Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Vozes contra a opressão

Mulheres fazem relatos de dor, revolta e superação sobre a experiência de serem perseguidas por chefes, colegas e fontes

“Não sei se olho para o seu lide ou para o seu decote”, diz o chefe de reportagem à jovem repórter recém-contratada, que ele próprio acabara de promover. O tom é brincalhão, ele gostava de cultivar essa imagem entre colegas e subordinados, gostava de ser visto como “um cara legal”. E achava perfeitamente normal circular pela redação com aquele tipo de comentário. Certa vez, ao topar com um grupo de mulheres no cafezinho do jornal, anunciou: “Estou doido pra dar uma chinelada hoje, quem se habilita?”

Todo mundo deveria achar engraçado, afinal jornalista é sempre tão informal, leva tudo na brincadeira. Não é? Não, é claro que não é, e a aparência de “boa-praça” logo revelaria seu lado mais perverso. A repórter tentava reagir com bom humor aos repetidos comentários dele sobre as “pernas maravilhosas” da “morena tropicana”, mas não cedia. Até que o ostensivo assédio sexual se transformou num permanente e cada vez mais pesado assédio moral: o chefe, que tanto elogiava o talento e o potencial da moça, passou a ler os textos dela em voz alta para desqualificá-la diante dos colegas e dizer que ela era “míope”, que não conseguia enxergar a notícia “a um palmo do nariz”, que tinha de desistir da profissão porque não havia “nascido para ser jornalista”.

Esse é apenas o início da narrativa de Paula Máiran, 50 anos, que ao longo de mais de duas décadas sofreria inúmeros outros episódios de assédio sexual e moral, inclusive e sobretudo do mesmo profissional, com quem conviveria novamente em outra empresa – ela como chefe de reportagem, ele como diretor de redação.

“Eu comecei a receber mensagens de um desconhecido no Orkut, me chamando de ‘uva madura’, que só tinha melhorado com o tempo… vi que tínhamos apenas uma amiga em comum, uma colega de redação, e fui falar com ela para tentar identificar quem era. Ela começou a chorar, disse que ele lhe havia encomendado um perfil falso para poder monitorar a equipe, jamais pensou que era para cantar uma amiga… o pior é que ela estava tendo um caso com ele, verdadeiramente apaixonada, embora ele fosse casado. Essa menina depois tentou se matar.”
Paula Máiran, 50 anos

Paula continuou a ser assediada e, como não cedeu, acabou novamente demitida. E ficou doente.

“Eu comecei a travar, precisei operar a coluna cervical, hoje tenho fibromialgia, artrose… fui parar em psiquiatra, tomei remédio pesado… eu era magra, engordei 30 quilos, era saudável, hoje já não sou. E na época fiquei muito mal, muito mal… eu chorava o tempo todo, porque achava aquilo tudo uma tremenda injustiça, ao mesmo tempo me sentia um lixo, porque duvidava da minha capacidade. Eu melhorei, eu luto, eu trabalho, eu faço terapia, mas eu fico no chão com essa desqualificação. ” Idem

Daí a importância do comentário da historiadora portuguesa Raquel Varela num programa de debates da RTP, que ela reproduziu em seu Facebook: “O assédio sexual é na maioria dos casos assédio moral. Desvinculá-lo do moral retira-lhe a carga de totalidade das relações sociais de trabalho e dominação para resumi-lo a uma questão de gênero. Ou seja, o problema não estaria nos locais de trabalho hierarquizados, mas no homem. O que choca diretamente com a realidade: é só irem a uma fábrica de homens operários ver como são tratados pela gestora – mulher – de recursos humanos…”.

Favas contadas

De fato, em geral as histórias de assédio sexual derivam para o assédio moral, sobretudo quando a mulher rejeita a investida de um chefe. Então sua vida se torna um inferno e a demissão são favas contadas, embora, em alguns casos, o próprio chefe acene com a possibilidade de arrumar emprego para a ex-subordinada em outra empresa e chegue às vezes ao requinte de pedir ao amigo psicanalista famoso que telefone para a moça para saber como ela está.

Os casos se assemelham e atravessam o tempo: conversar sobre esse tema com mulheres jornalistas de distintas gerações é recolher relatos de dor e revolta. Pior: é fazê-las reviver situações que gostariam de ter esquecido, superado ou enfrentado de outra forma, que muitas vezes as levaram a perder a autoconfiança e a autoestima e fizeram tantas adoecerem física e emocionalmente, a ponto de, algumas vezes, desistirem da carreira e até tentarem o suicídio. Ou, ainda, acabarem assassinadas, como Sandra Gomide, morta em 2000 pelo seu ex-chefe, Pimenta Neves, que continuava a assediá-la depois de rompido o relacionamento. Mesmo quem conseguiu se impor e reagir à altura carrega consigo o peso das más recordações, o que apenas evidencia o tamanho do trauma que essa violência provoca.

