Sites noticiosos carregados de ideologia política promovem o linchamento da própria imprensa. Mas nem tudo é fake no universo da comunicação
“Não há fatos eternos como não há verdades absolutas”. Em tempos de WhatsApp, Facebook, Twitter, Instagram e fake news, a frase do filósofo alemão Friedrich Nietzsche nunca fez tanto sentido.
De acordo com o jornal The Washington Post, apenas Donald Trump proferiu 1.318 falas equivocadas em 263 dias de governo – o que representa uma média de cinco mentiras ditas por dia sobre os mais diversos assuntos, de imigração a educação. Vale tudo para manter em funcionamento esse poderoso ecossistema da desinformação – da manipulação do conteúdo até a construção de fatos.
Por aqui, no Brasil, a situação dos pré-candidatos à Presidência da República não é muito diferente, como apontam duas checagens feitas pelo Truco, projeto de fact-checking da Agência Pública: “Exageros e imprecisões marcam discurso de Lula em caravana”; e “Marina Silva usa dados falsos e imprecisos em discurso”.
Na era da pós-verdade, as fake news ocupam cada vez mais espaço nos aplicativos de mensagem, nas redes sociais e nos mecanismos de busca, que são os principais meios pelos quais as pessoas buscam se informar. Disfarçados de noticiário, dados falsos e imprecisos influenciam opiniões, ameaçam reputações e causam prejuízo à imagem de pessoas e empresas.
Nessa arena digital, onde cada indivíduo tem a própria audiência, a mídia virou um campo minado para jornalistas e veículos de comunicação, que são constantemente citados, julgados e condenados por manchetes carregadas de adjetivos, dados imprecisos e muito sensacionalismo. Publicadas em sites noticiosos ligados a militância política, ou até em perfis falsos nas redes que tratam de plantar invencionices com alto potencial de viralização (veja quadro Nada mais democrático que a boataria), as diversas modalidades de fake news – que vão de sátiras e paródias noticiosas a conteúdo fabricado – transformam boatos em fatos e fatos em boatos, principalmente quando a pauta em questão é a própria imprensa.
“Globo usa entidades para pedir punição a manifestantes”, acusa o site Brasil 247. “A fake news do detrito da maré do jornalismo: Veja, para variar, mentiu”, julga Eugênio Aragão no Jornal GGN. “A imprensa carcereira já descreve a prisão de Lula”, acredita Fernando Brito no site Tijolaço.
A enxurrada de notícias tendenciosas e falsas aliada à polarização da sociedade civil são uma combinação explosiva que coloca em xeque a relevância dos veículos de comunicação e de seus profissionais.
O Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai) da Universidade de São Paulo (USP) estima que das 3,5 mil notícias relacionadas à política que são publicadas em média por dia, o Brasil lê e compartilha via redes sociais cerca de 200: “Não é uma tática de direita ou de esquerda. Mas faz parte da guerra política. Os dois lados produzem e disseminam informações não verificadas porque buscam a hegemonia na interpretação dos fatos”, avalia Pablo Ortellado, cientista político e coordenador do Gpopai, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo.
“É o compartilhamento nas redes sociais que ajuda a alimentar o ecossistema da desinformação”, comenta o profissional no Manual da Credibilidade, que foi produzido pelo capítulo brasileiro do Trust Project, por meio de uma parceria entre o Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor) e a Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Esse mecanismo transforma boatos em certezas e é retroalimentado pelo trabalho de políticos, membros da militância e até mesmo de órgãos sindicais que usam as fake news como arma para atacar a imprensa e cercear a liberdade de expressão dos profissionais que nela atuam.
