>>Exemplo 1 – “Ônibus vazios e carros parados” [manchete do Diário de Pernambuco, domingo (29/4/2012)
Vejo a foto e leio isto “ônibus vazios e carros parados” e quase choro de vergonha: a manchete correta não seria dizer (e deixar bem claro) que os carros da foto estão sempre vazios (ou ocupados por 1, no máximo por 2 pessoas)? Tanto nos horários de pico, quanto nos demais horários?
Esses, os carros, os automóveis são os donos da rua e os que atrapalham mais o trânsito (pois é bom lembrar que trânsito não se resume a transporte particular): os carros ocupam 72% do espaço da Av. Agamenon Magalhães! (Dados de acordo com uma auto-ridade-especialista num programa na TV-U recentemente).
Mas esta deformação da opinião pública não é de agora.
A guerra das Kombis lotações
Antecedente que para mim me foi marcante (em contraste com o que vivi, vi e vejo em Porto Alegre, de onde cheguei há poucas semanas, pra matar a saudade, e onde morei muito tempo, inclusive durante a intervenção pelo então prefeito Olívio Dutra e a con-seqüente e quase milagrosa melhoria do serviço de ônibus na capital gaúcha, interven-ção sobre a qual a imprensa silencia, podemos imaginar por quê) foi A Santa Aliança.
A Santa Aliança:no passado governo Joao Paulo PT/Jarbas Vasconcelos/PMDB, toda a imprensa local: aquela verdadeira operação de guerra teve a inestimável ajuda, estí-mulo e destaque do Quarto Poder(como se chama a imprensa e seu entrelaçamento com os demais poderes, todos juntos na dominação e manipulação do povo, descontadas suas querelas intestinas): vergonhoso momento de parcialidade contra a válvula de escape que servia ao povo, as lotações, transportes alternativos, ação espetacular que serviu pra abrir mais espaços pros automóveis, o que era tão claro, tão previsível, e de que se-ria uma jogada de cena
[À época, e não comodamente a distância, deixou-se escapar uma colaboração escrita e enviada por um leitor enxerido a um dos três jornais locais (“Vida de gado nos ônibus do Recife: Até quando?”, em 7/9/2003, Folha de Pernambuco, talvez últimos instantes de surpreendente pluralidade e abertura da finada seção Cidadania, que ocupava às vezes duas páginas daquele jornal, que teve que sobreviver, é claro… e a que preço!)]
Motos e acidentes
Depois vieram outros bodes expiatórios: motos e motociclistas. Digo bode expiatório porque assim me parecem diante do poder da indústria dos automóveis e das construtoras de estradas, ruas, avenidas, viadutos. E diante do coração mole dos poderes estabelecidos e de seus novatos que se revelaram à altura.
Mas fiquemos na imprensa livre, independente e ética, com sua liberdade de expressão garantida: em nenhuma dessas notas, reportagens e “debates” vejo maior espaço… para o contraditório, não vejo, não leio, nem ouço, nem assisto a estatísticas sobre quem é, em qual proporção é e são os responsáveis nos acidentes nos acidentes envolvendo motos e automóveis. Motos e ônibus. Motos e caminhões. Motos e pedestres. Satanizam-se as motos. Satanizam-se os mau educados e os imprudentes motoristas de… de… motos. E ponto.
A navegabilidade do Rio Capibaribe
E, agora, vêm essas medidas paliativas, é trem rápido, são viadutos, e, entre elas, o ace-no da navegabilidade do Rio Capibaribe (novamente, uma medida espetacular, a mania de grandeza e do autoengano provinciano – “Pernambuco falando para o mundo” – que não passa de projeto anunciado em véspera de eleição e cujo fracasso é muito previsível, mas enche o noticiário, as audiências públicas, e dá assunto à imprensa e aos demais poderes, vendendo ilusões e consciências leves, bem leves ( há um filme japonês, O Homem Mau Dorme Bem, de A. Kurosawa).
Na remota hipótese de sucesso, será não um sistema de barcos de transporte público, de deslocamento, mas sim de barcos turísticos, como já houve décadas atrás e atualmente há um catamarã turístico.
Mas sendo o rio ainda mais sujo, e sendo sujo a cada segundo, população ribeirinha miserável (cuja atenção deveria ser prioritária), mesmo se houver sucesso como verdadeiro transporte de deslocamento de massa, tais barcos seriam pra… deslocarem o povo, sim, o povão pra bem longe de nossas vias privadas, ou privatizadas, mais do que já o são.
E ainda criarem um fenômeno também mais do que previsível de assaltos dentro dos barcos, ou sendo abordados por barcos-piratas. Aí, o fracasso anunciado teria seu fim, para a “surpresa” da propagandeada navegabilidade do Rio Capibaribe.
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>>Exemplo 2: “Perigo no trânsito” [coluna “JC nas ruas“, Jornal do Commércio, 28/4/2012]
Na fotografia, a coluna enxerga maior perigo na carroça sem sinalização, num viaduto de alta velocidade, e não na péssima sinalização pintada no chão, nem na falta de muretas ou paredes para que , seja em avenidas, seja em viadutos, o perigo de acidentes seja minimizado ao máximo.
Na nota da coluna, não se pensa na miséria, na deficiente alimentação que provavelmen-te afetou a capacidade de atenção de carroceiros em nossa pobre Recife e Grande Recife, que catam, apanham, e carregam nosso lixo. Nem se pensa na extrema necessidade que faz perder a noção do perigo.
Na nota daquela coluna vemos uma inversão das coisas ou uma visão como se fosse um tipo de photoshop quanto à ideologia da colunista (ideologia que ela mesma nem percebe, se pegarmos emprestada a hipótese do inconsciente freudiano, ou, por outro caminho, a ideologia de uma sociedade sendo a ideologia da classe dominante).
Por sinal, o JC é useiro e vezeiro de propostas ou de denúncias em que a vítima é… o automóvel, e o perigo é o povo sem carro, o pedestre, o pedinte, o flanelinha, os artistas de rua nas encruzilhadas dos sinais de trânsito, já vi até nota de outra jornalista do JC apontando para a desiguldade de pessoas a morarem sob viadutos… sem pagarem aluguel. Um doce a quem adivinhar de onde partem pérolas como esta, uma pista: diz-se especialista em mobilidade urbana, eventualmente interina da coluna aqui citada, no jornal impresso).
Urbana
Para completar esse brevíssimo espanto, as reportagens nos diversos veículos de comunicação que abordem a mobilidade urbana e os problemas no trânsito são agraciadas pelo concorrido prêmio Urbana, criado nada mais, nada menos do que (pasmem) um acordo, ou, como preferem denominar, um convênio, uma parceria entre o Sindicato dos Jornalistas de Pernambuco e o Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros no Estado de Pernambuco…
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[Humberto Cavalcanti é sociólogo e repórter fotográfico]