Não se sabe ao certo quantos somos hoje. Uma estimativa razoável é que existam perto de 150 ombudsmans em empresas noticiosas pelo mundo afora. Já foram mais presentes nos Estados Unidos. Ainda crescem em países da América Latina e ganham força no continente africano.
A ONO (Organization of News Ombudsmen), entidade que congrega os representantes dos leitores, tem hoje 52 associados. Europa e América do Norte ainda lideram no total de membros.
O termo ombudsman tem origem sueca e significa “aquele que representa”. Essa raiz faz com que tradicionalmente a palavra não varie em razão do gênero do ocupante e que, no Brasil, seja flexionada como ombudsmans. Os americanos preferem ombudsmen. A pronúncia original seria “ômbudsman”, mas se consagrou no Brasil como palavra paroxítona. Por vezes, são conhecidos por títulos aparentados como editor público, advogado dos leitores e editor de leitores.
A função de ombudsman jornalístico completou 50 anos em julho de 2017. Uma empresa proprietária de dois jornais de Louisville, no Kentucky, sudeste dos Estados Unidos, criou o cargo em 1967 como forma de prestação de contas independente a seu público. Em 1970, o Washington Post foi o primeiro a criar a posição entre os grandes jornais. Em 2013, substituiu o ombudsman pelo crítico de mídia.
Pioneira na América Latina e no mundo lusófono, a Folha de S.Paulo instituiu a função em 1989, motivada pelo sucesso das experiências do Washington Post e do espanhol El País. Em 24 de setembro de 1989, a primeira página anunciava: “Ombudsman traz ao leitor os erros da Folha”. Tratava-se de chamada para coluna de estreia de Caio Túlio Costa, o primeiro ombudsman da imprensa brasileira, sob o título: “Quando alguém é pago para defender o leitor”.
Em 28 anos, alguns poucos jornais brasileiros repetiram o modelo da Folha, em geral, por períodos curtos. O jornal O Povo, de Fortaleza, é a exceção à regra. Desde 1993 mantém seu defensor dos leitores.
Resistente à criação da função, o jornal The New York Times só passou a ter um representante dos leitores em 2003, quando sua credibilidade foi abalada após integrante da sua redação ser flagrado em plágio e adulteração da notícia, publicando entrevistas inventadas e notícias falsas.
Acabou com o cargo neste ano de 2017, sob o frágil argumento de que ele não é mais necessário porque “seguidores em redes sociais e leitores na internet constituem, juntos, como um cão de guarda, uma forma moderna de fiscalização, mais vigilante e poderosa do que uma pessoa sozinha jamais poderia ser”, nas palavras de Arthur Sulzberger Jr., publisher do NYT.
Foi a coroação de uma tendência que já vinha sendo sentida em razão da crise financeira das empresas jornalísticas em todo o mundo.
Na direção da justificativa dada pelo publisher do New York Times, o último ombudsman do WP, Patrick Pexton, disse que os editores perguntavam “por que ter um ombudsman pago para criticar o jornal, quando temos milhões de leitores fazendo isso de graça por meio das redes sociais?”
Nos últimos 16 meses como ombudsman da Folha, extraí o significado e a importância da função para aquele a quem ele é destinado: sua excelência, o leitor.
Diálogo aberto
Quando critiquei em minha coluna semanal a extinção do ombudsman no NYT, recebi muitas mensagens que reverberavam a importância do cargo:
“O ombudsman tem o condão de transformar o contato com o leitor num diálogo aberto, não mais um monólogo fechado consigo mesmo. Anula o distanciamento entre a imprensa e o público num esforço de transparência. Ilumina os bastidores da política, da sociedade e do próprio jornal”, asseverou um leitor.
O leitor não é um ente abstrato para quem exerce o cargo: “A coluna do ombudsman sempre foi um termômetro para mim. Por meio desse espaço, encontro voz às minhas críticas (que nunca são poucas). Estava sentindo falta de uma provocação mais visceral às posições do jornal”, escreveu-me um assinante.
“Tenho imensas críticas a formular ao jornal, em razão da linha editorial que vem sendo adotada nos últimos anos. Escrevo para reafirmar minha convicção de que a função de ombudsman é necessária, na medida em que lhe cabe criticar o jornal, sob a perspectiva do leitor. Se a publicação se afasta do público, nada mais saudável, no plano interno, que haja alguém indicando as correções de rumo”, analisou outro leitor da Folha.
A maior parte das queixas que recebo diz respeito a reportagens do primeiro caderno. “…temos opiniões formadas sobre tudo (e todos). Muitas vezes, em tempos polarizados, são mais desabafos do que compreensão e análise. O ombudsman está na razão da existência da Folha”, afirmou um dos meus correspondentes.
