Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Jornalista sob tutela

Casos de intimidação nas redes sociais estimulam debate sobre a liberdade de expressão
no emprego e também fora dele

Uma matéria informativa publicada em 13 de outubro de 2017, na Folha de S.Paulo, sobre o filme Como Se Tornar o Pior Aluno da Escola, levou o humorista Danilo Gentili, protagonista, produtor e roteirista da história, a desencadear um inferno em rede social contra o seu autor, o jornalista Diego Bargas, demitido do jornal no mesmo dia, ainda antes do final do expediente. O episódio teve ampla repercussão no ambiente da imprensa. Além de se somar como mais um exemplo de agressão e desrespeito à atividade jornalística em rede social, chamou a atenção para um problema-chave do exercício do jornalismo no Brasil de hoje: a limitação à liberdade de expressão, e até à cidadania, para o grosso dos assalariados que exercem a profissão.

Quando esse episódio ocorreu, vários casos de perseguição a jornalistas em rede social já haviam acontecido nos meses anteriores. E não estamos falando de colunistas ou blogueiros, de jornalismo opinativo. Tratamos aqui de reações a reportagens corriqueiras, que desagradaram autoridades ou certos setores sociais, sobre assuntos variados, como denúncias de abusos policiais, episódios envolvendo as Forças Armadas ou o desempenho de governantes, veiculadas em jornais, sites ou programas de rádio. Uma característica dessas agressões é que – mesmo quando incluíram o veículo noticioso – sempre tiveram como alvo principal as pessoas dos jornalistas, os autores das matérias, buscando intimidar e, no entender do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, censurar o direito à informação e a liberdade de imprensa.

Caiu na rede

Um exemplo é o do repórter Artur Rodrigues, também da Folha de S.Paulo, autor da matéria “Doações prometidas por Doria empacam” (7/7/2017), sobre as relações entre empresas e a prefeitura paulistana. Trata-se de uma matéria rigorosa, com base em dados oficiais do próprio município, demonstrando que, de um total de R$ 626,5 milhões que a prefeitura divulgava como o montante de doações privadas recebidas desde o início da gestão, haviam sido de fato concretizados até aquela data apenas R$ 47,7 milhões. A posição do governo estava retratada num “outro lado” extenso, no qual o prefeito João Doria (PSDB) explicava que a divulgação do montante de propostas de doações visava dar “transparência” ao processo. A despeito disso, a reação do prefeito à publicação da reportagem foi agressiva, na forma de um vídeo postado em rede social, no qual exibe o jornal, cita mais de uma vez o nome do jornalista e busca desqualificar a matéria e o repórter, mas não contesta nenhum dado apresentado no texto.

O pronunciamento de Doria funcionou com uma senha para que grupos organizados que o apoiam desencadeassem um ataque em massa em rede social, em diversas plataformas, buscando expor e intimidar o repórter. Se o prefeito, como qualquer cidadão, tem o direito de criticar uma reportagem, como administrador público tem sobretudo o dever de prestar contas de sua gestão. Sua resposta mostra um administrador avesso a uma análise séria de suas realizações e que se apoia no ativismo em rede social para tentar sufocar as críticas.

No mesmo mês, outra reportagem novamente incomodou a prefeitura de São Paulo. Em 19 de julho, às 7h da manhã, num dos dias mais frios do ano, a repórter Camila Olivo, da rádio CBN, presenciou funcionários da limpeza pública a serviço da administração municipal direcionando jatos d’água a pertences de moradores de rua, atingindo inclusive alguns deles, para tirá-los dos locais em que dormiam. A notícia causou comoção. Nas primeiras horas, a prefeitura reconheceu o ocorrido, culpando o pessoal terceirizado, mas mudou de orientação depois, passando a criticar a matéria e a jornalista, acusando-a de má-fé. Também nesse caso grupos organizados partiram para o ataque pessoal à jornalista.

Nos dois episódios, como em outros semelhantes, a demonização pública dos profissionais de imprensa toma base em sites de direita especializados em fake news, que produzem textos com títulos como “Jornalista da CBN que mentiu sobre gestão Doria utilizar jatos de água para acordar mendigos é militante de extrema esquerda”, compartilhados em rede associados a xingamentos, calúnias e ameaças. A postura das empresas jornalísticas, nessas situações, tem sido a de manifestar internamente apoio a seus profissionais (como oferecer suporte jurídico), mas muito tímida em sua expressão pública, o que inevitavelmente reforça a sensação de fragilidade de repórteres em relação a pautas que possam resultar em reações agressivas na rede social.

