld, diretor do Centro para Átomos e Bits do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT, sonha com uma revolução ligeiramente utópica. Em seu livro Fab: a próxima revolução no seu desktop – do computador pessoal ao fabricador pessoal (ed. Basic Books, sem tradução em português), Gershenfeld faz uma analogia até que sensata. Assim como os mainframes, os grandes computadores, evoluíram de máquinas que ocupavam andares inteiros de prédios para notebooks ou celulares inteligentes, ele acha que em pouco tempo as enormes e pesadas máquinas de manufaturas, que produzem peças esculpindo blocos de metal, vão seguir curso semelhante. Logo estarão ocupando lugar na mesa de trabalho, ao lado das baratíssimas impressoras jato de tinta.

Mas quem quer fabricar coisas em casa, em vez de comprar manufaturas baratas made in China?

Aí entra a utopia. Segundo a interpretação histórica e filosófica de Gershenfeld, a humanidade perdeu na revolução industrial uma das mais charmosas e poderosas qualidades, a de homo habilis. O artesão da era pré-industrial, do ferreiro fabricador de ferraduras ao relojoeiro, tinha uma dimensão existencial (ou espiritual) que foi perdida pela produção em larga escala das fábricas cheias de trabalhadores escravizados e alienados.

Tais habilidades sobreviveram marginalmente nas habilidades de hobbistas e inventores de garagem, especialmente nos Estados Unidos, mas como instituição, os artesãos foram varridos como pilares da sociedade. Para o engenheiro, a restauração dessas habilidades equivale a reinventar a arte humana perdida. “Isso emergiu na Renascença com a maestria nas artes liberais. Liberal aqui tem o sentido de libertação, não o sentido político moderno”, escreve ele no seu livro.

Processo reduz o peso das peças

Sonhos e utopias à parte, as revolucionárias ideias de Gershenfeld nesse campo em que ele foi pioneiro – foi eleito um dos jovens 50 líderes de pesquisas premiados em 2004 pela revista Scientific American – já chegaram irreversivelmente às grandes manufaturas inovadoras. No mês passado, a revista britânica The Economist publicou um balanço do estado da arte nessa mudança que pode ser revolucionária para as indústrias customizadas, ecologicamente corretas e muito mais econômicas pelo controle de desperdício. Em Bristol, no complexo industrial onde foi construída a frota dos aviões supersônicos Concorde, “algo ainda mais marcante está sendo criado”, diz a Economist.

À primeira vista pode parecer decepcionante para o leigo. Trata-se apenas de uma forquilha metálica, de titânio, do tamanho de uma caixa de sapato, mas a mudança de paradigma tecnológico é radical. A modesta peça, que tem de suportar as forças de um trem de pouso de grandes aviões na aterrissagem, foi literalmente impressa em finas camadas de titânio em pó pulverizadas e solidificadas com varreduras de raios laser. A etapa seguinte é “imprimir” uma asa inteira de avião, basicamente da mesma maneira que uma impressora jato de tinta vai depositando finas gotículas de tinta no papel.

A nova tecnologia é disparadamente mais segura e econômica. As máquinas impressoras 3D depositam metodicamente o pó de titânio a cada passagem da cabeça da impressora em camadas de 0,02 milímetros, que são em seguidas fundidas e endurecidas com perfeição por lasers ou feixes de elétrons. Não há sobras ou rebarbas, o processo é mais rápido que a usinagem tradicional e consome menos energia. O mais espetacular: o processo reduz o peso das peças expressivamente. No caso dos aviões, cada quilograma a menos representa uma economia de US$ 3 mil por ano em combustível. Com menos combustível queimado, menos CO2 e, portanto, menos gases de efeito-estufa.

Por que importar bugigangas baratas da China?

O uso de impressoras 3D não é tão novo. Há décadas elas têm sido usadas para fazer protótipos. A novidade é que não usam mais o processo tradicional de brocas esculpindo a peça em um bloco de metal, tudo controlado por um computador. Esse é o processo chamado “subtrativo” na indústria. O novo sistema é “aditivo”, pois vai acrescentando finas camadas do material pulverizado. O resultado final não precisa aparar rebarbas ou ser polido – sai brilhante e perfeito, pronto para ser instalado. Como o processo é controlado por computador, os antigos moldes que reinaram na indústria metalúrgica simplesmente são aposentados, o que é também uma economia de material.

