Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um repórter ameaçado de morte

Em 14 de julho, André Caramante, repórter da Folha de S.Paulo, assinou uma matéria com o seguinte título: “Ex-chefe da Rota vira político e prega a violência no Facebook”. No texto, de apenas quatro parágrafos, o jornalista denunciava que o coronel reformado da Polícia Militar Paulo Adriano Lopes Lucinda Telhada, candidato a vereador em São Paulo pelo PSDB nas eleições do último domingo, usava sua página no Facebook para “veicular relatos de supostos confrontos com civis”, sempre chamando-os de “vagabundos”. Em reação à matéria, Telhada conclamou seus seguidores no Facebook a enviar mensagens ao jornal contra o repórter, a quem se referia como “notório defensor de bandidos”. A partir daquele momento, redes sociais, blogs e o site da Folha foram infestados por comentários contra Caramante, desde chamá-lo de “péssimo repórter” até defender a sua execução, com frases como “bala nele”. Caramante seguiu trabalhando. No início de setembro, o tom subiu: as ameaças de morte ultrapassaram o território da internet e foram estendidas também à sua família.

O que aconteceu com o repórter e com o coronel é revelador – e nos obriga a refletir. Hoje, um dos mais respeitados jornalistas do país na área de segurança pública, funcionário de um dos maiores e mais influentes jornais do Brasil, no estado mais rico da nação, está escondido em outro país com sua família desde 12 de setembro para não morrer. Hoje, Coronel Telhada, que comandou a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) até novembro de 2011, comemora a sua vitória nas eleições, ao tornar-se o quinto vereador mais votado, com 89.053 votos e o slogan “Uma nova Rota na política de São Paulo”.

O que isso significa? 

Os 13 anos em que André Caramante cobre a área de segurança pública são marcados pela denúncia séria, resultado de apuração rigorosa, dos abusos cometidos por parte da polícia no estado de São Paulo. A relevância do seu trabalho foi reconhecida duas vezes pelo Prêmio Folha de Jornalismo. Caramante já denunciou sete grupos de extermínio formados por policiais militares e civis, assim como por ex-policiais. Mantém sua própria planilha na qual registra os mortos pela polícia. E faz a denúncia sistemática da figura amplamente difundida da “resistência à prisão” como justificativa para execução, em geral dos suspeitos mais pobres. Por sua competência, Caramante ganhou o respeito da sociedade interessada em uma polícia eficiente, com atuação pautada pelo cumprimento da lei – e o ódio de uma minoria truculenta, os maus policiais, tanto militares quanto civis, e daqueles cujos interesses e projeto de poder estão ligados a eles.

Antes de ser jornalista, Caramante quis ser jogador de futebol. Morador da periferia de São Paulo, comprou a primeira chuteira vendendo papelão. Era “um meia-direita dedicado”, na sua própria avaliação, e usou a chuteira com brio nas peladas de várzea e nas peneiras na Portuguesa, no Novorizontino e no Palmeiras, clubes nos quais chegou a treinar nas categorias de base. A necessidade de ajudar com as despesas da casa o despachou para a arquibancada. Em especial a da Vila Belmiro, por um amor incondicional pelo Santos herdado do pai. 

Aos 11 anos, Caramante começou a trabalhar como camelô, vendendo chocolates e sacolas no Brás, em São Paulo. Mais tarde, aos 17, o estudante de escola pública pagou a faculdade de jornalismo da Uniban com o salário de office-boy e com os vales-transporte que economizava fazendo o serviço a pé. “Não sabia se a faculdade era boa ou ruim, não entendia dessas coisas, apenas sabia o que queria fazer”, conta. “O livro Rota 66, de Caco Barcellos, tinha me mostrado o que era jornalismo.” 

Em seu livro Rota 66 – a história da polícia que mata (Record), Caco Barcellos, um dos grandes nomes do jornalismo brasileiro, hoje na TV Globo, investigou o trabalho da Rota entre as décadas de 1970 e 1990. E provou que ela atuava como um aparelho estatal de extermínio, responsável pela execução de milhares de pessoas. A reação às denúncias obrigou o repórter a passar um período fora do Brasil, devido a ameaças de morte. Duas décadas depois do lançamento do livro que o inspirou, Caramante vive uma situação semelhante.

