No Código Penal brasileiro, o artigo 161 trata de modalidades de crime contra o patrimônio, entre as quais o uso de artifícios para a apropriação de coisa imóvel alheia. Na lei de meios audiovisuais argentina, o artigo de mesmo número instituiu o emprego de artifícios autoritários para permitir o crime contra o patrimônio – quando o autor é o Estado e a vítima, a liberdade de imprensa. É o que o texto denomina, com cínico eufemismo, “processo de desinvestimento” das empresas de comunicação. Concebida pelo governo da presidente Cristina Kirchner a pretexto de “democratizar” a informação no país, e aprovada em 2009 por um Congresso majoritariamente submisso à Casa Rosada, numa época em que a popularidade da sua ocupante era incontestável, a chamada lei da mídia se destina, isso sim, a levar às últimas consequências a colonização do setor pelo sistema kirchnerista de poder.
A meta é redistribuir as licenças para a operação de estações de rádio e televisão, de sorte a reduzir a 1/3 do total as emissoras comerciais. Outro terço será assumidamente estatal, e o terceiro será concedido a entidades sem fins lucrativos, como sindicatos, fundações e igrejas – a escolha, naturalmente, ficará ao talante do governo. Num arranjo tipicamente chavista, as estações estatais alcançarão a população inteira argentina; já o alcance das comerciais não poderá exceder a 35% dos ouvintes e espectadores do país. A origem remota da lei liberticida data de 2008, quando o maior conglomerado de mídia argentino, o Grupo Clarín – que, além de editar o jornal de mesmo nome, o maior do país, detém quatro canais de TV aberta, 10 emissoras de rádio e 240 concessões de canais a cabo –, rompeu com os Kirchners, o ex-presidente Néstor e a sua sucessora Cristina. Ao tomar o partido dos ruralistas em seu amargo confronto com a Casa Rosada, o grupo passou a encabeçar a lista de inimigos jurados do casal – e a sua liquidação se tornou política oficial do Estado.
A sede do Clarín chegou a ser invadida por um pelotão de mais de 200 fiscais da Receita, no que seria uma “operação de rotina”. Em março do ano passado, a polícia cruzou os braços enquanto um piquete sindical impediu que chegasse às bancas uma edição do jornal – a primeira vez em 65 anos que deixou de circular. Também para quebrar a espinha da empresa e aferrolhar a sujeição da imprensa aos desígnios da presidente, ela apresentou projeto declarando de “interesse público” a produção, venda e distribuição de papel-jornal na Argentina, monopólio de uma companhia cujo sócio maior era o Grupo Clarín (com 49% do capital) e na qual o Estado participava com 27%. Aprovado o projeto, o governo tomou conta do negócio. Por fim, a lei de meios mutila o grupo com o inequívoco objetivo de silenciá-lo.
A organização recorreu aos tribunais contra o artigo 161 do texto, por violar direitos adquiridos – no caso, a abreviação forçosa da vigência das concessões existentes. Em decisão liminar, a Justiça suspendeu a aplicação do artigo draconiano até dezembro de 2013. Em maio, sob ostensivas pressões do Executivo, a Suprema Corte argentina antecipou o prazo para 7 de dezembro próximo. Segundo a própria lei, as empresas têm um ano de prazo para se adaptar às suas normas, transferindo ou devolvendo as concessões de que são detentoras. Eis que, no último fim de semana, em meio à transmissão dos jogos do campeonato nacional de futebol, a TV estatal levou ao ar um vídeo em que Cristina, além de invectivar o Grupo Clarín, confirmou a data de 7 de dezembro para o artigo 161 começar a surtir efeitos. Não se sabe exatamente o que poderá acontecer então – mas, sendo o que é a Argentina de hoje, fala-se até em ocupação das instalações do grupo.
O certo é que a presidente lançou um truculento ultimato à “verdadeira cadeia nacional ilegal” do conglomerado, como afirmou, para precipitar o seu desmanche. Com isso, passou como um trator sobre o devido processo legal ainda em curso, apesar da decisão do Supremo. Mas é o que se pode esperar de Cristina, no seu obsessivo intento de fazer da Argentina uma “democradura”.