Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

É o fim da censura. Em Mianmar

Enfim, uma boa notícia: acabou a censura. Em Mianmar. E só lá, essa semana. No resto do mundo, dos mares da China aos Andes, o Grande Irmão permanece obscenamente vigilante e os corifeus da intolerância de tocha em punho.

Celebremos a exceção. Na semana passada, Tint Swe, o último chefe da censura de Mianmar, poderoso árbitro do que os birmaneses podiam ler e publicar (o que incluía até o catálogo de telefones), aposentou-se e fechou o escritório da Divisão de Escrutínio e Registro da Imprensa, coroando o desmonte de cinco décadas de totalitarismo executado pelo governo civil de Thein Sein, eleito há dois anos.

Enquanto os birmaneses festejavam a aposentadoria de seu último catão, só aqui no Brasil tivemos duas ações repressoras contra o YouTube e a tentativa de um deputado para retirar de cartaz o filme Ted – Uma Aventura Fantástica; a presidente argentina, Cristina Kirchner, apertou ainda mais as cravelhas no grupo jornalístico de El Clarín; o presidente equatoriano, Rafael Correa, destilou mais ódio ao editor do principal jornal do país; o presidente russo, Vladimir Putin, mesmo contra a vontade do primeiro-ministro Dimitri Medvedev, manteve a prisão das garotas do grupo punk Pussy Riot; um ministro do Paquistão instituiu uma fatwa (no valor de US$ 100 mil) para o produtor daquele vídeo contra Maomé; a China, bem, a China é um caso perdido no que diz respeito à liberdade de expressão, assim como o Irã e Cuba, ouro e prata na repressão à internet, segundo um relatório também divulgado na semana passada pela Freedom House, no qual a China ficou com o bronze.

Minoria radical

A repressão chinesa, ativíssima no digital e no analógico, já conseguiu contaminar até as feiras de livros europeias. Depois de Frankfurt 2009, chegou a vez da London Book Fair deste ano, que entubou pianinho todas as restrições a autores e obras impostas pelo governo de Pequim, razão pela qual lá não estiveram, entre outros, o Nobel de Literatura Gao Xingjian, exilado em Paris, e o Nobel da Paz Liu Xiaobo, ora cumprindo pena de 7 anos em sua terra natal, acusado de subversão.

Faz um bom tempo que, oficialmente, a censura acabou no Brasil, mas vez por outra uma alma obscurantista tenta de algum modo ressuscitá-la. O último a pôr a cabeça de fora foi o deputado Protógenes Queiroz, do PC do B, cujo esforço para banir de nossas telas o filme Ted resultou infrutífero. O parlamentar (e também delegado de polícia) implicou com o epônimo ursinho por considerá-lo um mau exemplo para a juventude. Ted não estuda, não trabalha, consome drogas e é feliz. Depois de criticar a liberação do filme para maiores de 16 anos, Protógenes voltou atrás – muito atrás, eu diria que aos idos do general Bandeira, que, no auge da ditadura militar, vetava todo e qualquer filme que julgasse imoral ou subversivo – e decretou: "Esse filme não pode ser liberado para idade nenhuma". A Universal Pictures agradece a involuntária promoção.

Dois dias depois de Protógenes recomendar, sem sucesso, a volta da censura ao Brasil, o diretor-geral do Google no Brasil foi detido por ordem de um juiz eleitoral de Campo Grande (MS), sob a acusação de haver descumprido ordem de retirar do YouTube um vídeo hostil ao deputado Alcides Bernal, candidato do PP à prefeitura local. O Google, dono do YouTube, recusara-se a cumprir a ordem por não considerar o vídeo calunioso. O rigor da lei eleitoral prevaleceu, mas cabem, aqui, duas perguntas: 1) não terá sido a detenção descabida?; 2) E se o candidato a prefeito for mesmo a flor que não se cheira pintada no vídeo? Basta um sim a essas perguntas para o Brasil recuperar seu status de democracia relativa.

Na véspera da detenção do diretor-geral do Google, mais um revés do YouTube: acatando pedido da União Nacional Islâmica, um juiz de São Paulo deu dez dias para que o site retirasse do ar o vídeo Inocência dos Muçulmanos – sim, aquele mesmo. Se a ordem não for cumprida, multa diária de R$ 10 mil. Não ficou esclarecido se o chefe do Google terá de cumprir pena – no caso, dupla – em Campo Grande ou em São Paulo. Nesse ritmo, tão cedo não perderemos a liderança entre os países que mais censuram (ou pedem censura) o Google. Não disponho dos dados mais recentes, mas li que nenhum outro país nos suplantou nesse quesito no segundo semestre de 2009.

O vagabundérrimo vídeo islamofóbico não merece ser visto, nem sequer por curiosidade antropológica, mas seus insultos ao profeta Maomé não justificam que o escondam do julgamento de quem quer que seja, crentes, incréus ou agnósticos. Não fosse a reação histérica e desmedidamente violenta de uma minoria de radicais muçulmanos, o mundo nem teria se dado conta da existência do filme. Que danos à ordem pública e à vida humana ele concretamente causou? Nenhum.

Sagrado e divino

Discordo do advogado da União Nacional Islâmica: o vídeo, se ofende a coletividade islâmica, não viola a Constituição, pois não viola o direito de liberdade religiosa. Incitar o ódio é outra coisa. Nenhum filme, aliás, tem o poder de violar o direito à liberdade religiosa. Por não ser juiz, ditador, polícia, soldado, aiatolá, mas apenas um artefato cultural, nenhum filme tem a capacidade de coibir ou proibir a prática de crenças e cultos. Já quem o proíbe viola a Constituição, pois impede a livre manifestação do pensamento (Artigo 5, parágrafo 4), direito que, por sinal, antecede, no dispositivo constitucional, a inviolabilidade da liberdade de crença (Artigo 5, parágrafo 6).

Não há ofensa – nem a Maomé nem a Deus – que justifique uma retaliação que atente contra a vida do ofensor e sacrifique inocentes, como os que até agora morreram por causa de uma blasfêmia cinematográfica. O que para uns é sagrado, intocável, divino, para outros não é – e não há como decidir de que lado está a razão, pois o conceito de sagrado e divino é uma invenção humana. Assim como a blasfêmia, de resto, cúmplice da derrubada de algumas ou várias teocracias ao longo da história. E também a censura.

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[Sérgio Augusto é jornalista, colunista do Estado de S.Paulo]