Um aspecto menosprezado na função de ombudsman é que só a manutenção do canal aberto com o leitor já se traduz em benefícios para as duas partes. Atender, ouvir e responder ao leitor são atos que reforçam laços de confiança e identificação. Por mais queixoso que seja ou esteja, o contato direto leva o leitor a reconhecer-se no jornal que escolheu como seu.
Enquete informal que fiz com 20 dos interlocutores mais assíduos no departamento de ombudsman permitiu constatar que a quase totalidade acredita que suas solicitações e críticas são encaminhadas aos responsáveis, mas muitos avaliam que as recomendações da ombudsman não são levadas em conta pela redação.
Será?
Efeito interno e externo
Gostaria de citar dois casos ocorridos durante meu mandato como ombudsman que são representativos da reverberação da função internamente no jornal e na sociedade como um todo. São exemplos também da pressão a que está submetido quem o exerce.
Em julho de 2016, no calor do processo de impeachment que dividiu o país, a Folha divulgou dados de pesquisa do Datafolha que se tornou polêmica em razão de critérios editoriais que considerei equivocados.
A questão central estava na acusação de o jornal ter omitido, deliberadamente, que a maioria dos entrevistados (62%) se disseram favoráveis a novas eleições presidenciais, em cenário provocado pela renúncia de Dilma Rousseff e Michel Temer. A redação da Folha optou por destacar que 50% preferiam a permanência de Temer à volta de Dilma.
Desde que assumi o mandato, nenhum assunto mobilizou tanto os leitores. A cada dez mensagens, seis continham críticas e acusações ao jornal. Variavam de fraude jornalística e manipulação de resultados a pura e simples má-fé, passando por sonegação de informação e interpretação tendenciosa.
Na crítica que circula diariamente, questionei a abordagem da pesquisa feita pela redação, que destacava em manchete o otimismo com a economia e subaproveitava os humores políticos dos entrevistados.
Sugeri que o jornal reconhecesse seu erro editorial e destacasse os números ausentes da pesquisa em nova reportagem. A redação resistiu. Como resumi, errou e depois persistiu no erro.
O jornal cometeu grave erro de avaliação. Não se preocupou em explorar os diversos pontos de vista que o material permitia, de modo a manter postura jornalística equidistante das paixões políticas. Tendo a chance de reparar o erro, encastelou-se na lógica da praxe e da suposta falta de apelo noticioso.
A reação pouco transparente, lenta e de quase desprezo às falhas e omissões apontadas maculou a imagem da Folha e de seu instituto de pesquisas. Meses depois a cúpula da redação reconheceu que errara, refazendo a pesquisa e desta vez destacando a prevalência das eleições diretas entre os consultados.
O que parecia uma batalha perdida para o defensor dos leitores na visão imediata mostrou-se modificadora nas ações do jornal no desdobramento próximo.
Falha de apuração
Outro momento polêmico desvendou falha grave na forma de apuração dos principais veículos de comunicação brasileiros.
Em coluna publicada em março de 2017, questionei a cobertura dos principais órgãos de comunicação sobre os pedidos de abertura de inquérito no âmbito da Lava Jato, baseados nas delações premiadas de executivos e ex-executivos da construtora Odebrecht. Concorrentes entre si, os jornais traziam versões inacreditavelmente harmoniosas. Entre dezenas de envolvidos na investigação, vazaram para os jornalistas nesse primeiro momento os mesmos 16 nomes de políticos, sem que se soubesse o critério utilizado.
Apurei que as informações foram obtidas em encontro de jornalistas e representantes da Procuradoria-Geral da República, sob condição de off, quando a fonte da reportagem não é identificada no texto.
Com uma observação crítica à prática jornalística, terminei em meio ao tiroteio verbal entre o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes.
Mendes criticou os procuradores por fazerem “chantagem” ao vazar informações sob sigilo. O procurador-geral procurou desqualificar a apuração que eu fizera. Reagiu ao ministro do STF, acusando-o de sofrer “disenteria verbal”.
Além das fronteiras
As informações que publicara haviam sido confirmadas por mais de três
fontes independentes. A missão primeira do ombudsman não é apurar notícias, mas, nesse caso, cabia apurar, verificar e publicar em nome do leitor que paga pela informação e
em defesa da transparência e do bom jornalismo.
Os leitores manifestaram apoio quase unânime. “Ao demonstrar a forma pasteurizada como os três grandes jornais cobriram o tema, você expôs um problema que vai além das fronteiras do jornal em que atua”, escreveu um.
“É fato que a grande imprensa está perdida; ainda não encontrou sua posição em um mundo em que TV, sites independentes e redes sociais trabalham com uma agilidade nem sempre positiva, mas real”, analisou outro.
