Direto de Columbia
Dificuldades econômicas podem levar organizações ao vale-tudo na luta por cliques, mas a boa reportagem segue regras
Jornalistas literalmente “fabricam” notícias. Não acham a notícia por aí. Não publicam uma transcrição da realidade. Por mais que se esforcem, não dão uma cópia da realidade — mas a realidade emoldurada, a realidade realçada, a realidade reconfigurada por ser exposta em uma página ou tela, a realidade retocada pela magia da publicação em si.
Venha de uma molecada da Macedônia querendo ganhar um troco ou de gente de extrema direita que vê conspiração em tudo e quer causar tumulto, a “notícia falsa” virou parte do vocabulário político de hoje. É dificílimo dizer até que ponto o fenômeno das fake news influenciou a eleição presidencial nos Estados Unidos em 2016, mas que a ideia em si causou impacto é patente.
O atual presidente americano, Donald Trump, gosta de aparecer na mídia (como seus antecessores), mas em seu caso a tática normalmente é fazer pronunciamentos inconsequentes e sem nenhum fundamento.
Toda vez que um presidente americano abre a boca, no mundo todo muita gente presta atenção. Se despacha soldados para uma batalha, até muitos americanos que não veem sentido em guerras vão mostrar patriotismo. Se tiver um pólipo maligno removido do cólon (como Ronald Reagan), milhares de pessoas nos dias seguintes vão agendar uma colonoscopia. Se um mandatário pode involuntariamente levar os outros a se submeterem a uma colonoscopia, o que mais pode fazer com seus atos ou palavras? Quando um presidente declara que a grande imprensa é “inimiga do povo americano”, o que ficaria inclinado a pensar um cidadão normalmente ajuizado?
Realidade em primeiro lugar
A função do jornalista é fabricar notícias, assim como a função do pedreiro é construir casas. Os dois ofícios têm regras. A primeira regra para o jornalista comprometido com o trabalho é colocar a realidade em primeiro lugar. Um jornalista responsável não produz notícias falsas, nem notícias exageradas ou notícias corrompidas. Não subordina o relato honesto à coerência ideológica ou ao ativismo político. Não tenta agradar anunciantes ou se ajustar aos interesses comerciais do veículo — nem às preferências do público.
No último século, a tendência dominante na história do jornalismo americano foi a profissionalização de uma equipe de repórteres que apura notícias. O jornalismo é anterior à reportagem, mas da década de 1820 em diante a reportagem passou a ser o centro do jornalismo americano. Na Europa não era assim; alguém observou que, lá, “a reportagem [estava] matando o jornalismo” — ou seja, o relato direto dos acontecimentos do dia estava roubando o foco dos ensaios discursivos sobre teoria, filosofia e em defesa de bandeiras políticas que dominavam grande parte da imprensa europeia. Foi só no século 20 que essa imprensa começou a se valer de técnicas jornalísticas americanas, como a entrevista, e de normas do jornalismo americano que punham a reportagem em primeiro lugar.
Mas será que o modelo americano de jornalismo não nega a verdade de que os supostos “fatos” não passam de opiniões disfarçadas? De que tudo é relativo e só depende de seu ponto de partida? Na primeira aula de filosofia da faculdade, a maioria dos calouros já vai dizendo que “tudo é relativo” e que o que o outro diz “não passa de opinião!” — que não há pesquisa, argumento ou discussão capazes de alterar nossas pré-concepções.
É por isso que são chamados de calouros. Se pararmos para pensar, nenhum desses estudantes realmente crê que tudo é relativo. Se, no meio da aula, um aluno desses sentir uma dor forte e aguda no peito, ele vai ficar preocupado. Suas opções serão perguntar ao professor de filosofia o que fazer, ouvir o conselho do aluno na carteira ao lado ou pedir a outra pessoa que chame o serviço médico de urgência. Qual vai escolher: A, B ou C? C. Vai buscar atendimento médico. A realidade parece estar batendo insistentemente à porta, e o compromisso prematuro com a tese universal de que “tudo é relativo” é rapidamente abandonado. Em questão de segundos, o aluno acredita em fatos, no conhecimento especializado, na formação científica, na experiência clínica. Seja relativista, modernista ou pós-modernista, de esquerda ou de direita, esse aluno vai buscar um médico o mais rápido possível.
