Contra robôs, senso crítico e cidadania
As eleições deste ano serão, sem dúvida, mais influenciadas pelas mídias sociais do que quaisquer outras antes. Até 2016, a utilização dessas mídias era relativamente restrita, e seu alcance, portanto, muito limitado.
Atualmente, o Brasil é o terceiro país com maior número de usuários de Facebook no mundo, atrás apenas de Índia e Estados Unidos, e também se destaca no volume de tráfego no Twitter e em outros aplicativos.
A vitória de Donald Trump no pleito americano de 2016 foi turvada pelas acusações de ele ter sido favorecido por campanhas de fake news (notícias fraudulentas) em prejuízo de sua adversária, Hillary Clinton. No caso americano, há suspeitas de que pelo menos parte das ações tenha sido produto de um projeto deliberado do governo russo de interferir para dificultar a chegada ao poder de Clinton, notória desafeta do Kremlin.
É improvável que o Brasil venha a ser alvo de potências estrangeiras (a importância geopolítica do país não é das maiores e vem se reduzindo em anos recentes). Mas não se pode excluir por completo a possibilidade de ações externas nas eleições aqui, ainda que não por razões ideológicas, mas por motivações financeiras, como fizeram os jovens da Macedônia que atuaram nos Estados Unidos. Ainda assim, o perigo de fraude informativa doméstica, por dinheiro ou convicção política, é alto.
Grande parte da população brasileira sofre de ostensivas deficiências educacionais. Muitas regiões do país, principalmente estados e cidades menos habitados e ricos, carecem de bons veículos jornalísticos independentes.
A polarização sectária de militantes políticos, que vem se cristalizando há 16 anos e se exacerbou com o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, ajuda a germinar o terreno para a disseminação de mentiras.
O desenvolvimento exponencial de tecnologias relativamente simples e baratas de robôs em redes sociais expande a possibilidade de fazer chegar a uma parcela expressiva do eleitorado falsos fatos que podem desorientá-lo. Nos Estados Unidos, por exemplo, o Facebook admitiu que praticamente metade da população consumiu pelo menos uma peça de propaganda enganosa patrocinada por russos.
Às vezes, inclusive, com conteúdo neutro, mas muito danoso, como as instruções sobre como votar por meio de mensagens de SMS, algo não permitido pelas leis americanas, o que pode ter aumentado a abstenção. Como grande parte dos eleitores de Hillary Clinton é de camadas sociais mais pobres e menos escolarizadas, numa votação bastante apertada, como foi o caso em 2016, isso pode ter tido um efeito decisivo no resultado. Mas não é razoável acreditar que falsidades nas mídias sociais determinarão o veredito das urnas no Brasil.
Embora os meios de comunicação atuais sejam mais eficazes, veicular informação inverídica para muita gente em campanha eleitoral já ocorreu muito no passado e nunca elegeu ninguém. Tem sido muito lembrado que o candidato Eduardo Gomes pode ter sido prejudicado no pleito presidencial de 1945 por campanha adversária que distorceu declaração sua e espalhou que ele não queria voto de marmiteiro. Mas não foi por isso que ele perdeu.
Há eleitores crédulos e ignorantes. Há fanatizados que aceitam qualquer disparate como verdade desde que prejudique o inimigo (como, nos Estados Unidos, os que acreditaram que o papa havia endossado Trump). Mas a maioria absoluta das pessoas dispõe de algum senso crítico e de modos interpessoais de checagem de informação que lhes garante certa imunidade para não se tornarem massa de manobra dócil nas mãos de quem julga poder manipulá-las por completo. Não será um cipoal de novas leis, já construído (veja acima), que garantirá tal resistência, mas sim o juízo dos cidadãos e os instrumentos da democracia.
Números fortes
11% das discussões sobre as eleições de 2014 foram geradas por robôs
20% das interações sobre o impeachment de 2016 foram geradas por robôs
53% das interações em 2017 sobre possíveis candidatos à Presidência em 2018 foram sobre Jair Bolsonaro
61,6% foi o aumento do número de interações em grupos que postam fake news no Facebook no Brasil entre out/17 a jan/18
17% foi o aumento das interações em grupos de jornalismo profissional no mesmo período
126 milhões de americanos viram propaganda paga por russos no Facebook durante a campanha presidencial de 2016
200 é o número mínimo estimado pela AP de jornalistas e blogueiros americanos “hackeados” em 2017 pelo grupo Fancy Bear
Fontes: FGV, SocialBakers Consultoria, Facebook, AP, Folha.com
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Avaliação de Harvard
Eleição brasileira será fascinante estudo de caso
Claire Wardle, diretora do First Drive, projeto do Shorenstein Center on Media, Politics and Public Policy da Harvard University, que coordenou um trabalho de checagem de fatos nos recentes pleitos da França e do Reino Unido, diz que os brasileiros estão “particularmente vulneráveis” à desinformação na campanha eleitoral de 2018.
