Um acordo firmado no último dia 13 de novembro entre a empresa Yahoo! e dois jornalistas chineses dissidentes reacendeu uma interessante discussão sobre os valores e o comportamento das empresas do universo pontocom.
O caso refere-se a Wang Xiaoning e Shi Tao, jornalistas dissidentes que foram presos pelo governo chinês por terem distribuído, via internet, informações proibidas pelo regime local. Até aí, tratava-se de mais um ato de exceção de um governo autoritário. O problema é que parte das ‘provas’ contra eles foram fornecidas pela filial do Yahoo! em Hong Kong.
Shi Tao, foi condenado a 10 anos de prisão em 2005. Para piorar, os dissidentes alegam ter sido torturados no cárcere. A repercussão do caso na mídia fez com que as famílias dos condenados entrassem com uma ação nos EUA contra o Yahoo!, co-responsabilizando a empresa pela prisão – e tortura – dos dissidentes. O acordo anunciado em 13 de novembro (cujos valores financeiros não foram divulgados) pôs fim à ação judicial, mas nem de longe deu uma trégua ao Yahoo!.
Conforme o assunto atraía o interesse de entidades defensoras dos direitos humanos – e de deputados norte-americanos –, foram aparecendo detalhes pouco edificantes da participação da empresa na história. As investigações paralelas trouxeram à tona as incongruências entre o discurso corporativo do Yahoo! e a prática de sua filial em Hong Kong. Em 2006, o vice-presidente da empresa, Michael Callahan, afirmara aos deputados norte-americanos, em audiência pública no Congresso, que o Yahoo! não sabia os motivos pelos quais o governo chinês solicitara os dados dos usuários. Nos meses seguintes, descobriu-se que a empresa sabia, sim, o motivo: os dois eram suspeitos de terem difundido ilegalmente ‘informações secretas’, segundo as autoridades.
Valores, princípios e privacidade
No início de novembro deste ano, o mesmo vice-presidente enviou carta aos parlamentares pedindo desculpas e dizendo que a informação correta sobre o pedido do governo chinês somente chegara até ele meses após seu depoimento. Um porta-voz do Yahoo! tentou justificar, dizendo que o problema foi causado pela tradução errada de uma ordem das autoridades chinesas recebida por um advogado da empresa na China, em 2004. O advogado só obteve a tradução correta depois da audiência de 2006, segundo o porta-voz. Tratava-se, segundo ele, de um ‘mal-entendido’.
‘Que mal-entendido, que nada’, rebateu o deputado democrata Tom Lantos. ‘Trata-se de um comportamento negligente indesculpável, na melhor das hipóteses, ou de uma postura deliberadamente enganosa, na pior.’ Uma semana depois, o presidente do Yahoo!, Jerry Yang, foi convocado a comparecer ao Congresso. Afirmou que a empresa estava disposta a colaborar com o Parlamento e que era ‘totalmente comprometida com a defesa dos direitos humanos’. Mas o discurso não convenceu.
O acerto judicial com as famílias alimentou ainda mais o debate. O Yahoo! e outros players globais no mundo digital estão sendo questionados sobre qual deve ser a responsabilidade de uma empresa com atuação global, em relação aos valores, princípios e política de privacidade praticadas em seu país de origem – no caso, os Estados Unidos.
Escandalosamente colaboracionista
Em sua defesa no Congresso, o Yahoo! justificou-se afirmando que uma empresa que atua em outro país deve respeitar as leis locais. No caso chinês, o jornalista Shi Tao foi preso por ter repassado a colegas de outros países o e-mail recebido do Partido Comunista a jornalistas locais, determinando que nenhum jornalista deveria cobrir as eventuais manifestações do 15º aniversário do massacre da Praça da Paz Celestial, em 2004. Para o governo chinês, o alerta era um ‘segredo de Estado’.
A prisão e condenação dos dois dissidentes foi amplamente noticiada. Passado o calor da história, a discussão migrou dos tradicionais sites noticiosos para a blogsfera – para desespero dos executivos do Yahoo!. Pois os blogueiros começaram a questionar se, ao revelar às autoridades chinesas a identidade dos autores dos e-mails, a empresa de fato desconhecia que aqueles usuários seriam condenados com base numa lei contrária aos princípios da liberdade de expressão.
Políticas de confidencialidade de sites explicitam que, em casos como a pedofilia, o provedor permite-se revelar os dados do usuário às autoridades para que sejam tomadas as medidas legais cabíveis. Mas no caso chinês a discussão é ética: para alguns blogueiros, o interesse maior do Yahoo! foi garantir um espaço privilegiado no mercado de web chinês, um dos mais promissores do mundo. (Logo que entrou no país, o Yahoo! aceitou adotar a censura prévia em seu mecanismo de busca na China.) Alicerçado no discurso de ‘respeito à legislação local’, isso significa não somente fazer vista grossa aos abusos repressivos do governo local – mas sobretudo ser escandalosamente colaboracionista com os desmandos da polícia chinesa.
Estrago financeiro e de marca
Pior para o Yahoo!. Pois os discursos de seus executivos perante os deputados norte-americanos escancararam uma postura eticamente duvidosa, no mínimo. Ou regionalizada, digamos. O que vale para os EUA não necessariamente vale para outros países menos democráticos. Ciente dos respingos que esse debate cause na percepção de sua marca, a empresa apressou-se em fechar o acordo com as famílias dos jornalistas presos.
No entanto, conforme o caso ganha espaço na blogsfera, mais argumentos pipocam contra a empresa. A Organização Mundial pelos Direitos Humanos acusou o Yahoo! de se ter beneficiado financeiramente do fato de ter ajudado as autoridades chinesas nesse trabalho sujo. E a crítica resvalou também em outro gigante da Web. ‘Yahoo! e Google têm ficado de joelhos perante o governo chinês e suas práticas de censura, desde que entraram no país, para garantir um espaço nobre no segundo maior mercado de internet do mundo.’
O blogueiro Phil Butler argumenta que a sociedade não pode aceitar que grandes companhias só admitam seus erros quando pressionadas. Pedem desculpas, como se isso resolvesse, e compensam financeiramente a família de uma vítima que ficará 10 anos presa. A verdade é que as ações do Yahoo! caíram cerca de 20% desde que o assunto voltou a ser notícia, no início de novembro. O custo financeiro de uma desvalorização dos papéis na bolsa é alto para uma empresa como o Yahoo!, mas pode ser recuperado no curto ou médio prazo, dependendo dos humores do mercado de capitais.
Já o estrago causado na percepção da marca junto ao público formador de opinião pode ser muito mais difícil de ser revertido. Ou seja, esse não foi um negócio da China para o Yahoo!.
******
Jornalista e professor da Faculdade Cásper Líbero; São Paulo, SP