Um mundo regido por fake news e fake ethics tende à imobilidade do desejo e ao império do medo e da chantagem
“Esperanças há muitas, mas não para nós” (Franz Kafka)
Neste breve artigo vou defender a ideia de que vivemos numa era fake que prepara a maior desumanização já imaginada. O espírito que paira sobre esse processo é o do escritor judeu de Praga, Franz Kafka. Imaginemos um conto que ele nunca escreveu…
1. Os “elementos iniciais” do conto
Sim, mas, como não sou ficcionista, tentarei descrever o pano de fundo histórico, psicossocial, enfim, “material”, a partir do qual esse conto de Kafka não escrito poderia brotar. Num entrelaçamento entre uma estética do argentino Jorge Luis Borges e o método marxista de crítica estética, minha aposta pessoal é que estamos assistindo ao nascimento de uma transformação psicossocial que nem a direita e sua crença risível no mercado, nem a esquerda e sua crença risível em sua própria santidade, parecem capazes de enfrentar. Inclusive porque elas mesmas participam do encantamento ridículo com alguns dos “elementos” que compõem o processo em questão.
O que vou descrever na sequência, o faço assim como quem descreve um processo inexorável. A única possibilidade de isso não acontecer é se o capitalismo acabar e voltarmos ao neolítico. Nesse sentido, brinco um pouco de ficcionista, a diferença é que os personagens somos nós dois: eu que escrevo e você que me lê. Como o texugo na novela de Kafka A Construção (Companhia das Letras, 1998), que se perde no labirinto que ele mesmo constrói em sua moradia a fim de escapar do ruído ensurdecedor que ele pensa vir de fora, nosso mundo contemporâneo vai se afundando nas suas versões “mais avançadas” de si mesmo. A decisão de criar “um mundo melhor” é a nossa “construção”. Temos a vontade de fazê-lo e a tecnologia para tal já está em nossas mãos.
Dizia antes do caráter fake de nossa época. Ele se apresenta no mínimo em duas facetas essenciais: a primeira, mais conhecida, é a das fake news. A segunda, não menos grave, mas ainda menos discutida, é a fake ethics. Os dois problemas se relacionam de diversas formas, seja por meio da tradição filosófica (e a dificuldade de dizer com segurança o que é a verdade ou que é o bem, dificuldade esta denominada classicamente como “relativismo”), seja pela associação à dinâmica social, cognitiva e psicológica da democracia (o relativismo é a dinâmica cognitiva da democracia por excelência), ou, mais contemporaneamente, por conta das redes sociais (todo mundo posta o que quiser e todo mundo consome os posts que quiser).
Nesse caso específico das redes sociais, como se conhece bem em teoria de mídia, “o meio é a mensagem”, e a mensagem nas redes sociais é: “sou incontrolável”, devido à plataforma tecnológica em si, dispersa, descentralizada, interativa. Talvez a melhor descrição das redes sociais seria “um círculo cuja circunferência está em toda parte e o centro em parte alguma”. Vale lembrar que essa era a descrição de Deus feita por Nicolau de Cusa no século 15, posteriormente utilizada por Blaise Pascal no século 17 para definir a natureza do universo. Estamos, assim, diante de um fenômeno de escala que tende ao infinito. Mesmo sabendo que as redes sociais têm “dono” (as empresas provedoras), e, portanto, modos de “manipulação”, creio que aqui entra em cena um fator fundamental: as novas gerações de jovens estão cada vez mais adaptadas à destruição do humano “ultrapassado” em nome de sua versão “melhor”, e essa versão passa, primeiro, pela “era fake”, para, em seguida, entrar na sua solução final, a destruição absoluta da privacidade em nome do bem.
Há uma identificação profunda entre as novas gerações (a geração i – internet, iPhone –, tal como a denomina a psicóloga americana Jean Twenge) e o potencial radicalmente democrático das redes sociais e sua vocação à “política mobile”. E essa identificação as levará à destruição da privacidade em nome do bem de todos (além, é claro, como todo mundo já sabe, à destruição das instituições democráticas representativas em defesa de um culto da “iDemocracy”, a democracia direta mobile). O que antes era “fake” passará a ser visto como uma guerrilha em defesa do bem democrático coletivo e da liberdade redentora de todos os cidadãos com direito a ter opiniões sobre tudo.