O presente momento de acirramento das tensões políticas e sociais no Brasil se expressa de forma aguda no ambiente da internet, e a perseguição a jornalistas integra esse cenário. O Ministério Público do Estado de São Paulo, que desde 2015 se preocupava com as agressões físicas a repórteres em conflitos de rua, já começou agora a adotar procedimentos para coibir crimes contra jornalistas em rede social. Para a categoria profissional, cabe aprofundar o debate sobre medidas efetivas de defesa do exercício do jornalismo e de responsabilização de agressores e caluniadores ocultos nos labirintos que o ambiente virtual abriga.

Regra da coação

Em seu início, o caso de Diego Bargas era semelhante aos demais: uma tentativa de Danilo Gentili de calar uma abordagem que considerava negativa a seu trabalho, embora também se possa enxergar uma estratégia para ampliar a visibilidade do filme na hora de seu lançamento, por meio da promoção de uma polêmica artificial, usando a reportagem da Folha como escada.

Alguns dias antes, Bargas, repórter do site de entretenimento F5, da Folha de S.Paulo, havia sido escalado para comparecer à exibição prévia do filme para jornalistas. Ele iria, em seguida, entrevistar o diretor, Fabrício Bittar, e Gentili num formato conhecido pelo jargão de junket – que consiste em uma conversa gravada em vídeo, nesse caso de oito minutos, na qual entrevistador e entrevistados sentam-se frente a frente, em um cenário alusivo ao filme. O profissional sai do local com a gravação num pendrive entregue pela produção. É um material de trabalho do jornalista, que pode ser editado e usado como parte de uma matéria multimídia ou simplesmente como o registro sonoro que dá base ao texto da reportagem.

Na sexta-feira, dia seguinte ao lançamento, a Folha destinou boa parte de uma página ao filme, com a reportagem de Bargas e uma crítica ácida assinada por Marina Galeano. Às 10h14 da manhã, Gentili iniciou em seu Twitter o que a ombudsman do jornal, Paula Cesarino Costa, classificou de cyberbullying, e escolheu Bargas como alvo. Gentili publicou: “Matéria mente. Postarei em breve vídeo da entrevista na íntegra (eu filmei). Pesquisem DIEGO BARGAS. Qual é a chance de fazer matéria isenta?”, acompanhado de uma imagem da reportagem. Pouco depois, divulgou o vídeo com a íntegra da entrevista no YouTube. Em nenhum momento, porém, se preocupou em apontar de forma específica nenhuma “mentira” ou falha na reportagem.

Quem comparar a entrevista com a reportagem verificará que – independentemente da avaliação sobre a qualidade da entrevista – a matéria é correta: reproduz o conteúdo da conversa de maneira objetiva e informativa. Acontece que Gentilli tem 16 milhões de seguidores no Twitter e outros 13 milhões no Facebook, e, quando começou a fazer acusações agressivas, deu início a um linchamento virtual contra o repórter. Bargas passou a ser massacrado em rede social por uma horda furiosa, com xingamentos, agressões e ameaças. Em meio à escalada de hostilidades, Gentili compartilhou também postagens antigas feitas pelo jornalista no Facebook, Instagram e Twitter, chamando-o de “petista”.

Assim que se deu conta do que ocorria, Bargas rapidamente trancou suas redes sociais e avisou à chefia no jornal. Os ataques prosseguiram por horas, sem que a própria Folha os contestasse. O que se viu foi Gentili ampliando a “polêmica” e usando-a de forma a convocar o seu público a comparecer às salas de cinema.

Mas, até aí, era uma situação que se identificava com as vividas por outros profissionais de imprensa. Os desenvolvimentos posteriores, no entanto, deram a esse episódio repercussões e implicações bem mais graves.

Demissão e consequências

Ao longo daquela tarde, houve uma troca de e-mails entre o jornalista e a sua chefia direta, responsável por designá-lo para a reportagem. No início da noite, Bargas foi chamado para uma conversa e demitido. O motivo, segundo reportagem a respeito do assunto publicada na segunda-feira (16/10), foi “ter desrespeitado orientação reiterada sobre comportamento nas redes sociais”. O texto ainda explica: “Os jornalistas da Folha são orientados a evitar manifestações político-partidárias e a não emitir nas redes juízos que comprometam a independência de suas reportagens”.

Aqui, chega-se ao âmago da questão: jornalista tem (ou não) direito à liberdade de expressão, como a Constituição Federal garante a qualquer cidadão brasileiro? Essa “orientação” que a empresa jornalística Folha da Manhã S.A. dá a seus empregados jornalistas viola ou não tal princípio? Registre-se que o assunto diz respeito não a uma, mas ao universo das empresas jornalísticas no país, tal como a Abril e a Globo, que também compartilham orientações similares.