Apuradores com reputação
Quando queremos saber o que está acontecendo no mundo nesse ou naquele dia, não ligamos para o 192. Recorremos a apuradores profissionais de notícias que têm reputação de serem confiáveis. Mas como saber que provedores de notícias a nossa volta merecem confiança? Considere a seguinte lista de indicadores de qualidade probatória:
1. Disposição de retratar-se, corrigir e implícita ou explicitamente pedir desculpas por informações equivocadas. O repórter da Time que erroneamente afirmou que o presidente Trump ou seus assessores tinham retirado o busto de Martin Luther King Jr. do Salão Oval da Casa Branca se retratou e corrigiu a matéria em questão de horas. É isso que fazem jornalistas e meios de comunicação responsáveis.
2. Ética profissional, o que inclui:
– Ser exato. Grafe o nome corretamente. Dê o endereço certo. Não há espaço para “tudo é relativo” aqui. E redija um texto que conta o que aconteceu, não o que você acha sobre o que aconteceu.
– Buscar evidências em contrário. Na apuração, “vá contra suas próprias suposições”, dizem meus colegas da Columbia Journalism School aos alunos.
– Seguir em frente independentemente das consequências políticas. Se for um repórter, e não um propagandista, você seguirá a pista vislumbrada ainda que possa prejudicar a carreira do candidato ou do partido que você (pessoalmente) prefere ou que seu jornal apoia. O New York Times apoiou várias vezes a candidatura de Eliot Spitzer a um cargo eletivo em Nova York, incluindo sua campanha para governador em 2006. Mas foi o jornal quem primeiro expôs o escândalo sexual que levou Spitzer, já governador, a renunciar [o político foi denunciado por usar os serviços de uma rede de prostituição]. O verdadeiro repórter põe uma notícia veraz acima de vantagens partidárias ou de preferências políticas, seja qual for o preço.
3. Jornalistas confiáveis também adotam certos recursos literários identificáveis, como os seguintes:
– Exibir calma e ser declarativo. Nada de histeria.
– Apresentar vários lados ou pontos de vista em uma matéria caso o assunto seja controverso e (diferentemente do “falso equilíbrio”) se os distintos lados tiverem valores diferentes mas não forem divididos pelo reconhecimento de uma evidência científica consensual e pela sua rejeição.
– Identificar suas fontes sempre que possível. E reconhecer as lacunas, incongruências ou insuficiências nos dados que fundamentam sua matéria.
– Usar dados e fontes de dados comumente aceitos e autoridades fiáveis. Se for escrever sobre o número de pessoas que usaram o metrô em Washington no dia da posse de Barack Obama em 2009 e no dia da posse de Donald Trump em 2017 para saber qual foi maior, pergunte ao órgão de trânsito local, que possui essa informação. Se preferir ficar com a palavra do presidente Trump, saiba que você não é jornalista, mas otário. Trump demonstra reiteradamente que aceita dados favoráveis a ele e se nega a reconhecer todos os que não são. Vaidade pessoal não é uma fonte de dados comumente aceita.
– Investigar evidências e pistas que vão contra seu palpite, suas paixões e suas preferências e, quando essa evidência for irrefutável, dê a ela espaço adequado em sua matéria. O trabalho profissional de reportagem não é fácil. É uma atividade ainda jovem— não se pode dizer que exista em sua forma mais plena há muito mais de um século. Não é uma trajetória longa. Mas, em seus melhores momentos, provou ser um pilar de governos democráticos e transparentes e uma pedra no sapato de autocratas mundo afora. A fragilidade econômica dos meios de comunicação hoje é preocupante e, às vezes, leva organizações jornalísticas respeitadas a preferir cliques a consciência — mas jornalistas podem manter (e em geral o fazem) uma feroz lealdade a seus grandes ideais, e essa é uma força da qual seus inimigos não podem escapar. Quando o presidente Trump chamou a grande imprensa de “inimiga do povo”, muitos jornalistas reagiram com um esforço redobrado para cobrá-lo por suas palavras e seus atos. O jornalismo profissional em geral aprende rápido. É um “primeiro rascunho” da história, não a última palavra. Mas é o inimigo do orgulho, da pompa e da ignorância, e, portanto, um bom amigo do povo.
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Michael Schudson é professor de jornalismo e sociologia (docente associado) na Columbia University. Publicou, entre outros livros, The Rise of the Right to Know (A Escalada do Direito ao Conhecimento) e, com C.W. Anderson e Leonard Downie Jr., The News Media: What Everyone Needs to Know (A Imprensa: O Que Todos Precisam Saber).