É certo que os casos de assédio sexual proliferam no mundo todo e só nos últimos anos, mais de um século depois do surgimento do movimento feminista, começam a ter visibilidade. No Brasil, a campanha Chega de fiu-fiu, lançada pelo coletivo Think Olga em 2013, ganhou repercussão na mídia, e a #primeiroassedio, que estimulava as mulheres a relatarem o que sofreram, atingiu os trending topics do Twitter em outubro de 2015.

Mas, numa sociedade patriarcal como a brasileira, em que o machismo tantas vezes se disfarça e está arraigado a ponto de ser reproduzido por muitas mulheres, de maneira consciente ou não, as redações de jornais não seriam um oásis: num país que fundiu e confinou casa grande e senzala em apartamentos de classe média e alta e usou as empregadas domésticas como objeto de cobiça dos patrões e instrumento de iniciação sexual de seus filhos, a normalização do assédio permeia todas as atividades profissionais. É mais grave nas classes subalternas, que têm muito menos meios para reagir, mas também atinge os ambientes que exigem elevada formação.

Como ocorreu com praticamente todas as profissões tradicionalmente masculinas, o perfil de gênero entre quem exercia o jornalismo também foi se alterando com a progressiva entrada das mulheres no mercado de trabalho. Em 2012, os professores Jacques Mick e Samuel Lima, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com o apoio da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), coordenaram uma enquete com 2.731 jornalistas, que resultou no livro Perfil do Jornalista Brasileiro (ed. Insular, 2013) e mostrou que, nas redações, 64% dos profissionais eram mulheres, majoritariamente brancas, solteiras, de até 30 anos, mas que proporcionalmente ganhavam menos que os homens.

Mais recente e dirigida exclusivamente a esse público feminino, com a adesão de 477 jornalistas, a pesquisa Mulheres no Jornalismo Brasileiro, realizada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e pela revista eletrônica Gênero e Número, foi divulgada em novembro de 2017 e descreveu as redações como um ambiente em que persistem inúmeras situações de constrangimento: isso para uma faixa de 70% a mais de 90% das jornalistas que responderam à pesquisa, conforme a situação. Entretanto, o índice de denúncia era de apenas 15%. O relatório da pesquisa informa que, nos grupos focais, compostos de 42 jornalistas de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Porto Alegre, o tema mais comentado foi o assédio sexual, praticado por chefes, colegas e fontes.

As conclusões apontam a decepção da maioria dessas jornalistas com a conduta das empresas nesses casos. “Segundo seus depoimentos, quando porventura algum caso é solucionado, normalmente isso ocorre por meio de canais informais e relações pessoais. A tendência mais geral descrita pelas jornalistas, no entanto, é de se minimizar e abafar os casos de assédio”, informa o texto. “Algumas jornalistas relatam que colegas são mais facilmente punidos por falar mal de um chefe ou fazer alguma brincadeira ofensiva com outros colegas homens do que por assediar ou ofender colegas mulheres.” Também é frequente a sugestão de que as jornalistas saibam administrar o problema, “seja reavaliando a sua própria conduta, seja sabendo ‘se impor’ nessas situações”.

Se é verdade que, principalmente a partir de 2016, começaram a se organizar movimentos de enfrentamento ao machismo e pela garantia da igualdade de direitos, os sucessivos passaralhos dos últimos anos intimidam quem consegue manter o emprego, o que reduz as hipóteses de denunciar qualquer tipo de violência no ambiente de trabalho, ainda mais esse tipo de assédio, cujas particularidades tornam mais difícil e delicada a queixa.

“Em primeiro lugar”, diz a presidente da Fenaj, Maria José Braga, “tanto no caso do assédio moral quando no do sexual a vítima está muito fragilizada e demora a procurar ajuda. Isso quando procura, porque teme se expor e ficar ainda mais vulnerável. Além disso, o assédio moral pode ocorrer com testemunhas: um chefe muito autoritário pode assediar moralmente um subordinado publicamente. Mas o sexual quase nunca ocorre na frente de outros. Por isso é mais difícil provar, é a palavra da vítima contra a do assediador. E o sindicato não pode entrar com ação por substituição nesses casos, a ação só pode ser feita se a vítima se identificar.”