Em seu artigo 5º, a Constituição estabelece, como princípios básicos, entre os direitos dos cidadãos, que “é livre a manifestação do pensamento” (inciso IV), que “é inviolável a liberdade de consciência” (inciso VI) e que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política” (inciso VIII). São cláusulas pétreas, que norteiam e orientam os demais direitos constitucionais. Pode-se citar ainda o art. 220, do capítulo sobre a Comunicação Social: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição”. Mas, naturalmente, a Carta também determina que, entre os fundamentos do Estado brasileiro, estão “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (art. 1º, inciso IV). Caberia então a pergunta: a livre e pública expressão de opinião por jornalistas empregados poderia, de alguma forma, ser considerada contrária à livre iniciativa de seu empregador?

Como ponto preliminar, é importante esclarecer que Bargas não foi demitido por justa causa, medida vista pela lei como uma punição por transgressão grave, que priva o trabalhador de vários direitos econômicos no momento da rescisão contratual. A legislação trabalhista considera como motivos para uma demissão desse tipo atos como “improbidade”, “desídia nas funções”, procedimento lesivo à empresa, mas também “incontinência de conduta ou mau procedimento” e “ato de indisciplina ou de insubordinação”. A empresa não quis entrar nesse terreno, talvez porque a questão, em toda a sua complexidade, já seria de imediato submetida à Justiça.

Entretanto, os motivos para o desligamento do jornalista, mesmo ocorrendo sem justa causa, foram publicamente formalizados como resultado da expressão de opiniões pessoais em rede social. Para a Folha, Bargas não tinha direito de se expressar publicamente como o fez, mesmo em suas contas pessoais de Facebook ou Twitter, fora do horário de trabalho.

Um leigo, certamente, pode achar que os jornalistas têm total liberdade de expressão por meio de seu trabalho; a Justiça, também. Pode-se ler no voto do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), relator no julgamento que derrubou a exigência de diploma para o acesso à profissão de jornalista (junho de 2009): “Os jornalistas são aquelas pessoas que se dedicam profissionalmente ao exercício pleno da liberdade de expressão”.

Mas será que podemos considerar que haja de fato “liberdade de expressão” (e ainda por cima “plena”!) a um jornalista empregado, assalariado, no exercício profissional diário num grande veículo privado de comunicação? Quando está a trabalho, na nossa opinião, não!

E a liberdade?

Peguemos o caso de Bargas: ele assistiu ao filme, fez uma entrevista e produziu uma matéria descritiva, que reporta ao leitor informações gerais sobre a obra e traz elementos extraídos da entrevista com o diretor e o protagonista. Podemos considerar, sem usar muito a imaginação, que as opiniões pessoais do jornalista sobre o filme não foram expressas diretamente na matéria. No fazer jornalístico, há uma técnica para reportar. Há ferramentas para avaliar a relevância dos fatos e preceitos sobre como abordá-los, considerando-se o perfil do veículo informativo e o público leitor. Há a chefia orientando e controlando a produção jornalística de uma redação, expressão prática da hierarquia na empresa de comunicação. Tudo isso resulta na matéria publicada, na qual o jornalista não expressa opiniões pessoais, pois as páginas do jornal no qual trabalha não são um espaço livre à sua disposição para exercer a liberdade de expressão.

É preciso, para entendê-la, analisar a questão inserindo-a nas relações de trabalho, pois os grandes veículos de comunicação no Brasil são empresas privadas, com uma hierarquia decorrente de sua natureza, e os jornalistas, em sua grande maioria, são assalariados – quer dizer, dependem de vender a sua força de trabalho para garantir a sobrevivência ao final do mês. Por mais que o jornalismo seja um trabalho intelectual, o profissional da área está subordinado a relações de produção que, em sua essência, são semelhantes às de qualquer outro assalariado.

Ocorre que o fundamento básico do jornalismo é o direito social à informação, e o bom profissional, desde os bancos da faculdade, se liga a compromissos éticos que, muitas vezes, colocam-no em conflito com orientações superiores ou com os interesses diretos do empregador. O Código de Ética da profissão tem como base a ideia simples de que “o compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos”, e de que ele “deve pautar o seu trabalho pela precisa apuração dos acontecimentos e por sua correta divulgação”. A tensão entre essas diretrizes e a realidade das redações permeia o cotidiano dos profissionais de imprensa.