A notícia de que ele estava vivendo escondido, com a família, vazou na semana passada, em matéria da Revista Imprensa. Até então, Caramante pretendia manter o fato em sigilo. A decisão de esconder-se com a família foi difícil para o repórter que nunca quis virar notícia – e que sempre evitou ser fotografado. Enquanto era alvo único das ameaças de morte, Caramante manteve uma rotina normal. O jornalista só aceitou se mudar para um destino secreto quando sua família passou a ser ameaçada. Mesmo assim, para ele é ponto de honra seguir com seu trabalho de reportagem. Pela internet, envia informações ao jornal com frequência. E segue assinando matérias na área da segurança pública.

Quando um repórter é obrigado a mudar de país e se esconder com a família por fazer bem o seu trabalho e prestar um serviço à população, ao fiscalizar os órgãos de segurança pública, este não é um problema só dele – mas da imprensa, que tem o dever de informar, e da sociedade, que tem o direito de ser informada. É disso que se trata. 

Na entrevista a seguir, feita por email entre sexta-feira (5/10) e domingo, André Caramante, 34 anos, fala sobre a situação de exceção que ele e sua família estão vivendo, mas principalmente sobre as complexas relaçõesentre violência e poder que a tornaram possível.

Em 14 de julho, você publicou na Folha de S.Paulouma matéria com o seguinte título: “Ex-chefe da Rota vira político e prega a violência no Facebook”. Você se referia ao coronel reformado Paulo Adriano Lopes Lucinda Telhada, que comandou a Rota, em São Paulo, até novembro de 2011, e, nestas eleições, disputou uma vaga para vereador pelo PSDB. O que aconteceu a partir desta matéria que o levou a, dois meses depois, ter de esconder-se com a família?

André Caramante –Cubro segurança pública há 13 anos, então, muito dessa situação não é exatamente novidade. Nestes 13 anos, sempre mantive minha lupa sobre os abusos cometidos por policiais, especialmente no que diz respeito à letalidade. Considero legítimo que a sociedade possa fiscalizar o Estado, especialmente seu braço armado. Não podemos considerar eficiente uma polícia que mata tanto quanto a do estado de São Paulo. Entre 2006 e 2010, a Polícia Militar de São Paulo matou nove vezes mais do que todas as polícias dos Estados Unidos juntas. A cultura da nossa polícia militarizada permite que se mate sem que se conheça sequer a identidade do “oponente”. É tão normal e aceitável quanto utilizar uma figura jurídica inexistente para preencher o boletim de ocorrência – a “resistência (à prisão) seguida de morte”. A morte do empresário Ricardo de Aquino por policiais militares no bairro Alto de Pinheiros (em São Paulo) colocou a questão na agenda da mídia e das autoridades alguns meses atrás. Como ele, vários outros foram vítimas dessa cultura e do mau treinamento. É óbvio que alguns policiais agem na ilegalidade e a maioria age dentro da lei. Também faço um trabalho consistente de denúncia de grupos de extermínio formados por policiais militares e civis e ex-policiais civis e militares, tendo revelado ao menos sete deles. São grupos que, ao exemplo das milícias do Rio, tentam controlar as atividades ilícitas na cidade – máquinas caça-níquel e tráfico de drogas, às vezes cruzando o caminho do PCC – e geram mortes. Há grupos bem estruturados e com braços de inteligência. Um deles, inclusive, planejou a morte de um integrante do alto escalão do governo paulista, sem que tenha conseguido levar a cabo a ação.Meu trabalho de denúncia também abrange a corrupção na Polícia Civil. Hoje, as coisas se dividem mais ou menos assim no Estado de São Paulo: alguns integrantes da PM cometem violência e alguns da Civil escorregam na corrupção. São questões totalmente relacionadas a poder e dinheiro. Em dezembro do ano passado, publicamos uma investigação da Polícia Federal que mostrava policiais civis cobrando grandes valores para liberar da prisão suspeitos de tráfico de drogas. Somadas, as propinas chegavam a R$ 3 milhões. É uma conduta isolada? Esquemas assim não surgem do nada. É da cultura da instituição, e são as pessoas que constroem a cultura organizacional. Mudar não é uma questão de ser fácil ou difícil, mas de não ser interessante para as pessoas que estão lá.