Minha hipótese, resumindo, é que não há como escapar de nenhuma das duas formas de práticas “fake”, a não ser por meio da radicalização da destruição da privacidade de modo absoluto levada a cabo pelas mesmas redes sociais, associadas aos avanços dos processadores de dados conhecidos como algoritmos. Só que não se trata propriamente de uma superação de fato do caráter fake, mas sim de sua elevação ao estatuto de verdade da democracia e bem social para todos. O “mundo melhor” será tagarela e todo mundo vai vigiar todo mundo. Quando o aparelho jurídico lançar mão de tudo que o mercado tem produzido em termos de processadores, a humanidade criará um sistema de destruição do indivíduo que deixaria Kafka assustado em suas noites insones.
O ensaio está dividido em quatro partes. A primeira, sobre os “elementos iniciais do conto”, que aqui se encerra, e mais três: fake news, fake ethics e a “superação” do valor negativo das fake news e fake ethics.
2. Fake news
Em 2016, o mundo entrou em pânico porque Trump acusou um jornalista de praticar fake news, quando ele, Trump, era e é suspeito de criar “versões alternativas” para fatos narrados pela mídia americana, além de comprar fake news made in Russia contra Hillary Clinton. Independentemente da figura de Trump em si (não gostar do Trump é um daqueles testes de pureza ideológica que os estados fascistas e comunistas exigiam de seus cidadãos), e de ele, provavelmente, mentir mesmo (o verbo “mentir” soará cada vez mais naïf com o passar dos anos), o fato é que a mídia americana é extremamente enviesada para a esquerda (leia-se, a favor do Partido Democrata). Mas, como quase todo mundo lá dito inteligente é simpatizante do Partido Democrata (os “liberais” nos Estados Unidos), não há conflito com o fato de a mídia ser enviesada. Uma das coisas que me intrigam, mas não é meu objeto de reflexão aqui, é como a classe dos inteligentes se constitui num amálgama de preconceitos, vícios cognitivos, crenças insustentáveis, mentiras úteis, tanto quanto os crentes mais tarados da face da Terra. Não é à toa que os cursos de humanas são verdadeiras Madrasas “islâmicas radicalizantes” de jovens.
Jornalistas, filósofos, políticos, psicólogos, sociólogos, padres, pais de santo, crianças acima dos 5 anos de idade, dominatrixes, veganos, aborígines, enfim, todos se puseram a discutir o que fazer com as fake news. Foi um bom período para uma classe desvalida como a dos jornalistas: mais estágios, mais assinantes, mais anúncios, enfim, mais vida. É incrível como a vida também se alimenta de lixo.
Para além do fato envolvendo Trump, o problema das fake news é grave, não só porque corrói a credibilidade da informação em larga escala, mas também porque se transforma em atividade “propositiva”: você pode abrir “empresas” (que podem ser em Sri Lanka ou Macedônia) cujo objetivo é difundir notícias falsas contra pessoas ou instituições. Para além de qualquer debate, há dois fatos muito interessantes sobre o assunto: o primeiro é sua “fundamentação filosófica” de grande credencial histórica. O segundo é que as pessoas comuns não estão nem aí para o risco das fake news e consomem notícias falsas com gozo, contanto que sejam a favor do que elas gostam. Esse traço de comportamento do consumidor será essencial para a transformação das “fake news” em “valor agregado” político à ideia de liberdade e igualdade de opiniões do indivíduo comum empoderado que veremos na quarta parte deste breve ensaio. Sei, alguns podem me julgar niilista ao dizer isso, mas nem por isso deixo de ter razão.
Sabe-se há séculos que a filosofia suspeita da dificuldade de determinar a verdade das coisas. Tem-se até uma especialidade em filosofia para isso: epistemologia. Essa dúvida era disseminada por toda a filosofia grega antiga, de sofistas a Platão, dos céticos aos cínicos. Para além dessa questão “meramente” epistêmica, Platão já havia apontado a inviabilidade da verdade na democracia. Já na filosofia contemporânea, em pleno século 20, um dos ícones dos “progressistas”, o francês Michel Foucault, engrossou o caldo da negação da verdade dizendo que ela não passa de uma “organização epistêmica” a serviço do poder. Logo, verdade é política, logo, verdade é poder, logo, vale tudo. Foucault é o grande patrono da defesa das fake news como paradigma guerrilheiro no mundo da informação.
