Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Para ler e para ver…

LIVRO
Bastaram dois dias de Fire and Fury nos Estados Unidos para a editora brasileira Objetiva comprar os direitos do livro, começando as vendas antecipadas já em janeiro (o lançamento está previsto para março). Para apressar a edição, foram cinco tradutores trabalhando simultaneamente, numa operação de guerra.

Vale a pena: a obra do jornalista americano Michael Wolff é uma bomba atômica moral sobre a cabeça, confusa, de Donald Trump. A história catalisou a discussão sobre o equilíbrio emocional do presidente, o que nos Estados Unidos pode ensejar ações formais de impedimento.

Baseado em cerca de 200 entrevistas com pessoas ligadas a Trump, a sua campanha e à administração federal, Fogo e Fúria faz um retrato de uma pessoa com déficit de atenção, incapaz de ler uma página de texto ou ouvir explicações que exijam um mínimo de concentração; além disso, ignorante de assuntos necessários ao exercício de um cargo que, inclusive, ele não queria realmente ou não achava possível conquistar.

A reportagem de Wolff soa inverossímil em um primeiro momento: com todo o sigilo que envolve a Casa Branca, como seria possível obter detalhes íntimos e diálogos como ele narra? O autor vacina contra a suspeita ao abrir o livro com a descrição de um jantar cheio de diálogos reveladores, entre colaboradores próximos de Trump, que mostra como ele tem acesso a fontes que, por inexperiência ou empáfia, falam muito. É o caso do estrategista de campanha Steve Bannon,a principal fonte do livro e o responsável por abrir as portas da Casa Branca para o repórter.

Às primeiras notícias sobre o livro, Trump ameaçou formalmente a editora, caso mantivesse a publicação. Diante do risco de censura, os editores anteciparam a distribuição dos volumes para 5/1. A demanda foi maior do que a capacidade de impressão: o best-seller instantâneo se esgotou no primeiro dia em Washington e Nova York, e cópias digitais chegaram a outros países. Em poucas horas, todo o planeta sabia que o presidente dos Estados Unidos é um mentecapto (ou pelo menos assim é retratado no texto).

“Quem é o meu Roy Cohn?”, perguntou Trump, quando soube do conteúdo de Fire and Fury. Referia-se ao advogado, seu mentor no início da carreira, que recomendava sempre atacar com processos judiciais qualquer crítica. Na falta de Cohn (1927-1986), Trump enviou cartas de ameaças aos editores, selando o sucesso do livro.

Cohn foi uma das figuras mais temidas e odiadas da política americana do século 20 e viveu à sombra do poder por várias décadas. Sua trajetória foi contada na biografia Citizen Cohn (de Nicholas von Hoffman, 1988). Como promotor, nos anos 1950, no auge da Guerra Fria, processou diversos acusados de espionagem ou comunismo e alcançou fama com o caso do casal Ethel e Julius Rosenberg, executados em 1953. Foi o braço direito do senador Joseph McCarthy na comissão de investigações de atividades antiamericanas. Embora gay, perseguia homossexuais com brutalidade.

Mais tarde, tornou-se um importante advogado, com clientes renomados, e consultor de políticos republicanos. Foi amigo de Richard Nixon, Ronald Reagan e Donald Trump. Morreu com aids, em 1986, quando a doença ainda era chamada de “peste gay”.

A trajetória de Cohn, seu estilo agressivo e ambiguidade trágica, é um dos fios condutores da peça Angels in America, de Tony Kushner, um clássico contemporâneo lançado no início dos anos 1990. A peça tem uma remontagem que é destaque da atual temporada teatral londrina, ganhando mais atualidade ao estrear em 2017, logo após a posse de Trump.

Trump conheceu Roy Cohn na cena noturna nova-iorquina, quando era um jovem empresário. Adotou a técnica de processar quem se interpusesse em seu caminho. Até mesmo a Receita Federal americana foi processada em resposta a uma cobrança de impostos. Ele não esqueceu as lições, mas se afastou de Cohn às primeiras notícias de que ele estava com aids. Fez agora o mesmo com o assessor Steve Bannon, considerado responsável pela estratégia que o elegeu, tão logo soube que ele era uma fonte de Fire and Fury.

Cohn aconselhou a resposta agressiva de Richard Nixon inclusive diante das primeiras acusações do escândalo Watergate, que levaram à sua renúncia. Deu palpites a Reagan, um dos mais populares presidentes americanos da história. E foi também o mentor do estilo de Trump, que inspirou sua reação diante do livro de Wolff. Resta saber se o atual presidente terá destino semelhante ao de Nixon ou ao de Reagan.