Como não poderia deixar de acontecer, já existem muitas ideias malucas. O engenheiro Siavash Mahdavi, diz a Economist, está fabricando o que ele considera ser “o mais confortável e ergonômico salto alto estileto da praça. Seriamente, a empreitada aparentemente fútil é testar a ideia e modelo de negócios de “customização em massa”. Pois basta um pequeno ajuste no design computadorizado do produto para que se obtenha rapidamente uma peça personalizada. A aplicação mais prática: uma máquina que imprime coroas e implantes dentários faz 450 delas por dia, com uma perfeição impossível do atual demorado processo de usinagem usado pelos dentistas especializados.

Os atentos chineses já estão investindo maciçamente na nova tecnologia, pois perceberam que vai sobrar para eles. A Economist lembra que os dias das manufaturas baratas feitas por exércitos de mão-de-obra barata – de brinquedos a eletrônicos – estão contados. Por que o Ocidente deveria importar bugigangas baratas da China se pode imprimi-las com economia e sem frete, numa garagem?

Laboratório de US$ 20 mil no meio da selva

A formação de especialistas na área está acesa, mas com um viés muito bizarro. No campus do MIT, centenas de alunos brigam pelas poucas dezenas de matrícula disponíveis nos laboratórios do curso conduzido por Gershenfeld, que tem o provocativo nome de “Como fazer (quase) qualquer coisa”. Os critérios de admissão são explicitamente nebulosos, pois Gershenfeld quer testar suas teorias em pessoas comuns, os futuros usuários da sua geringonça faz-tudo.

Mas o lado mais desconcertante do projeto de Gershenfeld é a humanização da tecnologia, com tintas políticas claras de um militante político. Ele não quer que seu trabalho seja apropriado apenas pelos países do primeiro mundo, deixando à margem as populações do mundo em desenvolvimento. No vilarejo de Pabal, na Índia, com pouco mais de cinco mil habitantes, onde Gershenfeld instalou um centro operacional, os estudantes desenvolveram um sensor óptico baseado numa webcam barata para medir o conteúdo de gordura do leite, o que acabou de vez com as pendengas entre produtores e compradores de laticínios. Em Takoradi, Gana, na África, o insólito laboratório de US$20 mil no meio da selva permitiu aos locais a produção de moedores de mandioca.

Máquinas que podem fazer outras máquinas

O pulo do gato de Gershenfeld é fazer com que pessoas até sem formação tecnológica operem conectadas para literalmente esculpir os objetos desejados, com uma precisão de um milionésimo de metro. Com essa precisão de corte, as partes podem ser encaixadas com ligeira pressão, sem necessidades de parafusos, pregos ou colas. Ele tem fé cega na famosa Lei de Moore, segundo a qual, a cada 18 meses o poder de processamento dobra e o custo cai pela metade. Em uma ou duas décadas, profetiza Gershenfeld, você poderá comprar um Fabricador Pessoal por US$ 1.000, abrigá-lo no seu escritório doméstico ao lado do PC e alimentá-lo com madeira, papelão, plástico ou metal para fazer qualquer coisa, com partes móveis, sensores, atuadores e motores de passo com preços na faixa de US$ 1.

Um microcontrolador, uma versão simplificada de um processador eletrônico de computador, custa atualmente cinquenta centavos de dólar e pode controlar processos de milésimos de segundo, mais do que suficiente para controlar qualquer tarefa que o inventor queira. Assim, depois de esculpir e montar a parte formal da sua invenção, o usuário doméstico pode agregar partes móveis controladas por esses microcontroladores que vão fazer, se for o caso, movimentar um conjunto de micromotores de passo, também baratíssimos.

A segunda geração de Fabricadores Pessoais, acredita Gershenfel, vai simplesmente poder se replicar e construir suas irmãs, barateando ainda mais os custos. “Estamos no limiar de fazer máquinas que podem fazer outras máquinas” profetiza o engenheiro.

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[Flávio de Carvalho Serpa é jornalista]