Cláusula de consciência

Como a contradição se apresenta nas relações de trabalho, o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo busca há alguns anos avançar na regulamentação desse tema em convenções coletivas. Em suas pautas nas campanhas salariais, elaborou a chamada “cláusula de consciência”, que diz o seguinte:

“Pelo respeito à ética jornalística, à consciência do profissional e à liberdade de expressão e de imprensa, fica reconhecido o direito ao jornalista de recusar a realização de reportagens que firam o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, violem a sua consciência e contrariem a sua apuração dos fatos.
Parágrafo 1º – Pelos mesmos motivos, e pela preservação da relação com as fontes, o profissional tem o direito de se opor à utilização de material produzido por ele em reportagem coletiva, bem como negar que seu nome seja associado a qualquer trabalho jornalístico publicado pela empresa.
Parágrafo 2º – A atitude de recusa do jornalista, nessas situações, não pode ser usada pela empresa para sancionar o profissional.”

É importante notar que, longe de garantir a “plena liberdade de expressão” ao jornalista no trabalho, a cláusula tem um caráter mais propriamente “defensivo”, ou seja, busca preservar o profissional de ser obrigado a se ligar a uma reportagem que contrarie frontalmente seus princípios ou suas opiniões. E, mesmo isso, as empresas recusam. O texto acima foi reproduzido da pauta entregue recentemente ao Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado de São Paulo (Sertesp), exatamente a mesma entidade que ingressou no STF para derrubar a obrigatoriedade do diploma para o jornalismo profissional. No tribunal, para desregulamentar a profissão, o Sertesp lança mão do argumento de que o jornalista tem plena liberdade de expressão, mas na prática da Convenção Coletiva de Trabalho rejeita ao profissional até o simples direito de se dissociar de uma matéria que fira sua consciência, buscando preservar intacto e pleno (aí, sim!) o poder diretivo que a lei dá ao empregador sobre a produção de seus empregados.

Essa cláusula, com redação semelhante, já foi objeto de discussão no Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP), no dissídio dos funcionários da Fundação Padre Anchieta (Rádio e TV Cultura de São Paulo), em 2017, em discussão preliminar que restou inconclusiva, e no Tribunal Superior do Trabalho (TST), no dissídio dos funcionários da Empresa Brasil de Comunicação, em 2016. No TST, o presidente da audiência de conciliação, ministro Emmanoel Pereira, opôs-se nos debates à cláusula de consciência, argumentando com convicção que, se fosse proprietário de um jornal e decidisse criticar um prefeito, ordenaria a um de seus jornalistas que fizesse reportagem crítica ao administrador público, e ele, como empregado, teria a obrigação de obedecer.

Na prática, os veículos de comunicação têm plena liberdade de expressão, mas os jornalistas que neles trabalham, não. O sindicato, inclusive, parte dessa constatação para defender os jornalistas em situações de conflitos de rua, quando manifestantes, indignados com uma empresa de comunicação, atacam fisicamente os profissionais a seu serviço. A entidade diferencia a responsabilidade da empresa e dos jornalistas em relação ao noticiário. Sob o título “Jornalista é trabalhador”, a entidade distribuiu em janeiro de 2018 um panfleto a manifestantes afirmando que cada qual pode ter “críticas em relação às empresas de comunicação”, e que faz parte da democracia o direito de protestar contra um órgão de imprensa, mas que “os jornalistas não são responsáveis” pela linha editorial dos veículos e que seu trabalho deve ser respeitado e preservado.

Jornalista e cidadania

Por força da realidade das relações de trabalho em nossa sociedade, nos parece assim evidente que não é no exercício profissional que o jornalista assalariado pode exercer plenamente a sua cidadania e o seu direito à liberdade de expressão. Então, onde e quando ele pode exercer de forma plena a sua liberdade de expressão, o seu direito de opinar politicamente, de defender pontos de vista em sociedade, de apoiar uma opinião majoritária ou de adotar posições polêmicas, segundo seus princípios pessoais e obedecendo unicamente à sua consciência? Sobretudo quando não está a trabalho. Só que, justamente nesse momento e nesse espaço da vida privada, as empresas jornalísticas pretendem tutelar a liberdade de expressão do jornalista. É isso o que fundamenta a explicação pública para a demissão de Bargas pela Folha de S.Paulo.

A base para a demissão está numa orientação da direção de redação da Folha para seus jornalistas, enviada em 8/9/2015, intitulada “sobre ações em redes sociais”, na qual se diz: “(…) o jornalista da Folha deve evitar: manifestar posições político-partidárias; (…) emitir juízos que comprometam a independência ou prejudiquem a imagem da Folha”.

Em primeiro lugar, vejamos como isso se expressou concretamente. Como Bargas teria transgredido a orientação? Segundo sua chefia, por meio de cinco postagens em rede social, a primeira anterior à sua entrada no emprego, e as outras quatro, posteriores.