Fogo e Fúria, Michael Wolff, Objetiva, 2018
Citizen Cohn, Nicholas von Hoffman. George G. Harrap & Co. Ltd., 1988
Angels in America, Tony Kushner. Disponível em livro digital da ed. Continuum (Canadá)

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SÉRIE
The Crown faz a vida imitar a série

Enquanto a Casa Branca parece ruir sob o terremoto Trump e o governo britânico sob o furacão Brexit, a Família Real inglesa passa por um momento paradoxal de luminosa popularidade e absoluto escrutínio público. The Crown, uma dramatização da história da rainha Elizabeth 2ª desde que assumiu o trono, produzida para a Netflix, é um dos maiores sucessos recentes da TV.

A série mostra de forma respeitosa a vida da rainha, sua família e o exercício de seu poder simbólico, em detalhes como nem tabloides sensacionalistas revelariam. Ao narrar os bastidores do relacionamento entre a rainha e os primeiros-ministros de seu reinado, a série deu novo destaque à imagem de Winston Churchill enquanto revelava as fraquezas dele e de seus sucessores.

Também mostrando os fogosos romances da irmã mais nova de Elizabeth, Margaret (a filha preferida do rei George 6º), e as complicadas decisões relativas às autorizações para seu casamento, a série é didática sobre o formalismo das uniões reais.

Por isso mesmo, o programa de TV tem uma ligação de mútuo benefício com a preparação do casamento do príncipe Harry, filho mais novo do herdeiro do trono, Charles, com a atriz americana Meghan Markle, mais velha e separada, e ela mesmo estrela de séries televisivas.

A solenidade provoca muitas comparações com o roteiro da série (baseada em fatos da vida real), como a abdicação do rei Eduardo 8º, tio da rainha atual, que abriu mão do trono em 1936 como condição para se casar com uma mulher mais velha, divorciada e de outra religião. Por que Harry pode e Eduardo 8º não pôde é algo que os espectadores, súditos ou não, vão se perguntar por muitos capítulos.

The Crown, Netflix. Série criada por Peter Morgan. Com Claire Foy, Matt Smith e Vanessa Kirby, entre outros.

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FILME + LIVRO
The Post, os papéis do Pentágono e a liberdade de imprensa

Uma feliz coincidência fez o lançamento de The Post — A Guerra Secreta ocorrer no mesmo início de janeiro em que Trump tentava censurar o livro Fire and Fury. Há semelhanças entre as histórias, a começar pelos presidentes republicanos histriônicos e autoritários, sempre às turras com a imprensa. Um caso ilumina o outro, assim como nos faz lembrar que a história não começa agora.

O novo filme de Steven Spielberg narra o episódio da publicação dos chamados Papéis do Pentágono, documentos secretos do Departamento de Defesa americano sobre a Guerra do Vietnã, que o New York Times obteve em 1971 e tornou tema de uma série de reportagens entre junho e julho daquele ano.

Em 15 de junho, quando o Times havia publicado três reportagens, a Casa Branca conseguiu na Justiça uma sentença proibindo-o de seguir com o material, sob a alegação de ameaça à segurança do país. O Times levou o caso à Suprema Corte, que em 30 de junho julgou que o direito à liberdade de expressão, previsto na Primeira Emenda da Constituição americana, se sobrepõe a qualquer outro direito e não poderia ser restringido.

A decisão histórica passou, então, a servir de molde para o mundo democrático. Depois de duas semanas, o Times retomou a publicação, que revelava como o governo havia mentido e agido ilegalmente em sucessivas administrações, desde o final da Segunda Guerra Mundial, para provocar e manter a Guerra do Vietnã.

Os Papéis do Pentágono estão para a história do Times como o caso Watergate para a do Washington Post: ambos são dos mais importantes furos da história do jornalismo: um tornou irreversível o fim da participação americana no Vietnã, o outro levou à queda do presidente Nixon.

The Post destaca um episódio particular do caso, que foi a participação do Washington Post, de sua proprietária, Katharine Graham (1917-2001), e do editor, Ben Bradlee (1921-2014). Diante da edição dos documentos no Times, seguida de sua proibição por decisão judicial, os líderes do Post decidem seguir com a publicação, desafiando a Justiça e a Casa Branca.

O argumento jurídico que amparava a atitude foi o de que só o Times estava proibido pela sentença e que decisões judiciais específicas deveriam ser emitidas para cada jornal. Com isso, o Post deu mais urgência à decisão da Suprema Corte e mostrou que a imprensa do país estava unida na defesa da liberdade de expressão.