Você vem denunciando essa situação há bastante tempo, mas só agora teve de esconder-secom sua família por causa de ameaças de morte. O que aconteceu?

A.C. – O que houve foi não digo o surgimento, mas a publicidade e o crescimento exponencial de um clima favorável à intimidação, no qual pessoas sentiram-se à vontade, ou mesmo incitadas, a disseminar “avisos”. A partir da matéria sobre o que estava acontecendo no Facebook houve um acirramento dos ânimos de quem antes já me via como inimigo, além do crescimento quantitativo dos que mantêm os olhos em mim e no meu trabalho de uma forma negativa.Houve uma onda de comentários no Facebook, no Twitter, em blogs e no site da Folha que foram desde “péssimo repórter” até “bala nele”. Era só “ativismo de sofá”, de gente que só despeja frases no teclado do computador? Provavelmente. Depois, alertas de caráter dúbio – “Quando acontecer algo com alguém da sua família…”, “Quando você for sequestrado…” – surgiam nos espaços de comentários do site da Folha em qualquer reportagem que eu escrevesse e até naquelas em que não tive participação, mas que traziam denúncias contra membros das polícias. Também orquestraram o envio de diversas cartas contra mim, enquanto profissional, para a Folha.Após pouco mais de um mês de bombardeio digital, as ameaças tornaram-se mais concretas, com fatos atualmente sob investigação das autoridades competentes.

Que fatos são estes?

A.C. – Não falo de um fato, mas de uma série, que se iniciou dias após aquela onda nas redes sociais. Foram ligações, comprovações por fontes altamente confiáveis,de que estavam levantando informações de familiares, motos em trajetos curiosamente iguais aos meus. Não acho possível dimensionar a gravidade do risco, e também chegou-se a um ponto em que não valia mais a pena ficar avaliando. Decidi ouvir gente mais experiente do que eu e, em conjunto com o jornal, foi tomada uma decisão: trabalho à distância.

Não estou fisicamente na redação desde o início de setembro, sem que tenha saído da ativa. Esta é uma situação em que o risco físico toma a cena, mas certamente ele não é o único. Venham de onde vierem, a ameaça e a intimidação têm o objetivo de desestabilizar, tirar de cena. Jogam com o risco psicológico também, testam quão boa é a sua cabeça e quão forte é a sua corrente.

Qual é o papel do Coronel Telhada, ex-comandante da Rota, nesta série de ameaças?

A.C. – Em sua página, o coronel reformado começou a divulgar relatos de confrontos entre PMs da Rota e civis – estes sempre chamados de “vagabundos” –, além de divulgar fotos de pessoas que, segundo ele, eram suspeitos de crimes. Fiz um texto objetivo, relativamente curto, sobre isso. No dia da publicação no jornal, 14 de julho, ele postou no Facebook uma mensagem na qual me acusava de “defender abertamente o crime” e pedia uma mobilização contra mim. A conduta desse senhor deflagrou uma onda de tentativas de intimidação, de incitação à violência contra um jornalista – um profissional que apenas retratou o que o próprio coronel reformado registrou publicamente na rede social. Não estou dizendo que ele quis ou que ele não quis incitar atos violentos. Estou dizendo que acabou incitando.

Quem efetivamente está ameaçando você? E quais foram as ameaças?

