Ouvimos depoimentos dramáticos na primeira reunião da Comissão da Verdade com os familiares de desaparecidos políticos, em junho em São Paulo. Já há uma terceira geração assombrada pelos seus desaparecidos: sobrinhos buscando despojos de tios, netos inquirindo por avós. Essa reunião deveria ter sido aberta à imprensa, transmitida pelos meios de comunicação de massa. Mas ela se deu a portas fechadas.
Por que a Comissão da Verdade trabalha em sigilo, como se ainda estivéssemos em tempos de ditadura? Já naquela reunião sugeri, em curta intervenção, que as reuniões fossem abertas. Hoje, acrescento, que haja sessões televisadas, como são as da Câmara, do Senado e do Supremo. Se a Comissão da Verdade não foi criada para fazer justiça, se não tem objetivo punitivo, que outro sentido teria senão o pedagógico, o de revelar a nossos filhos e netos as atrocidades cometidas no passado recente para que não se repitam?
Um dos membros da comissão, o advogado José Carlos Dias, argumentou, então, que o sigilo era necessário para que os depoentes se sentissem à vontade para falar, para que se pudesse chegar à verdade última dos fatos. Mas, que verdades a Comissão da Verdade procura? O que é a verdade, numa comissão que não tem funções processuais? Que não precisa provar a um júri que o agente do Estado assassinou aquele estudante já rendido com três tiros e não com quatro ou com dois, ou a pauladas?
Claro, ainda queremos enterrar nossos mortos. Ainda há uma verdade individual devida a cada família. Essa é a dimensão pessoal da tragédia. Mas há a dimensão nacional, na qual a verdade que interessa é a verdade socializada, apropriada pela sociedade civil, a verdade como ferramenta de conscientização e elaboração da nossa história. O que está em jogo é o domínio da memória histórica. E isso só se consegue abrindo as sessões ao conhecimento amplo, televisionando-as, exibindo as inquirições e documentos encontrados, aí sim, nos mais escabrosos detalhes, para que não seja uma narrativa abstrata.
Razões de Estado
A abertura ampla das sessões como estratégia geral não impediria a convocação de determinados protagonistas da repressão para algumas sessões reservadas nem colidiria com essa convocação. Que não seja esse o motivo. Muitos desses personagens já estão falando, sem exigir sigilo, em livros recém-publicados. Outros estão depondo ante a força-tarefa dos procuradores federais que investigam as desaparições, mesmo sabendo que esses procuradores, diferentemente da Comissão da Verdade, têm como objetivo fazer justiça.
Já se passaram quatro meses desde a instalação da Comissão da Verdade e nada se sabe sobre seus trabalhos. Ocasionalmente se lê nos jornais que a comissão vai chamar fulano ou sicrano, por terem sido citados em reportagens desses mesmos veículos, entre elas o pungente relato deste jornal sobre a Casa da Morte, de Petrópolis (ver “E o direito à memória bateu à porta“). É a mídia pautando a Comissão da Verdade e não a Comissão da Verdade pautando a mídia.
Em debate sobre a Comissão da Verdade, no mês passado, em Brasília, um de seus membros, o ex-procurador da República Cláudio Fonteles, iniciou sua fala com a advertência: “A comissão da verdade não levará a nada sem a pressão da sociedade civil”. Disse também que um dos objetivos da Comissão da Verdade é estimular a formação de outras comissões da verdade pelo Brasil afora, comissões estaduais, municipais, em vários âmbitos. Eu então perguntei, e repito aqui a pergunta: como motivar a sociedade civil, se seus trabalhos são secretos?
Essa é a principal contradição da Comissão da Verdade: adotar procedimentos de inquérito policial, que tem por objetivo fundamentar indiciamentos em tribunal, embora seu objetivo seja o julgamento histórico, não o criminal. Outra contradição é a que se dá entre o perfil dos seus sete integrantes, pessoas comprometidas com os direitos humanos, e a natureza de uma comissão nascida por razões de Estado, com as limitações delas decorrentes.
Essa é uma contradição que sempre existiria em algum grau, porque o Estado é um espaço de disputa. Mas, ao adotar o segredo como estratégia, a comissão tenta resolver essa contradição assumindo as razões do Estado, não as da sociedade civil. Mais que isso, extrapolou as razões de Estado, pois a lei que a instituiu não impôs o segredo absoluto a seus trabalhos, apenas abriu a possibilidade de sigilo se assim o desejar determinada testemunha.
O que mais?
Ao final dessas sessões sigilosas, a Comissão da Verdade deverá nos apresentar um relatório, talvez chocante, revelando episódios, fatos e comprometimentos, a maioria dos quais já conhecidos em linhas gerais e muitos deles com detalhes. Talvez até solte, antes disso, um relatório parcial ou dois.
Tanto os relatórios parciais, se existirem, quanto o final, vão ganhar alguns dias de destaque na mídia. E depois não mais se falará no assunto. E se, posteriormente, alguém ousar levantar de novo o tema dos desaparecidos, o pensamento hegemônico responderá: vocês já não tiveram a Comissão da Verdade, que mais vocês querem?
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[Bernardo Kucinski é jornalista e escritor, professor visitante da Universidade Federal de Santa Catarina, autor, entre outros, de K. (Editora Expressão Popular)]