Os foucaultianos não confessam seu amor ilícito pelas fake news pelos vícios típicos da classe inteligente citados acima.
Sendo a democracia um regime de votos, retórica e aparências (hoje, se diria marketing), o que vale é o que melhor convence. Mesmo que rostos indignados (olha aí a fake ethics mostrando sua cara…) apareçam nas telas e nos textos criticando o caráter marqueteiro da democracia, todo mundo sabe que não há saída. Ou melhor, a saída é ter o melhor marqueteiro. E, hoje, um especialista em mídias digitais. E a crítica de Platão tem desdobramentos mais graves do que parece de início. Ser sofista (o nome do relativista grego antigo) é estar muito próximo do risco niilista mesmo. Veremos isso na quarta parte deste ensaio. A democracia é, portanto, um regime pouco afeito a verdades absolutas, ela tem uma vocação estrutural ao relativismo. Com as redes sociais, essa estrutura se fez plena. A verdade está morta no mundo da informação, com as bênçãos de Foucault. É tudo uma questão de cliques. E clique é poder.
3. Fake ethics
Já a fake ethics depende do politicamente correto, essa praga que é mais comum entre pessoas “inteligentes” do que entre pessoas que trabalham com as mãos. Parece haver uma tendência irresistível em quem trabalha com o intelecto a esquecer o “nome” das coisas. O trabalho manual parece resguardar certa sanidade. Talvez fosse isso que Basílio Magno, monge cristão do século 4, tinha em mente ao determinar que seus monges deveriam manter o trabalhar físico extenuante além de estudar e orar.
Uma vez que tudo é passível de ser gravado em áudio ou vídeo, qualquer coisa que você diga poderá ser exposto universalmente (as redes sociais são a eternidade infernal no presente). Sabe-se que a mentira numa certa dose sempre foi necessária para um bom convívio social, mas a fake ethics é a profissionalização das opiniões corretas mesmo que falsas por pânico de processos ou linchamentos públicos. Para além do jornalismo, a judicialização do pensamento é o grande mercado por excelência da fake ethics. Há uma relação promíscua entre fake news e fake ethics: qualquer coisa dita sobre você fará de você um réu confesso pedindo perdão. A única coisa que o salva é o tédio de malhar o mesmo “Judas” por muito tempo. Um próximo surgirá. Mas o dano profissional e pessoal pode ser indelével.
O Ministério Público fará de todos nós praticantes de fake ethics. Na dúvida, todos acusarão todos de racismo, sexismo, especismo, islamofobia, gordofobia. As opiniões tenderão à mesmice que garante a janta de quem vive do debate público. O interesse entre homens e mulheres chegará a zero se você quiser se garantir contra suspeitas de assédio (nem assim haverá garantias). O mundo da fake ethics tende à imobilidade do desejo e ao império do medo e da chantagem.
Em defesa da carreira profissional, jornalistas e intelectuais praticarão fake ethics em escala industrial. Interessante notar que, com a febre das denúncias de assédio sexual, uma das áreas mais afetadas é justamente o mundo da mídia. Tenho duas hipóteses básicas sobre a razão de haver tanta denúncia de assédio sexual neste mundo. A primeira é que grande parte de quem trabalha na mídia, principalmente no jornalismo, se acha santa, e são justamente os santinhos que mais odeiam o sexo e, por isso mesmo, levarão todos à prática fake em ética nas relações de trabalho. A segunda é que neste mundo há um acúmulo significativo de pessoas infelizes e sem vida pessoal afetiva significativa. Ganham mal e perdem a importância a cada dia. O impacto da ética fake nesse universo será avassalador. Associada às fake news nas redes sociais, a ética fake será o golpe mortal na relação entre democracia e verdade no século 21.