O caminho da denúncia

Mesmo quando há provas é difícil entrar com um processo. Paula Máiran tinha alguns dos e-mails que comprovavam o assédio, mas os advogados que consultou na época a desencorajaram: “Eles disseram: você sabe que o seu meio é muito machista, né. Sua carreira vai acabar, você nunca mais vai trabalhar em lugar nenhum, vai ter que processar também a empresa, que é poderosa, e ainda vai ser a culpada do que aconteceu, porque certamente vão dizer que você é que deve ter provocado.”

Embora a situação possa ser menos desfavorável hoje, diante da visibilidade que esse tema tem alcançado, a própria legislação restringe a possibilidade de formalização de denúncias ao subordiná-las à existência de uma relação de hierarquia entre assediador e vítima.

O assédio sexual foi tipificado como crime em 2001, pela Lei nº 10.224, que deu a seguinte redação ao art. 216-A do Código Penal: “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício, emprego, cargo ou função”. A pena prevista é de detenção, de um a dois anos.

“Essa exigência de relação de hierarquia é um problema, porque o assédio pode ocorrer entre colegas”, lamenta a presidente da Fenaj. “Mas a legislação só responsabiliza a empresa se há hierarquia, porque supõe que o preposto aja em nome da empresa.”

O diretor-executivo da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Ricardo Pedreira, afirma que a entidade trata da questão de gênero no âmbito de seus comitês editorial e de recursos humanos, “sempre com a preocupação de que as empresas tenham uma postura ética e, obviamente, orientada pelas determinações legais”, e que desde 2015 ajuda a divulgar entre seus associados “as pesquisas, recomendações e notícias da WIN – Women In News, um fórum permanente sobre a questão do gênero feminino na indústria jornalística mundial”. Diz, entretanto, que a ANJ não tem informações sobre a existência de setores específicos nos jornais voltados a atender casos de assédio.

“As empresas precisam entender que o combate a essa atitude faz parte do compliance. As empresas querem determinar como os profissionais se comportam nas redes sociais, mas não entendem a questão emocional que representa o assédio”, diz Janaína Garcia, 36 anos, repórter do UOL e uma das fundadoras do grupo Jornalistas contra o Assédio, criado em junho de 2016 e que mantém uma fanpage no Facebook. “É uma questão de disposição das empresas, que até poderiam lucrar com isso, ter trabalhadoras mais satisfeitas.” Janaína recorda o caso da figurinista da Rede Globo que precisou vir a público para denunciar o ator José Mayer, porque todas as suas tentativas anteriores, pelos canais internos, foram frustradas. “As empresas jornalísticas vão esperar chegar a um desgaste desses? Fica mal para a imagem delas”, completa.

“O ideal seria que as empresas fossem proativas”, argumenta Maria José Braga, “que desenvolvessem programas internos para a discussão dessas questões e abrissem canais de acolhida, não só para receber as denúncias, mas para amparar as vítimas emocionalmente.” Maria José diz que as empresas não criam esses programas porque isso significaria reconhecer a existência do problema, que abriria espaço para indenizações. Ao mesmo tempo, afirma a necessidade de os sindicatos organizarem grupos para essa acolhida, como o que existe em São Paulo. “A gente entende que o caminho é a conscientização política das mulheres e o incentivo à exposição, porque é inevitavelmente uma exposição pública. É o mesmo incentivo que o movimento feminista faz para denunciar a violência doméstica. É preciso perder o constrangimento, quem tem de estar constrangido é o assediador.”

Mudar a cultura

Esses esforços dizem respeito a uma luta mais ampla e demorada no campo cultural, que começa com o combate à naturalização de certas práticas. Nos anos 1990, por exemplo, era praxe a eleição das “gostosas da redação”. Todo mundo levava na brincadeira, mas algumas categorias do “prêmio” tinham uma carga muito pejorativa: “peixinho de aquário”, por exemplo, era uma clara insinuação sobre a relação entre a “eleita” e seu chefe. “Em contrapartida”, diz a jornalista Olga de Mello, “nós organizamos por três anos a eleição do ‘thesouro da redação’, na qual só as mulheres votavam e era elegível qualquer ser nascido homem, inclusive os gays.” Também muito assediada – “até a idade da invisibilidade, que aos 40 a vida acaba”–, Olga, hoje com 57 anos, foi das raras que, apesar de seu excelente humor, reagiram com vigor a essas situações. Isso lhe custou, logo no início da carreira, “certa perseguição” de uma pessoa poderosa na hierarquia do jornal, o que a levou a ter apenas duas promoções em dez anos de casa.