Vítimas da notícia
A face mais cruel desse mecanismo é o linchamento virtual de pessoas, que são julgadas pela imprensa alternativa com base em boatos, suspeitas e notícias falsas ou manipuladas. Até o jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, editor desta publicação, já foi vítima desse tipo de ataque durante os anos de 2008 e 2010, quando exerceu a função de ombudsman do jornal Folha de S.Paulo. “Sempre fui um crítico do conteúdo publicado pelo jornal, mas sem fazer uso de adjetivos ou xingamentos. E isso incomodava os autores dos blogs de esquerda, que cobravam ataques mais virulentos e me acusavam de ser um agente a serviço do jornal e não dos leitores.”
Um dos episódios mais controvertidos ocorreu em 2009, quando Lins da Silva criticou a Folha por ter publicado uma ficha criminal supostamente falsa de Dilma Rousseff. O documento, que teria sido obtido no arquivo do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), ilustrou a primeira página do jornal de 5 de abril de 2009, com o título “Grupo de Dilma planejou sequestro de Delfim Netto”. “Escrevi um artigo incisivo contra a Folha, dizendo que o jornal tinha obrigação de provar que a ficha era verdadeira e citei como exemplo o caso Rather-CBS, no qual uma denúncia contra George Bush, então presidente dos Estados Unidos, foi baseada em documentos falsificados”, relembra o jornalista. No dia 25 de abril de 2009, a Folha reconheceu o erro: “Autenticidade de ficha de Dilma não é provada”, dizia o título da matéria. “Quando esses embates ocorriam, de cada dez e-mails que eu recebia, oito vinham da turma da esquerda, muitos deles tinham o conteúdo semelhante e pareciam forjados. Sempre tomei como princípio não ir a blogs de esquerda para me defender, por considerar ser inútil argumentar com esse tipo de gente.”
Quando os trollings começaram a atingir a sua família, ele optou por deixar o cargo ao término do segundo mandato. O episódio foi detalhado em “1 é pouco, 2 é bom, 3 é demais”, última coluna de Lins da Silva como ombudsman da Folha, publicada no dia 21 de fevereiro de 2010.
“No meu caso, um terceiro mandato seria particularmente inviável. (…) As amostras que tive do poder destrutivo dessas forças da irracionalidade foram suficientes. Elas desrespeitam até o direito humano (artigo 12 da Declaração Universal) garantido pela Constituição (artigo 5) da inviolabilidade da correspondência. Uma troca de mensagens entre mim e um leitor foi apropriada por terceiro, que deturpou seu conteúdo, atribuiu a mim afirmações que eu não fizera e a endereçou a blogs de jornalistas, que a acolheram e a abriram a comentários sem jamais terem consultado nem o emissor nem o destinatário do e-mail se ele correspondia ao real. E alguns desses blogs são de pessoas que dizem lutar contra a falta de ética da ‘velha mídia conservadora’.”
Oito anos depois de Lins da Silva ter deixado o cargo de ombudsman, a história se repete. Só que dessa vez foi a Folha que decidiu retirar o seu time de campo. No dia 8 de fevereiro, o jornal parou de atualizar o conteúdo de sua fanpage no Facebook.
A decisão faz parte de uma série de iniciativas promovida pela Folha para preservar a imagem de seus jornalistas e evitar que, durante a apuração dos fatos, eles acabem virando a própria notícia, como aconteceu com a repórter especial Fernanda Mena. “O jornalista, que sempre esteve nos bastidores da notícia, hoje é figura pública e sofre uma grande exposição nas redes sociais, onde todo mundo é mídia”, alerta a repórter, que já foi manchete na internet em três momentos diferentes.
Na primeira vez, Fernanda ainda era produtora especial do Fantástico, da TV Globo, e estava fazendo uma reportagem sobre a prisão do casal Estevam Hernandes Filho e Sônia Haddad Moraes Hernandes, fundadores da igreja Renascer em Cristo, em janeiro de 2007. “Entreguei a reportagem e viajei para o exterior. Quinze dias depois, eu levei um susto ao acessar minha conta no Orkut e ver a enorme quantidade de maldições e xingamentos proferidos por fiéis indignados com o tom da reportagem”, lembra Fernanda, que comunicou o fato à emissora, mas nenhuma atitude foi tomada porque ainda não existia a consciência de que esse era um tipo de assédio digital ao jornalista.