4. A “superação” do fake pela sua elevação a categoria normativa na sociedade
A maioridade da era fake chegará quando uma consciência foucaultiana atingir as massas. A frase é para soar anacrônica mesmo. Se verdade é apenas política, o temor platônico de a democracia degenerar em demagogia ou mera retórica mudará de sentido porque justamente aquilo que era visto como valor negativo, agora, após Foucault, passa a ter um outro valor agregado: todos podem dizer tudo o que quiser e as “grandes marcas” da mídia “revelarão” sua verdadeira face: medo de perder mercado e poder. Vou contar uma coisa para você. No começo de 2017, uma importante entidade ligada ao jornalismo fez um evento sobre fake news do qual tive o prazer de participar. Contando a alunos de pós-graduação em mídia sobre o evento, foi consenso entre eles, numa sala de 25 estudantes, que eventos como aquele serviam ao domínio do capital contra a liberdade da informação e das narrativas dos indivíduos empoderados. É incrível como há quase sempre uma confiança bovina no “povo”, quando se trata do tema democracia.
A verdade é que a crítica de Platão à democracia não é apenas um fato epistemológico, é estético e ético: a democracia, por ser um regime de quantidades, tem uma vocação ao “gosto” pelo numérico, gosto este que casa muito bem com a retórica “progressista” em defesa dos “demos” (uma quantidade acima de tudo), quanto ao gosto da sociedade de mercado, na qual o consumidor é o senhor absoluto no manicômio.
A associação entre o relativismo sofista e teorias pós-modernas de cepa foucaultiana e derridadiana [originada no pensamento do filósofo franco-argelino Jacques Derrida] estabelecem a fundamentação conceitual, vinda da filosofia e das ciências humanas, para a defesa radical das fake news como a superação da fé ingênua na noção de credibilidade das marcas (leia-se, do poder instituído). O encontro entre uma “estética” da escolha do consumo (apenas) de notícias que concordam comigo, traço das “massas digitais”, e a fundamentação teórica sofisticada se constituirá na defesa de que fake news é apenas o “nome” negativo que capitalistas platônicos usam para defender seus mercados de trabalho cujo objeto é a informação. Não existe verdade, apenas narrativas. É incrível como professores que ensinam isso aos alunos podem ir a público com faces indignadas contra as fake news. Ou estamos aqui no âmbito da má-fé ou da esquizofrenia intelectual.
Mas uma passagem fundamental, que terá a bênção dos mais jovens, será a destruição total da privacidade por meio dos avanços inevitáveis das tecnologias digitais de localização, imagem, registro e rastros em tempo real (cultura mobile como ativismo político), obrigando todos à prática fake em ética “twentyfourseven”. O filme O Círculo (dirigido por James Ponsoldt, 2017), com Emma Watson e Tom Hanks, é paradigmático da adesão das novas gerações à política mobile como controle dos comportamentos: ao final do filme, Emma entende que o mal é “apenas” o Tom (dono da empresa) ser corrupto, mas a tecnologia “twentyfourseven” (o “círculo” em si), que submete todos a verem todos o tempo todo é, na verdade, a única forma verdadeira de democracia. Porque a humanidade é linda se deixada livre para ser, falar, pensar, postar, se expressar. E isso dará muito dinheiro. Como num gigantesco jardim da infância para retardados mentais alegres cheios de bons sentimentos, viveremos na tela o tempo todo.
Dadas as condições materiais contemporâneas, e por materiais refiro-me aqui tanto a condições econômicas quanto a vínculos, práticas, avanços tecnológicos, ativismo político e estético, perfis demográficos, miséria mental da pedagogia (todos presos no círculo da beleza do “netcitizen”), não há saída para esse processo. A saída será, na verdade, a instituição do processo em si como normatividade política, social e psíquica. E a classe intelectual é a primeira baixa nesse processo. A segunda, os mais jovens. Entre eles e outros, virá você e eu. Gregor Samsa (personagem central do romance de Kafka A Metamorfose, que vira um inseto marrom), finalmente, será uma maioria emancipada.
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Luiz Felipe Pondé é filósofo e colunista da Ilustrada, no jornal Folha de S.Paulo.