A primeira postagem é uma brincadeira composta de um comentário jocoso e uma foto feita 14 anos antes, na qual aparece o adolescente Bargas ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. As outras quatro estão longe de expressarem qualquer opinião política taxativa, e muito menos de significarem algum tipo de militância – o que tampouco seria reprovável. Percebe-se que, sob um figurino como esse, não há um espaço mínimo para a liberdade de expressão de nenhum profissional.

Por meio de sua orientação, a Folha de S.Paulo pretende comunicar a seus jornalistas que, mesmo fora do trabalho, não podem expressar nenhuma opinião política. Em sua coluna de 22/10/2017, a ombudsman do jornal extrai como uma das decorrências da demissão de Bargas que “a postagem dos profissionais da casa em redes sociais ficará sob escrutínio”. É legítimo que o jornal faça isso?

A Folha não está sozinha nesse terreno. A Editora Abril diz em seu guia interno que “considera a militância política do jornalista como desaconselhável”, e proíbe a militância se o jornalista trabalha com política ou economia. Sobre a internet, determina que “o jornalista não deve escrever em sua página nas redes sociais ou em blogs nada que não escreveria nos títulos da Abril”. Pretende, assim, limitar a liberdade de expressão do profissional estritamente às diretrizes editoriais da empresa.

A TV Globo, em comunicado recente de sua direção editorial, afirma que a “participação de jornalistas do Grupo Globo em plataformas da internet como blogs pessoais, redes sociais e sites colaborativos deve levar em conta que os jornalistas são, em grande medida, responsáveis pela imagem dos veículos para os quais trabalham e, por isso, devem evitar em suas atividades públicas tudo aquilo que possa comprometer a percepção de que exercem a profissão com isenção e correção”. Como se vê, a empresa liga sua imagem à do profissional mesmo fora do expediente, cerceando sua liberdade pessoal.

Com suas orientações, as empresas de comunicação pretendem impor limitações à expressão pública de seus empregados jornalistas, em nome de seus interesses de mercado. Perceba-se que, dando coerência a essa argumentação empresarial, não estaríamos falando apenas de opiniões políticas, mas da expressão de opinião pessoal em público a respeito, eventualmente, de qualquer assunto. Pois, se o jornalista aparece como corintiano, como poderia fazer uma matéria sobre futebol? E se defende ciclovias, como poderia fazer uma matéria sobre mobilidade urbana? Assim, em nome da suposta objetividade jornalística, o que se tolhe é a cidadania e a liberdade de expressão do jornalista fora da empresa, em sua vida social, o que é inaceitável, e uma afronta aos preceitos da Constituição. Sem liberdade de expressão no emprego, por força das relações de trabalho, e também fora dele, o jornalista se torna um cidadão de segunda classe.

Interesses ocultos

Nesse debate, não se pode ignorar que qualquer bom jornalista, e mesmo qualquer órgão de imprensa, tem pontos de vista fundamentados sobre a realidade do país e do mundo, e possui inclusive preferências partidárias, políticas e econômicas. Não há nenhum problema – muito ao contrário – que essas opiniões e pontos de vista sejam os mais transparentes possíveis. Existem modelos: na França, os grandes jornais são abertamente vinculados a correntes políticas – e até a partidos –, e não deixam por isso de ter reconhecimento mundial como órgãos de informação de qualidade e relevância.

O que transparece é que, com essa diretriz geral, o objetivo das empresas de comunicação no Brasil é ocultar suas preferências e orientações – políticas, econômicas, sociais – sob uma imagem falseada de objetividade e de imparcialidade, considerada chave para o posicionamento de mercado dos veículos por questões de marketing e propaganda, mas não por ser uma característica realmente vinculada à essência do fazer jornalístico.
Nesse jogo de interesses, quer se sacrificar a cidadania do jornalista. Qualquer cidadão brasileiro, porém, possui o direito de se expressar livremente, e o fato de uma empresa contratá-lo não dá ao empregador o direito de calar a boca do empregado. Seria uma posição obscurantista e autoritária. O jornalismo de qualidade consiste, justamente, na capacidade do profissional, por meio da boa técnica, da integridade e da capacitação, de apurar e reportar os fatos de maneira correta, ética e abrangente. Isso é perfeitamente harmônico com a plena liberdade de expressão, pois o exercício da cidadania produz cidadãos mais conscientes, íntegros, e jornalistas mais críticos, independentes e comprometidos com o direito da sociedade à informação.

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Paulo Zocchi é presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.