EDITORIAL
“Por um dólar, você mal consegue comprar um punhado de balas de goma, mas por um dólar ou menos [o que se pagava por um exemplar de um bom diário] as pessoas esperam que a realidade e as representações da verdade lhe caiam de presente sobre o colo.”
Walter Lippmann, em Public Opinion, de 1922
Pravda, em russo, quer dizer “a verdade”. Em 1917, Pravda era o jornalzinho do Partido Bolchevique. Promovido a órgão oficial da União Soviética, atravessou o século 20 promovendo uma mentira atrás da outra. Você até pode alegar que no Pravda ninguém nunca fez jornalismo. Mesmo assim, de qualquer modo, não poderá argumentar que as palavras “jornal” e “verdade” guardem alguma proximidade de sentido. Na melhor das hipóteses, um jornal nos dá uma notícia, ou duas. Se não forem mentirosas, deliberada ou inadvertidamente, já estamos no lucro.
Lippmann já avisava: “A hipótese, que me parece a mais fértil, é que notícia e verdade não apenas não são a mesma coisa como precisam estar claramente separadas. A função da notícia é sinalizar um evento. A função da verdade é trazer luz para fatos ocultos, relacioná-los a outros, e traçar um retrato da realidade a partir do qual os homens possam atuar”.
E mesmo aí já estamos diante de um entendimento exageradamente esperançoso da verdade. Francamente. Essa história de “iluminar” fatos ocultos é bastante problemática. Até para os iluministas, aos quais devemos as ideias fundadoras da imprensa, já era muito complicado.
Quando muito, o jornalismo pode pretender estimular um ambiente de debate público em que os fatos de interesse geral fiquem mais acessíveis à inteligência dos cidadãos. Se registrar os fatos, apenas isso, “com tudo que é insolvente e provisório” (na síntese pouco jornalística de Carlos Penna Filho), já terá prestado um excelente serviço à sociedade. Artigos de opinião ajudam, assim como as análises menos indigentes e as interpretações minimamente fundamentadas. Com esse conjunto, um jornal honesto até pode contribuir para “trazer luz para fatos ocultos, relacioná-los a outros”, mas “a verdade”, bem, “a verdade”, na verdade, não tem quase nada a ver com isso.
Ademais, como esta não é uma revista de filosofia e também não é uma revista religiosa, sentimo-nos autorizados a deixar essa conversa para lá. Fôssemos seguir com ela, não teríamos tempo nem espaço para explicar que o nosso tema, nesta edição, não tem também nada a ver com “a verdade”, mas apenas com a “pós-verdade”, ou, pior, com a ressaca dessa overdose de “pós-verdade” que nos entorpece há alguns anos.
Em setembro de 2016, o semanário inglês The Economist saiu com uma capa sobre a “pós-verdade”, e até ali tudo bem. No final do mesmo ano, o termo “pós-verdade” foi declarado “a palavra do ano” pelo Dicionário Oxford, como um qualificativo de “um ambiente em que os fatos objetivos têm menos peso do que apelos emocionais ou crenças pessoais em formar a opinião pública”. A questão, como se nota, não é bem “a verdade” – filosófica, ontológica, metafísica, religiosa etc. –, mas os fatos. Esse é o ponto. Estaríamos vivendo uma era em que os fatos deixaram de lastrear as condutas e as ações humanas. Se isso for mesmo verdade, quer dizer, se o pós-fato é mesmo um fato, a política deixa de ser política – vira uma obra coletiva de ficção, num grau superior ao que pudemos testemunhar em eras anteriores.
As redes sociais agravaram o quadro geral. Nas fibras nervosas das ciberesferas, as máquinas engolfam a opinião pública com ofertas industriais de fake news, que se converteram num negócio altamente lucrativo. Para dizer a verdade, a civilização não anda bem, ainda que esta revista ainda esteja aqui, no front. E, enquanto é tempo, julgamos que não seria de todo ocioso dedicar as páginas que nos restam a uma reflexão apressada sobre os fatos que nos escorrem pelos dedos e as verdades que, de longe, parecem rir do reportariado atônito.