Tempos depois, no dia 13 de dezembro de 2015, ela se envolveu em uma discussão com um integrante do MBL (Movimento Brasil Livre), enquanto cobria uma manifestação contra Dilma Rousseff, na Avenida Paulista (SP) e foi parar novamente nas manchetes virtuais. Nessa mesma época, Fernanda participou do programa Roda Viva Internacional, da TV Cultura, que no dia 22 de novembro de 2015 entrevistou Camille Paglia. “Seis meses depois de o programa ter sido exibido comecei a receber mensagens de pessoas no exterior querendo saber sobre a discussão que eu havia tido com Camille.” Uma simples busca no Google revelou o motivo: “Camille Paglia Brilliantly Dismantles Brazilian Feminist Fernanda Mena Arguments” anunciava o título do vídeo, que em poucas semanas atingiu 375 mil visualizações, até ter o conteúdo bloqueado pela TV Cultura, por causa de direitos autorais. Da forma como foi editado o conteúdo, a participação de Fernanda foi descontextualizada e o programa resumido a um debate entre a jornalista brasileira e a feminista americana, no qual Camille levava a melhor.
Recentemente, Fernanda apresentou esses três casos em um evento interno da Folha, sobre comportamento nas redes sociais. “Vivemos um Big Brother da notícia, com as lentes sempre viradas para nós. Nesse cenário, as armas do bom jornalismo continuam mais válidas do que nunca, principalmente em ano de eleição.
Credibilidade x relevância
Manoel Fernandes, sócio da Bites, empresa de análise de dados no ambiente digital, concorda com Fernanda e faz um alerta: “Vai ser impossível combater fake news nas eleições de 2018, que irá promover uma carnificina na indústria da comunicação”, comenta o jornalista, que há 11 anos passou a usar métodos jornalísticos para fazer análise de dados. Um dos estudos indica que 11,3 milhões de notícias em português foram produzidas em todo o mundo, de março de 2017 a março deste ano. Desse total, 80% foram publicadas no Brasil. “Estatisticamente, é impossível identificar quantas delas são fake news. A eleição vai passar, mas a cultura fake news irá permanecer e invadir o mundo corporativo. O mercado terá de aprender a conviver com isso.”
O surgimento de empresas como a Bites levanta uma questão que vai além da “credibilidade dos veículos de comunicação” ou da “liberdade de expressão dos jornalistas” – temas muito discutidos pelo setor. “O problema da imprensa é a falta de relevância no papel que exerce na vida das pessoas. Qual é o propósito atual da mídia e como ela influencia a sociedade em tempos de escassez de atenção gerada pelo excesso de informação? Essas são pautas que precisam ser discutidas.”
Analisando a forma como os brasileiros consomem mídia, Fernandes afirma que não é a mídia que está em crise, mas sim as plataformas de entrega de conteúdo e o antigo modelo de negócios sustentado via publicidade. “Em um mundo cercado de informações imprecisas e dados incorretos, a única forma de sobreviver é investir em fact-checking e em novos modelos, como o Poder360, que apostou na cobertura isenta de assuntos relacionados ao poder e ganhou relevância no dia a dia dos seus leitores.”
Para o jornalista Fernando Rodrigues esse é o antídoto contra os males da mídia: uma plataforma de notícias sobre política e poder que é independente do ponto de vista jornalístico e financeiramente sustentável por meio da venda de assinaturas. “O Poder360 começou com três pessoas. Hoje, estamos completando três anos com uma equipe de 30 pessoas. Já somos do tamanho da maioria das sucursais dos veículos que estão em Brasília”, comemora Rodrigues, que não se sente ameaçado pelos ataques das fake news. “Essas críticas têm baixo impacto e não influem na credibilidade do nosso veículo. Aqui, no Poder360, nunca tivemos um problema objetivo decorrente de eventuais difamações, que em geral vêm de veículos desqualificados e ideológicos, que não praticam jornalismo profissional. Apenas fazem luta política.”