A.C. – De onde vejo, apontar um ou outro possível autor pode dar grande margem a erro. Tenho minhas suspeitas, mas não cometeria o equívoco de acusar sem provas. Creio que haja dois tipos de ameaça. A primeira se aproxima do “ativismo de sofá”, de quem escreve no computador algo que jamais cumprirá. Os autores deste tipo de ameaça não são tão desconhecidos assim, e não é tão difícil encontrá-los nos canais digitais. A segunda, esta sim grave, é a ameaça de quem considera a possibilidade de agir. Aqui estão desde admiradores de policiais alvos de reportagens, pessoas que pouco têm a perder e vivem com parâmetros de raciocínio e moral diferentes dos nossos, até outros que há tempos me têm como um inimigo e podem aproveitar justamente esta visibilidade do caso do Facebook para tentar algo e “colocar na conta” de outro. O caso do Facebook, além de ser apenas uma parte da história, pode ser usado por outros para acobertar eventuais retaliações. Mas, veja, isto é o que eu deduzo com base na minha experiência, não há qualquer base de pesquisa ou de investigação científica.

O que você está dizendo é que pessoas que se ressentem há muito tempo com suas denúncias de abusos cometidos pela polícia estariam se aproveitando do caso do Facebook para se vingar e desviar a responsabilidade para o Coronel Telhada?

A.C. – Sim, é uma possibilidade.

Quando as primeiras ameaças se tornaram públicas, você disse que continuaria a fazer o seu trabalho. Imagino que deve ter sido difícil tomar a decisão de se afastar da redação. Como esta decisão foi tomada?

A.C. – É importante esclarecer que o termo “afastamento” não é apropriado para o meu caso. Continuo exercendo minhas atividades profissionais, onde quer que eu esteja. Não estar fisicamente na redação me causa impedimentos que são irrisórios frente à necessidade atual de garantia da integridade, minha e da minha família.

Quando você deixou de trabalhar na redação?

A.C. – Desde o início de setembro. Os advogados do jornal encaminharam às autoridades uma solicitação de investigação sobre as ameaças. Alterei completamente minha rotina e minha localização.

Foi difícil?

A.C. – Sou trabalhador desde os 11 anos e não tenho dúvidas quanto à profissão que escolhi. A decisão de estar fisicamente ausente da redação não foi nada fácil. Particularmente, via este passo como um sinal de recuo, um erro do ponto de vista do meu ideal e mesmo de estratégia em relação a quem tenta enfraquecer o trabalho da imprensa. O que fizemos, então, foi arquitetar uma ausência que fosse apenas física, com uma operação que permitisse que seguíssemos em frente. Existem inúmeras maneiras de fazer reportagem.

Qual foi a reação da sua família e como eles estão vivendo esse momento?

A.C. – Estão todos cientes e bastante atentos. Não é fácil estar ausente, mas não creio que seria muito melhor estar presente e vivendo com sombras. Meus filhos percebem a situação incomum que vivem atualmente, mas ignoram essa história toda. Felizmente, eles sentem-se seguros onde pai e mãe estão – não importa onde. Minha rede familiar está permeada pelo estresse, mas ela é muito forte. Sempre foi, desde muito antes de toda essa situação. Além disso, a corrente formada por colegas de profissão e entidades daqui e de fora também deixou claro que este não é um problema só meu. Entidades como Repórteres Sem Fronteiras, Knight Center of Journalism (vinculado à Universidade do Texas), Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, Instituto Sou da Paz, coletivo Sindicato É Pra Lutar e movimento independente Mães de Maio se manifestaram publicamente em apoio à minha atuação e ao direito de informar. 

É isso que está em jogo, o direito de informar?

A.C. – É uma questão ligada ao direito de informar e de ser informado, e meus companheiros de profissão sabem do que falo. Há, atualmente, no estado de São Paulo, uma grande preocupação por parte de autoridades da segurança pública de tentar evitar que muitos fatos sejam tornados públicos pela imprensa. Por conta disso, funcionários públicos que as autoridades acreditam manter contato com jornalistas passam a ser alvo de perseguição nas instituições às quais pertencem. Muitas vezes, essas perseguições são feitas com base apenas no “achismo”. 