Para ela, o que dá essa peculiaridade ao caso do Brasil são a divisão política acirrada e o uso extensivo do WhatsApp no país. Essa combinação, acha ela, torna o eleitor brasileiro mais suscetível a informações falsas do que o de outras democracias.
“As condições estão maduras para a exposição seletiva das pessoas ao que confirme seu tribalismo”, disse Wardle em entrevista à agência Bloomberg em janeiro deste ano.
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As leis, ora as leis
Até o Exército quer ajudar a combater fake news
Mais judicializado do que nunca, o Brasil, como de hábito com outros problemas, parece achar que a solução contra a possível excessiva influência das mídias sociais no processo eleitoral está em criar novas e confusas leis.
A reforma da Lei Eleitoral tornou possível propaganda paga na internet e prevê complicados procedimentos para usuários denunciarem informações falsas e subsequentes identificação e responsabilização legal por elas.
Além da Justiça Eleitoral, o Exército quer formar um time com a Polícia Federal e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) na vigilância e repressão às fake news na campanha.
A chance de um esforço concentrado dessas entidades dar resultado positivo é mínima e a de criar ainda mais balbúrdia no processo é grande.
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Uma frase
“É muito fácil você identificar uma notícia falsa: é só jogar no Google, ver se tem jornais de grande circulação noticiando isso.”
(Demetrius Gonzaga de Oliveira, delegado do núcleo de combate a crimes cibernéticos da Polícia Civil de Curitiba e um dos pioneiros dessa área no país, em entrevista à Folha de S.Paulo em 15 de janeiro de 2018)
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Vidas em risco
Nunca foi tão perigoso ser jornalista
Exercer jornalismo independente sempre foi arriscado em qualquer lugar do mundo. Mas as coisas pioraram muito ultimamente. Os casos de violência aumentaram, e a extensão geográfica de onde eles ocorrem também.
Em 2017, 65 jornalistas foram assassinados, 326 presos e 54 feitos reféns por organizações terroristas ou criminosas, de acordo com a entidade Repórteres sem Fronteiras.
Além disso, centenas (ao menos 200 só nos Estados Unidos, segundo a firma de segurança cibernética Secureworks, citada pela AP) foram alvos de hackers do grupo Fancy Bear, ligado ao governo russo.
As causas desse agravamento são diversas, desde o aparecimento de novos grupos terroristas agressivos contra a imprensa até o recrudescimento do narcotráfico em diversas regiões.
Entre elas, uma deve ser destacada: a campanha contra o jornalismo independente desencadeada pelo presidente Donald Trump nos Estados Unidos.
Bem ou mal, seu país funcionou por décadas como instrumento de pressão contra ataques à liberdade de imprensa em regiões onde sua influência política, econômica ou militar era grande.
Trump abandonou esse padrão de conduta em seu comportamento nas relações internacionais. Em decorrência, líderes autoritários na Turquia, Malta, Filipinas, Rússia e vários outros países podem agir com mais desenvoltura.
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Crise estrutural persiste
Avanços em 2018
O Nieman Journalism Lab, da Harvard University, chamou um grupo de estudiosos da atividade para fazer prognósticos a respeito do desempenho da indústria este ano. Embora as análises tratem especificamente da imprensa americana, é sempre útil para brasileiros estar atentos às tendências da profissão nos Estados Unidos, porque, com frequência, elas acabam influenciando as daqui.
De modo geral, as previsões são pouco animadoras: o desemprego vai continuar a crescer na maioria das redações, metas de faturamento não serão alcançadas, a confiança do público nas mídias pode cair mais. No entanto, há espaço para avanços em alguns setores, como reflexo de movimentos sociais mais amplos.
Como as questões de gênero nas redações, que tendem a ser mais debatidas e talvez parcialmente resolvidas na esteira do sucesso do #MeToo.