Rodrigues afirma ainda que o fenômeno sempre existiu. “Na época analógica, eu passei por vários episódios: recebi inúmeras cartas de ameaça, enfrentei muita pressão de jornais produzidos por entidades e vivia sendo xingado pelos leitores. Considero todas essas manifestações legítimas, inclusive as críticas feitas pelos veículos de baixa estatura intelectual”, assegura o jornalista, que faz parte do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) e já denunciou muita gente no Brasil, principalmente durante a série de reportagens Panama Papers. “Sou contra qualquer tipo de restrição à liberdade de expressão, por isso defendo até o direito de as pessoas optarem pela desinformação, que é a consequência de sermos um país subdesenvolvido.”
Segundo ele, a maior ameaça ao jornalismo profissional não são as fake news e sim a inexistência de um modelo financeiro sustentável, que apure o fato de maneira científica e consiga relatá-lo de forma minuciosa, buscando o máximo de imparcialidade. “A indústria de notícias tem um passivo importante para resolver: precisa renovar sua antiga plataforma e descobrir como rentabilizá-la com fontes financeiras alternativas, sempre mantendo sua independência editorial.”
NADA MAIS DEMOCRÁTICO QUE A BOATARIA!
No último ano, as fake news extrapolaram os limites da indústria da comunicação e entraram em pauta no Congresso Nacional, que desde o dia 5 de março conta com uma comissão especial para analisar oito projetos sobre o tema, em tramitação na Câmara e no Senado. De acordo com notícia publicada no site Poder360, a iniciativa já recebeu um manifesto de 29 entidades que compõem a Coalizão de Direitos da Rede, que são contrárias as alterações nos Códigos Penal e Eleitoral e no Marco Civil da Internet previstas nos projetos de lei em análise.
Polêmico, o assunto ainda promete render muitas pautas, como a série Democracia Ciborgue, que a BBC Brasil vem publicando desde o dia 8 de dezembro de 2017. A iniciativa faz parte de uma investigação de três meses feita pela jornalista Juliana Gragnani, que denuncia a existência no Brasil de uma estratégia de manipulação eleitoral e da opinião pública nas redes sociais similar à usada por russos nas eleições americanas. “Exclusivo: investigação revela exército de perfis falsos usados para influenciar eleições no Brasil”, a primeira reportagem da série, acusa 13 políticos de terem sido beneficiados pelo serviço da Facemedia. Os senadores Aécio Neves (PSDB-MG) e Renan Calheiros (MDB-AL) e o atual presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE) estão entre os suspeitos de utilizar o exército de perfis falsos administrados pela empresa carioca que teria contratado 40 pessoas para cuidar dessas contas durante as campanhas políticas.
No dia 9 de março, outra reportagem da série revelou como o blog Seja Dita Verdade defendeu Dilma Rousseff com uma rede de fakes. No Orkut, o “companheiro Armando” se descrevia como “um cidadão brasileiro indignado com a ação criminosa dos tucanos” na campanha eleitoral. No entanto, esse “Armando” nunca existiu. “Seu blog e seus perfis no Orkut e no Twitter eram administrados por quatro pessoas que teriam recebido, para tanto, de R$ 3,5 mil a R$ 4 mil mensais entre maio e outubro de 2010”, afirmou a matéria da BBC Brasil, que entrevistou sob a condição de anonimato três pessoas, que dizem ter sido recrutadas sem contrato formal pela Ahead Marketing. A empresa, baseada em São Paulo, oferece serviços como o de invisible talkers (comunicadores invisíveis), grupo de agentes treinados que inserem mensagens em pontos estratégicos da cidade, por meio de diálogos entre eles mesmos ou com a população.
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Anna Gabriela Araujo é editora-assistente da Revista de Jornalismo ESPM.