Que fatos são estes, que as autoridades da segurança pública não querem que se tornem públicos?

A.C. – Qualquer dado que não conste do relatório oficial publicado mensalmente no site da secretaria. Não é exagero. Falo de qualquer dado mesmo. Basta perguntar a quem cobre a área. Não é de hoje. Sempre foi assim. No estado de São Paulo, jornalistas são impedidos de consultar boletins de ocorrência, um documento público. Tudo – absolutamente tudo – tem de passar pelas canetas das assessorias de imprensa da Secretaria e da Polícia Militar. É uma operação extremamente centralizada e que visa impedir o repórter de ir a uma delegacia e obter informações sobre uma ocorrência.

Por quê?

A.C. – Vejo como uma tentativa de construir uma realidade que não existe aqui, como se vivêssemos na Suécia. A proibição do acesso a boletins de ocorrência integra uma estratégia de forte controle de informações. “Só sai o que eu quero.” Não importa a relevância do dado, esta é a diretriz. Delegados só dão entrevistas mediante autorização de assessores de imprensa. É meio estranho que uma autoridade seja submetida a esse tipo de imposição para tentar controlar a informação. 

Esta foi a primeira vez que você foi ameaçado de morte?

A.C. – Não. Como vários outros colegas, já passei por situações semelhantes. Ouvi pelo telefone frases como “Cuidado, muita gente morre em assalto por aí”, seguida por meu endereço completo. Tempos atrás, policiais à paisana fotografaram minha família durante um passeio.

Você costuma denunciar os abusos cometidos pela polícia, especialmente contra os moradores das periferias de São Paulo e da Grande São Paulo. Você se considera, hoje, nesta situação, uma vítima da polícia?

A.C. – Não me considero vítima de nada. Tenho plena consciência de que não posso e não quero ser notícia. Sou contratado por um jornal para contar as histórias das outras pessoas, para fiscalizar um determinado segmento do poder público. E a minha preocupação é sempre esta: contar a história do próximo, registrar os fatos, levar a notícia para quem lê a Folha de S.Paulo. As páginas de um jornal marcam a história de um país. Eu sou uma peça dessa engrenagem que imprime a história no papel do jornal. A exposição desses últimos fatos me trouxe tristeza porque não é o que busco como repórter. Aí vão perguntar: “E por que você está dando entrevista?”. Estou dando entrevista porque, do muito que foi dito sobre a minha pessoa, pouco foi dito por mim. Porque quero esclarecer que não estou “afastado”. Afastamento dá a ideia de punição, de suspensão, e nunca houve nada nesse sentido da parte do jornal. Pelo contrário: sanamos a demanda urgente relativa à garantia da integridade e ao mesmo tempo planejamos a continuidade do trabalho. E mais: não existe isso de perseguir a Polícia Militar ou a Polícia Civil com meu trabalho. O que penso é que ninguém quer ter nessas instituições pessoas que não façam jus à condição de representantes do Estado.

Já entrevistei muitas pessoas ameaçadas de morte, algumas delas ameaçadas de morte por policiais, de diferentes estados. Minha percepção é de que estas últimas sentem um nível de desamparo maior, na medida em que, se aqueles que deveriam protegê-las, em vez disso ameaçam a sua vida, para quem então pedem ajuda? Sem contar que membros da polícia, por disporem do aparato do Estado, têm meios para comprometer a credibilidade da vítima, “plantando” falsas provas. Como você percebe isso?

A.C. – Quando você tem indicativos de que alguns dos representantes armados do Estado querem te desestabilizar, com certeza, a reflexão é sempre essa: para quem recorrer, como agir? Muitas vezes, essas mesmas pessoas tentam desmoralizar seu trabalho e sua conduta fora do campo profissional, mas tenho tentado me manter centrado. Converso com repórteres amigos para dividir alguns pensamentos e pensar em maneiras de me manter firme na caminhada.

Por que o estão ameaçando? Que “ameaça” você representa para que ameacem a sua vida? E por que agora, neste momento?