“De coleguinhas eu ouvi obscenidades, que passavam por brincadeiras. E tinha os toques indevidos, que são desagradabilíssimos. Fora o comportamento de um assessor de imprensa que, enquanto eu estava grávida, passava a mão na minha barriga dizendo que tinha tesão por mulher grávida. ”
Olga de Mello, 57 anos

Mas há também o ambiente de rivalidade entre as mulheres quando alguma delas chama a atenção por seus atributos físicos. Dois casos, de épocas diferentes, ilustram bem essa situação, e só foram relatados sob a garantia do anonimato. O primeiro é o de uma jornalista de 63 anos e mais de 40 de carreira, 30 dos quais em grandes redações do Rio de Janeiro. “Chegaram a plantar a história de que eu tinha namorado um político importante, que de fato me assediou certa vez. Eu não era de frequentar festas nem bares, não tinha patota, tinha um filho pequeno e precisava cuidar dele”, diz. Foi muito assediada desde sempre, e a negativa resultava em assédio moral intenso, que incluía boa dose de cinismo.

“Um dos chefes que me atacaram me passou uma pauta de capa justamente sobre assédio sexual. Depois, outra capa, com foto, de alguém que tivesse feito prótese peniana. Depois me mandou fazer e reescrever quatro vezes uma matéria de 20 laudas sobre um traficante. Quando entreguei, às 2 da manhã, ele disse que tinha esquecido de avisar que a matéria tinha caído. ”

Jornalista de 63 anos, com mais de 30 de  experiência em grandes redações do Rio de Janeiro “Todos achavam que eu era bonita e burra”, prossegue a jornalista, “e o tempo todo eu queria provar que eu não era uma bunda, eu era uma repórter bonita e competente.” Por isso aceitava as pautas mais difíceis e perigosas. E ironiza: “Eu tenho de ser grata a esses caras, porque a exigência cada vez maior deles foi me burilando, só sendo muito competente eu conseguia permanecer no emprego”.
O outro caso ocorreu com uma jornalista mais jovem, hoje beirando os 40 anos, que sofreu porque seus colegas se convenceram de que ela obtinha furos devido aos seios que saltavam da blusa.

“Eu não tinha seios, e isso era um trauma pra mim. Nas primeiras férias do meu primeiro emprego, ainda na minha cidade natal, decidi botar silicone. E pra mim o grande barato da vida era usar uma blusa com decote, não imaginei que isso seria um problema. ”
Jornalista de 40 anos, que deixou as redações por causa das perseguições

No Rio, o salário não dava para pagar mais do que um quarto num pensionato de freiras. Ainda assim, ficou com a pecha de piranha. “Eu descobri que aqui as pessoas trabalhavam em pool, combinavam lide… e decidi que não ia fazer aquilo porque meu trabalho precisava ter um diferencial, para melhorar meu salário.” Então, por exemplo, nos plantões em delegacias, os colegas saíam para almoçar e ela ficava. “No dia seguinte minha matéria tinha uma informação diferente. Mas o problema não era que eles tinham ido almoçar. O problema era o meu decote. Você dizer que a sua concorrente transa com as fontes é uma desculpa inquestionável, contra isso não tem como lutar. É mais fácil criar esse personagem do que admitir que eu poderia ter talento.” As perseguições dos colegas chegaram a tal nível que ela adoeceu a ponto de definhar. Na primeira oportunidade, deixou a redação e foi trabalhar em assessoria.

“Fui ganhar como PJ o que ganhava com carteira assinada, mas preferi assim porque não aguentava mais gastar dinheiro em terapia e remédio controlado. Ainda frequento terapia, são 12 anos de feridas… eu fui atrás de um sonho, não sabia que seria tão dolorido. ” Idem

Essa história permite pensar também sobre o controle do comportamento das jornalistas, que inclui sua forma de vestir. A pesquisa da Abraji recolheu muitas reclamações a esse respeito e anotou: “Esse controle oscila entre exigir que a profissional cubra o corpo a fim de ser respeitada e não ‘distrair’ os homens até o seu inverso: com frequência chefes e colegas sugerem que as jornalistas exponham e usem o corpo como instrumento de trabalho, instrumentalizando o interesse sexual dos homens a seu favor na cobertura jornalística”.

É uma questão que põe em causa o assédio sexual por parte das fontes, e que ocorre independentemente do traje. São comuns os casos dos que chamam a repórter para um chope ou um jantar, a pretexto de passar mais informações. Flávia Oliveira, 48 anos, com carreira consolidada no Grupo Globo, considera gravíssima essa situação e conta que, em duas ocasiões, duas fontes – dois economistas – tentaram beijá-la à força. O fato de ser negra foi uma característica suplementar para atrair também a cobiça dos chefes, que a assediaram bastante no início da carreira: “Há uma sexualização excessiva atribuída às mulheres negras e isso desperta certo despudor nas abordagens”.