Como resultado da coluna que escrevi, diversas redações mudaram sua relação com o Ministério Público Federal, e os próprios procuradores foram obrigados a rever procedimentos que adotavam informalmente.
Muitos desafios
Em cenário de crise, o investimento na função de ombudsman é saudável aporte na qualidade jornalística e na defesa da credibilidade do jornal.
Os desafios imediatos da função que exerço podem ser resumidos em três pontos predominantes:
1) o mundo mudou na velocidade da informação, na administração do tempo e na forma de consumo de notícias; e os jornais ainda estão tateando os caminhos jornalísticos, financeiros e administrativos para se adequarem a essas mudanças;
2) em geral, os jornais estão superficiais, sendo construídos por pautas pouco criativas e pouco surpreendentes, agarradas a narrativas ultrapassadas no estilo e no formato;
3) em tempos de radicalização, o exercício do jornalismo com equilíbrio, resguardando a diferença entre opinião, análise e informação, tornou-se valor raro e de difícil qualificação.
A essas questões estruturais somam-se outras mais pontuais. A palavra da moda é “pós-verdade”. O substantivo diz respeito a circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos importância do que crenças pessoais e políticas.
A palavra é usada por quem avalia que a verdade está perdendo importância no debate político. Segundo o Dicionário Oxford, o termo pós-verdade foi usado pela primeira vez, com a definição atual, em 1992 pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich em um artigo de revista.
Tesich afirmava nele que todos os ditadores sempre tiveram que trabalhar duro na supressão da verdade. Reclamava de que as pessoas estavam adotando mecanismos para despir a verdade de qualquer significado. “De uma maneira muito fundamental, nós, como pessoas livres, decidimos livremente que queremos viver em algum mundo da pós-verdade”, definiu Tesich.
A pós-verdade dominou o mundo virtual e deixou de ser um termo periférico para se tornar central no comentário político e finalmente penetrar nas produções jornalísticas.
Assim deu uma nova causa ao jornalismo, uma razão de viver extra para uma prática centenária. Usar ferramentas, profissionais e meios confiáveis para separar rumores de fatos. Produzir notícias verificáveis e confiáveis. O jornalismo é, assim, o lugar distintivo para a informação de qualidade em meio à avalanche ruidosa das redes sociais e dos robôs disseminadores de boatos, distorções e mentiras deslavadas.
Alto nível de exigência
Na era da pós-verdade, a credibilidade e a confiança das organizações de notícia certamente serão fundamentais para garantir a longevidade do negócio de notícias. A figura do ombudsman parece se encaixar perfeitamente nesse cenário.
Em análise que fez do exercício da função, um pesquisador americano concluiu que a maioria dos ombudsmans que estudou não se envolveu em críticas públicas regulares de suas organizações de notícias. Apontou que se sentiram desconfortáveis em fazê-lo porque a avaliação jornalística envolve razoável grau de subjetividade. Reclamaram de que o questionamento de desvios éticos pode causar problemas de convivência com colegas de trabalho.
Só posso responder que, num jornal como a Folha, o ombudsman da ombudsman são os leitores aplicados, detalhistas e inquietos que a alimentam. Se um representante dos leitores não mantiver alto nível de exigência em questões sobre ética, transparência, equidade e precisão, de fato não estará à altura da função.
Como alertou um de meus antecessores, é a mais solitária das funções e, por vezes, frustrante. Exige dedicação e tempo e, de fato, é em geral vista com antipatia pelos profissionais do jornalismo.
Seu potencial de conflito se exacerba em países em que a democracia se fragiliza. Na Turquia, para citar um exemplo, dois ombudsmans chegaram a ser presos. O país vive uma escalada autoritária que já levou à detenção de mais de 200 jornalistas.
Leitores exigentes
Na Folha, desde 1989 foram 12 ocupantes a enfrentar o desafio de defender os leitores, criticar o jornal e analisar a mídia em geral. Em tempos de crise, é fato a ser comemorado. O editor-executivo, Sérgio Dávila, renovou o compromisso com os leitores: “A Folha não tem planos de acabar com o cargo de ombudsman. É uma das marcas do jornal e parte importante de seu projeto editorial.”
Encerro tentando responder à questão premente: por que uma empresa jornalística deve manter um ombudsman em seus quadros, com os decorrentes custos financeiros, para ser fustigada, exposta e criticada?
A sobrevivência dos jornais na era da hiperinformação não permitirá que abram mão de precisão, equidade, transparência e ética. Sendo assim, os ombudsmans não são parte do problema da sobrevivência dos jornais. São parte da solução.
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Paula Cesarino Costa é ombudsman da Folha de S.Paulo desde 2016. Na Folha há 30 anos, foi secretária de redação, diretora da sucursal do Rio, editora de política, de negócios, de especiais e coordenadora de treinamento.