A.C. – Como te falei, não é de agora. É uma coisa que ficou mais acentuada. Pode ser que tenha alguma relação com o período eleitoral ou com outros interesses que ainda não consigo afirmar quais são. Um deles, por exemplo, pode ser a necessidade que muitos têm de manter o poder ou de chegar até o poder. 

Quem? Pode explicar melhor?

A.C. – Não posso nomeá-los, pois aí já entraremos em informações referentes aos bastidores das polícias, e esses meandros estão muito ligados às minhas fontes e às minhas apurações. Hoje, em São Paulo, a questão da polícia vai além dos muros dessas instituições. A cidade nunca esteve, em período democrático, tão militarizada. Trinta das 31 subprefeituras ganharam comando de PMs da reserva na gestão Kassab. Com a criação da operação delegada, os policiais militares hoje atuam oficialmente não apenas para a corporação, mas também para a prefeitura – é o bico legalizado. Vemos então que as frentes de poder estão crescendo, e há muita gente na disputa. Sem contar os cargos na Câmara Municipal.

Por que isso está acontecendo? Por que, por exemplo, 30 das 31 subprefeituras de São Paulo ganharam comando de PMs da reserva nesta gestão? Como você caracterizaria esse projeto de poder?

A.C. – Esse processo ganhou corpo quando o coronel (agora reformado) da PM Álvaro Batista Camilo, também candidato a vereador, pelo PSD, se aproximou do prefeito Kassab, na época em que era comandante-geral da PM. Como é sabido, Kassab vem marcando sua gestão com uma postura de cerceamento. Já são notórias as tentativas de proibição de sopões a moradores de rua, de saraus na periferia, da feira da praça Roosevelt, no centro de São Paulo, e outras mais.

O que o fato de um repórter de um dos maiores jornais do país ser ameaçado de morte revela sobre a violência no estado de São Paulo?

A.C. – É uma questão que não diz respeito somente à violência. Esta é a parte tangível de todo o contexto que citei anteriormente. A relação polícia X poder é atualmente um ponto muito importante. Desde a abertura política, talvez seja este o momento em que São Paulo mais tenha a influência de policiais militares. Com poder em jogo, os ânimos se acirram, em qualquer área.

Por que agora? E o que está em jogo?
Caramante – Estamos em um momento propício por conta da já citada aproximação sem precedentes (da polícia) com outras esferas do poder público. Muitos oficiais da PM notaram, e agora tentam dar vazão a isso, que há outras e importantes áreas para onde estender seu campo de atuação – e de poder.

Você cobre a área policial há 13 anos. Documentou, como repórter, a ascensão do PCC. Você costuma dizer que vivemos numa guerra. Por quê? Como é essa guerra e em que momento dessa guerra estamos hoje?

A.C. – É uma guerra entre o grupo criminoso PCC e as forças de segurança do Estado. O PCC é forte porque controla o tráfico de drogas no estado de São Paulo. É inegável o fato de o estado de São Paulo, desde 1999, ter conseguido baixar suas taxas de homicídios dolosos (intencionais). Essa queda, porém, é fruto de controle duplo: se deve tanto a progressos na Segurança Pública quanto ao comando do PCC. Em muitas situações, é o PCC quem decide quem morre em São Paulo, nos chamados tribunais do crime. Hoje, outubro de 2012, a guerra está mais acirrada entre o PCC e os policiais militares da Rota, considerada uma tropa de elite da PM paulista e que conta com 820 integrantes. Investigações contra o PCC antes feitas pela Polícia Civil, que tem essa atribuição pela lei, foram remetidas à Rota, que tem função de policiamento preventivo, ou seja, trabalhar para evitar que o crime ocorra.Estou dizendo isso porque defendo criminosos e quero dar uma chance a eles? Não. Falo porque é ilegal. Quem investiga é a Polícia Civil. Há aí uma nítida tentativa de empoderar ainda mais os integrantes da Rota. É o Estado agindo ilegalmente.

Por quê?