Tolerância do mercado

Finalmente, existem histórias de jornalistas que cedem aos apelos de superiores ou fontes, ou mesmo se insinuam para ascenderem de posto. Uma das entrevistadas deplora essa situação: “Quem fez isso precisa carregar a culpa de ter reforçado esse estigma. Elas têm de saber que fizeram muito mal às colegas. Não as que se envolveram afetivamente, mas as que fizeram por carreirismo. Porque deram argumento para eles avançarem cada vez mais o sinal, e de perseguirem quem não cedeu”.
Olga tem outra opinião.

“A gente ouvia falar disso, eu nunca tentei apurar, acho que isso é mais ou menos como prostituição: é muito fácil você falar mal da prostituta, mas quem está ganhando mais não é ela. Tem uma rede que ganha grana com isso e tem o cara que usa aquele serviço. Então é muito fácil falar, ah, fulaninha deu pro chefe e é por isso que ela está ali. A mulher que chega à chefia é sempre vista como alguém que obteve favores. E a que sobe e não deu bola pra ninguém, a primeira coisa que falam: é sapa.”
Olga de Mello, 57 anos

Já Flávia reconhece que esse é o outro lado da naturalização do assédio e que houve quem, por conivência ou falta de consciência, se aproveitou desse ambiente para se promover na carreira, mas ressalva:

“ Só olhar o final do filme e vilanizar essas mulheres não conta a história toda. É porque o mercado é tolerante com o assédio que existem mulheres que se aproveitam disso. A regra do jogo costumava ser essa. É muito caro se insurgir. E você não sabe se é por uma questão de necessidade de manter o emprego ou se é por ambição. Mas a premissa é que o mercado banaliza esse tipo de prática. Então eu não culpo a colega.”
Flávia Oliveira, 48 anos

Essa banalização vem sendo combatida com os movimentos surgidos nos últimos anos. “Quando comecei, no início dos anos 1990”, diz Flávia, “o assédio era a norma. Era ou aguenta ou sai. Lembro de ter comentado com algumas amigas sobre episódios que sofri e elas diziam que não era bem isso: que era um galanteio, que eu era radical. Agora cresceu a percepção de que se trata de uma forma de violência. As jovens hoje estão numa situação menos pior, porque a tolerância a todas as formas de agressão à mulher mudou.”

A criação do coletivo #jornalistascontraoassedio é um exemplo do que pode ser feito para ajudar a mudar a cultura machista. A iniciativa surgiu após a demissão de uma jovem repórter que havia denunciado o assédio do cantor Biel durante uma entrevista. Janaína Garcia protestou contra aquilo no seu Facebook, num post que rapidamente obteve muitos compartilhamentos. Logo uma colega lhe sugeriu fazer um vídeo, divulgado em grupos de WhatsApp, apelando a que outras jornalistas enviassem selfies contando suas histórias. “Em um dia”, conta

Janaína, “o grupo ‘mulheres jornalistas contra o assédio’ teve 4 mil adesões. Em um fim de semana juntamos 150 vídeos e começamos a mobilização. Ficou evidente o tamanho da demanda reprimida para falar disso.”
O grupo hoje conta com 30 jornalistas de praticamente todas as redações de São Paulo, além de assessorias, inclusive do Ministério Público, o que ajuda nas ações desenvolvidas. Em 2017, aproveitando uma crônica publicada no Correio Braziliense que ressuscitava o estereótipo da estagiária “sedutora” e foi muito criticada nas redes, lançou uma série de vídeos em que jornalistas homens recitavam e criticavam frases de assédio ouvidas por suas colegas. “Quisemos envolver os homens porque não podemos continuar falando apenas para a nossa bolha”, explica Janaína.

Essa decisão faz parte do esforço de enquadrar o feminismo na perspectiva mais ampla da questão do poder, “que se exerce de maneira mais opressora sobre a mulher, mas atinge o trabalhador de modo geral”. A jornalista conclui: “É preciso naturalizar o ativismo, entender que queremos condições iguais para todos. Seria isto o ideal: o feminismo deixar de ser necessário como forma de tratar causas tão básicas de desigualdade, porque então teríamos compreendido a necessidade de respeitar todo mundo”.

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Sylvia Debossan Moretzsohn é professora aposentada de jornalismo da Universidade Federal Fluminense. É pesquisadora do ObjETHOS, Observatório da Ética Jornalística, e autora de O Papel dos Motoristas de Jornal na Produção da Notícia (Editora Três Estrelas, 2013).