O britânico Roland Biggs assaltou um trem-postal em 1963. Nos vagões, em valores de hoje, havia em torno de 100 milhões de reais. Foi preso, fugiu da cadeia e veio parar no Brasil. Teve aqui um filho e, por isso, não foi extraditado. Riu das autoridades, gastou muito, teve boa vida.
Mas envelheceu. Ficou doente. Adoeceu de novo. Tornou-se um inválido. Ainda assim, no fim de semana passado, conseguiu chegar aos 80 anos. E, de presente, o famoso larápio ganhou uma reportagem exclusiva – e comemorativa – na última edição do Fantástico (9/8), da Rede Globo.
Numa época em que não se consegue conter a criminalidade e os órgãos oficiais de segurança pública perdem terreno para os bandidos (que continuam agindo mesmo dentro das prisões), o programa de maior audiência da televisão nas noites de domingo glamuriza a desfaçatez de Biggs e afirma ao país que o mundo é dos espertos.
Quero ser o ladrão
Ao ver a reportagem, duas situações me vieram à mente. A primeira, uma gincana entre pais e filhos que se passou, no início de março, no Programa Sílvio Santos, do SBT. Na apresentação dos participantes, ocorreu o seguinte diálogo:
‘Qual é a profissão do seu pai?’ – perguntou o apresentador.
‘Ah, é melhor nem falar…’ – respondeu a menina.
Quase num sussurro, o pai interveio:
‘Sou policial.’
O segundo fato se deu menos de uma semana atrás, quando levei minha filha de seis anos a um parque público perto de casa. Ao nosso lado, três meninos, pouca coisa mais velhos do que ela, se juntaram:
‘Vamos brincar de polícia e ladrão!’ – decretou o primeiro.
‘Eu sou o ladrão!’ – candidatou-se o segundo.
‘Eu também!’ – ofereceu-se o terceiro.
Negócio é sair no tapa
Ainda no Fantástico, amplo destaque para uma cena recente da novela Caminho das Índias: nela, a personagem Natália, interpretada por Christiane Torloni, espanca a vilã Yvonne (Letícia Sabatella). Esta ganhara valiosas jóias de Ramiro (Humberto Martins), marido de Natália. Uma surra vingadora.
Pois levaram Letícia Sabatella ao estúdio do Fantástico para falar no assunto. Ela parecia desconfortável ao tratar do tema, diante do enfoque imposto pela produção do programa: opiniões populares sobre a agressão à personagem (com comentários do tipo ‘Eu faria o mesmo’, ‘Apanhou pouco’, ‘Quem merecia a surra era o marido’) e uma entrevista com um especialista em novelas, cujo nome não me lembro, que relatou, animado, as mais memoráveis trocas de sopapos de todos os tempos nas novelas da Globo.
Agressões físicas acontecem, sim, na vida real. Mas tenho para mim que a repercussão de um caso fictício em mídias de grande audiência pode fazer com que pessoas traídas troquem um diálogo sério, pacífico e definitivo com o cônjuge pela pancadaria geral e irrestrita. Não há Lei Maria da Penha que dê jeito.
Em tempo: vi na Folha Online que, no capítulo desta noite (11/8), um marido traído (Abel, interpretado por Anderson Müller) não mais irá esbofetear a mulher (Norminha, por Dira Paes). Ao descobrir as escapadas da esposa, jogará seus pertences pela janela de casa e a mandará embora.
Terá a Globo sido sensível a eventuais apelos de não agressão ou percebeu que o negócio é sair no tapa, mas nem tanto?
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Repórter de A Tribuna, Santos, SP