A.C. – Isso é um reflexo da atual cúpula da Secretaria da Segurança Pública, que tem um histórico de relacionamento intrínseco com a Rota. Nos primeiros escalões da segurança pública paulista, também, impera uma certa desconfiança quanto à atuação de parte da Polícia Civil nas investigações sobre o PCC. Fala-se em corrupção.

Na semana passada, a Folhapublicou que arquivos da facção PCC revelam atuação em 123 cidades de São Paulo, com 1.343 homens em todas as regiões do estado. O governo de São Paulo tentou minimizaro impacto das informações e o poder do PCC. O governador, Geraldo Alckmin, afirmou que “há muita lenda” sobre facções criminosas no estado de São Paulo. O secretário da Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto, declarou: “A facção é bem menor do que dizem. Não chega a 30 ou 40 indivíduos que estão presos há muito tempo e se dedicam ao tráfico. Nós temos asfixiado esse tráfico com grandes prisões”. O coronel da Polícia Militar Marcos Roberto Chaves da Silva, comandante do policiamento da capital, disse que existe “folclore” nas informações sobre o PCC. Qual é a verdade?

A.C. – Curioso como esse folclore é alinhado à realidade. No mês passado, por exemplo, a Rota matou nove pessoas envolvidas em um “tribunal do crime”, um julgamento no qual um homem suspeito de estuprar uma menina teria sua vida decidida pelos criminosos do PCC. Um dos nove mortos pela Rota era o “réu” do partido do crime, como os policiais chamam o PCC. Para justificar a ação, o governo disse que todos eram muito perigosos, que integravam o PCC. Passado o calor do acontecimento, o governo voltou à postura habitual de minimizar a importância, o tamanho e o poder do grupo. Se são apenas 30 ou 40 indivíduos, as oito mortes no mês passado reduziram significativamente o PCC. É isso o que vemos quando policiais militares são mortos quando estão de folga, como tem ocorrido constantemente em São Paulo? Será que o PCC deixou de decidir quem vive ou quem morre durante um “tribunal do crime”, quase sempre via telefones celulares usados por criminosos que estão presos e, na teoria, deveriam estar sem comunicação com as ruas? Quem vive na periferia de São Paulo sabe bem como as coisas são.

E como as coisas são? Como é o cotidiano de quem vive na periferia com relação ao PCC e à Rota?

A.C. – O PCC domina os pontos de tráfico de drogas em São Paulo. Para evitar a presença das polícias, tenta corromper alguns de seus integrantes e também busca evitar crimes nas redondezas dos pontos de tráfico, principalmente homicídios. No meio disso, quem não é nem do PCC, nem da polícia, assiste a tudo em silêncio, esperando que não “sobre” para si.

O governador Geraldo Alckmin trocou o comando da Rota, no final de setembro. Entre as razões, estaria a divulgação de que o número de pessoas assassinadas pela tropa aumentou 45% nos primeiros cinco meses deste ano, comparado ao mesmo período do ano passado. Qual é a sua opinião sobre a Rota? Ela deveria acabar?

A.C. – Não só a Rota, mas toda a Polícia Militar. A PM tem uma estrutura que desconhece meritocracia e privilegia uma variação do nepotismo. Policiais dos escalões mais baixos são usados como degrau para filhos de oficiais que estão no topo da pirâmide. É como se o filho do coronel fosse, desde sempre, o coronel de amanhã, e o filho do praça já nascesse sabendo que jamais será oficial. Há exceções que o governo pode vir a bradar, claro, mas a regra é mais ou menos essa. Quantos oficiais foram mortos pelo PCC? Nenhum. É óbvio que não tem de morrer nem o oficial, nem o praça. Mas, hoje, só morre aquele trabalhador que está na linha de frente e também vive na periferia de São Paulo. Quem cobre segurança pública em São Paulo também sabe que os policiais da Rota saem às ruas com um ímpeto diferenciado e, às vezes, alguns deles cometem excessos. É o caso da morte do representante comercial Paulo Alberto Santana Oliveira de Jesus em Osasco, na Grande São Paulo, em setembro de 2011. Ele foi morto em casa, desarmado e com as mãos para trás. Em maio deste ano, das mortes de seis suspeitos de integrar o PCC na zona leste de São Paulo, um deles foi levado a uma rodovia e executado. Em ambas as situações, foi forjado um confronto armado, segundo dados apresentados por promotores. As seis mortes na zona leste são tidas como estopim para o atual acirramento da violência entre PCC e Rota.