A opção do filme de Spielberg foi criticada desde o início pelos envolvidos na produção das reportagens do Times, que acharam desproporcional o papel de protagonista para quem foi coadjuvante da história.

Para consagrar a posição central do jornal, aproveitando o sucesso do filme, o Times republicou o livro The Pentagon Papers: The Secret History of the Vietnam War, lançado originalmente no final de 1971, com a íntegra das reportagens assinadas por Neil Sheehan, E.W. Kenworthy, Fox Butterfield e Hedrick Smith, e os documentos mais importantes dos arquivos do Pentágono, que eles citavam nos textos.

O livro contém também análises do jornal e editoriais, além da íntegra do processo judicial até a decisão da Suprema Corte. Editado em e-book, o livro ganha grande agilidade de leitura para quem quer checar os documentos originais à medida que vai lendo as reportagens.

Há uma ironia na história dos Pentagon Papers que ensina muito sobre a natureza dos Estados, mesmo autoritários. Do mesmo jeito que o regime nazista alemão registrou o nome dos prisioneiros dos campos de concentração, o que permite aos historiadores estudar as atrocidades, foi o governo americano que preparou o arquivo centralizado a que o Times teve acesso.

Em 1967, talvez porque percebesse o lamaçal em que administrações anteriores tinham envolvido o país, 20 anos antes, o secretário de Defesa Robert McNamara decidiu criar um registro central dos documentos secretos sobre o Vietnã.

A reportagem do Times buscou alguém que tivesse trabalhado no projeto e topasse revelar seu conteúdo em nome do interesse público. Encontrou Daniel Ellsberg, um analista de assuntos militares, que acabou sendo acusado por traição e espionagem pelo governo, com pena máxima de 115 anos de prisão. Foi absolvido em 1973, em meio às repercussões do escândalo Watergate, que minava a credibilidade da administração a ponto de levar o presidente Nixon à queda.

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LIVRO
Urbanismo rima com jornalismo

O debate sobre as cidades ganhou tanta importância nos últimos anos que acabou por gerar sucessos literários. Dois lançamentos ganharam destaque de crítica e um foi eleito como um dos mais importantes de 2017. Além de serem publicados pela mesma editora, Três Estrelas, São Paulo: Territórios em Conflito, de Raquel Rolnik, e São Paulo nas Alturas, de Raul Juste Lores, também compartilham o trânsito entre urbanismo e jornalismo. Seus autores escrevem regularmente para a imprensa, o que dá a seus textos uma leveza não acadêmica e atenção permanente ao debate público.

Os autores também coincidem na visão de que em seu crescimento acelerado ao longo do século 20, em algum momento, a capital saiu do trilho de um desenvolvimento equilibrado e se tornou uma metrópole caótica e excludente, em que o automóvel dos mais ricos ganhou mais espaço e prioridade do que a maioria dos humanos, mais pobres.

O livro de Juste Lores foi escrito quando era repórter especial da Folha de S.Paulo; atualmente ele é editor da Veja SP. Seu texto mostra como nos anos 1950 a capital mais rica do Brasil viveu um boom imobiliário capitaneado principalmente por arquitetos imigrados da Europa, com prédios plurais (para diferentes faixas de renda e de uso misto) nas regiões centrais, resultando em uma cidade inteligente e sustentável (reduzindo necessidade de deslocamentos e incrementando a convivência entre classes).

Ao final desse boom, a cidade reduziu o potencial de aproveitamento dos terrenos centrais e com isso forçou o adensamento das periferias. São Paulo nas Alturas foi escolhido como um dos melhores lançamentos de não ficção de 2017 pela revista literária Quatro Cinco Um.

O movimento de exclusão que levou os mais pobres a morarem longe do centro e do trabalho, criando guetos socialmente homogêneos, é também o mote inicial dos diversos ensaios que compõem o livro de Rolnik.

A obra é composta da união de um pequeno livro anterior, já esgotado, e uma seleção de colunas que a autora, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), escreveu para diferentes publicações.

São Paulo nas Alturas, Raul Juste Lores. Três Estrelas, 2017
Território em Conflito, Raquel Rolnik. Três Estrelas, 2017

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Leão Serva é jornalista, professor do curso de graduação em Jornalismo da ESPM e escritor, autor de Jornalismo e Desinformação (Senac, 2001) e coautor de Como Viver em São Paulo Sem Carro – 2013. Dirige a agência de conteúdo Santa Clara Ideias.