Isso já aconteceu em 2018, por exemplo, na britânica BBC, que teve de mudar políticas salariais que desfavoreciam as mulheres.
Bill Keller, que foi diretor de redação do New York Times, prevê que o apoio de fundações filantrópicas ao jornalismo deve crescer, assim como o número de veículos organizados como entidades sem fins lucrativos.
Vídeos e podcasts tendem a ganhar mais relevância e textos devem perder espaço, segundo vários dos consultados pelo Nieman.
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Nas telonas e telinhas
The Washington Post é sucesso nos cinemas e também no balancete
O Washington Post vive sua melhor fase em décadas e oferece sinais de esperança para a indústria, que ele, como poucos veículos, representa.
A empresa que o controla anunciou que o jornal deu lucro em 2017, a exemplo do que já ocorrera em 2016, e que investimentos em pessoal na redação e na tecnologia serão feitos nos próximos meses.
Quando o bilionário da tecnologia Jeff Bezos comprou o Post da família Graham em 2013 por ínfimos US$ 250 milhões à vista, o destino do diário tinha tudo para ser o pior possível. Afogado em dívidas, decadente na qualidade do produto, com a redação desmotivada, o jornal havia se tornado uma sombra do grande ícone dos anos 1970, na época dos Documentos do Pentágono e do caso Watergate.
É do primeiro desses episódios que trata o filme The Post, de Steven Spielberg, sucesso de público e crítica, que tem servido como uma espécie de catalisador dos defensores da liberdade de imprensa nestes tempos de Trump. Como muitos já notaram, a primazia da revelação dos documentos foi do New York Times, que, no entanto, se viu proibido pela Justiça de continuar a publicá-los, por causa de uma iniciativa do governo de Richard Nixon.
Então, o Post tomou a dianteira, sob o risco de também vir a ser alvo de censura. Um de seus repórteres também tinha tido acesso aos papéis e deu sequência à divulgação.
A Suprema Corte deu ganho de causa aos jornais, em decisão que é um marco de garantia à liberdade de informação.
A partir daí, o Post, sob o comando de Katharine Graham, dona, e Ben Bradlee, editor, rivalizaria com o Times como o principal jornal para o noticiário político do país.
Com o caso Watergate, anos depois, para muitos o Post assumiu a liderança do jornalismo americano. Mas, com o aparecimento da internet na década de 1990 e em virtude de diversas decisões estratégicas de negócios equivocadas, o jornal entrou em crise, que parecia terminal há cinco anos.
Bezos investiu pesado na redação e em tecnologia, diversificou a oferta de produtos (inclusive a venda de tecnologia e conteúdo para veículos menores), apostou na ampliação da carteira de assinantes da edição digital pelo mundo todo e agora está colhendo os frutos.
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Os tempos estão mudando
Revista e diário que simbolizaram imprensa são vendidos
Time Inc., a principal empresa proprietária de revistas da história, com títulos como Time e Life, deixou formalmente de existir em 1º de fevereiro deste ano, quando sua logomarca foi retirada da entrada do prédio que ocupava em Manhattan e seu website redirecionado para o dos novos donos.
Quem comprou a Time foi a Meredith Corp., uma editora relativamente pequena, do Estado de Iowa, especializada em produtos para casa, família e autoajuda, com US$ 650 milhões dos irmãos Charles e David Koch, bilionários superconservadores que apoiam o presidente Donald Trump e outros políticos de direita nos Estados Unidos.
Time e Life tiveram em suas redações alguns dos maiores nomes do jornalismo, como Robert Cappa, Henri Cartier-Bresson e Walter Isaacson.
Um dos cinco principais diários americanos, o secular The Los Angeles Times foi também vendido para um bilionário neófito em imprensa este ano. O empresário em biotecnologia Patrick Soon-Shiong o comprou por US$ 560 milhões do tradicional grupo jornalístico Tribune, que por sua vez o havia adquirido em 2000 da família Chandler, que o fundara em 1881.
O Times, como vários outros diários americanos, entrou em crise nos anos 1990 por não encontrar uma fórmula de negócios sustentável para enfrentar as adversidades trazidas pela internet ao setor.
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Carlos Eduardo Lins da Silva é livre-docente, doutor e mestre em comunicação; foi diretor-adjunto da Folha e do Valor.