Me parece curioso, para dizer o mínimo, que um repórter tenha de se esconder para proteger sua vida após ter denunciado que um candidato a vereador pelo PSDB e ex-comandante da Rota disseminava a violência no Facebook e ninguém, de nenhum partido, tenha falado disso durante a campanha. Você tem alguma hipótese para esse silêncio?

A.C. – No fim de setembro, um candidato a vereador em São Paulo, assim como esse ex-chefe da Rota, pediu a impugnação da candidatura dele e alegou que esse senhor aparecia em sua propaganda política fardado, o que não é permitido pela lei eleitoral. Esse mesmo candidato também foi alvo da ira dos simpatizantes do ex-chefe da Rota e recebeu ameaças. A promotoria eleitoral também pediu, na semana passada, a impugnação da candidatura desse PM reformado e alegou que ele utilizou sua página no Facebook para incitar a violência.

Por que você se tornou repórter de polícia?

A.C. – Porque quem tem a obrigação de nos defender não pode, sob hipótese alguma, atentar contra nós. Também queria que meu pai tivesse o orgulho de ver seu sobrenome no jornal por uma causa justa. Sempre admirei o trabalho de repórteres como (Caco) Barcellos. Há histórias e situações que precisam ser contadas. Admiro muito, também, José Hamilton Ribeiro, mestre na arte de contar histórias. Ouvi palavras de apoio dos dois recentemente. As de Barcellos recebi com reverência. O tenho como meu maior exemplo. As de seu Zé Hamilton, com emoção. Me pegou desprevenido. Me marcou. Quero agradecer cada mão estendida e cada palavra de apoio que foi dita em nome da garantia do direito de informar e ser informado.

“Repórter de polícia” ainda é uma boa definição para jornalistas como você?

A.C. – Acredito que o termo “repórter de polícia” deixou de existir. Hoje, cobrimos segurança pública e, por conta de uma evolução da cobertura nessa área, que deixou de ser tão vinculada às autoridades, como era no passado, somos repórteres de segurança pública.

E qual é a importância de se cobrir a área de segurança pública num país como o Brasil?

A.C. – É um tema intimamente ligado ao cotidiano das pessoas, e ainda temos muito a evoluir tanto no combate à criminalidade comum quanto à de parte das forças de segurança.

Você monitora o número de pessoas mortas pela polícia. Quantos foram mortos até hoje no estado de São Paulo?

A.C. – Sim, monitoro porque o jornal para o qual trabalho dá atenção especial para a questão da letalidade policial. Tenho meu próprio sistema de dados, no qual registro todas as mortes cometidas por policiais militares. Estes números não batem com os oficiais. A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo divulga em sua página na internet apenas as chamadas “resistências seguidas de morte”, mas há outros casos que entram na vala comum dos homicídios dolosos cometidos por qualquer cidadão. Minha contabilidade mostra que, entre 2005 e agosto deste ano, policiais militares mataram 4.358 pessoas no estado. Destas, 3.401 foram em “resistência (à prisão) seguida de morte” – figura jurídica inexistente, repito – e 957 em homicídios dolosos, que vão desde brigas em bar, no trânsito, casos conjugais, até mortes como a do empresário Ricardo de Aquino. São 47,3 mortos por PMs a cada mês. Ou seja: 1,5 a cada dia. Este é o retrato de uma Polícia Militar extremamente letal e que precisa passar por reformas o quanto antes. 

Em que medida as relações entre o aparato de repressão do Estado e a população explicitam a desigualdade e as fissuras da sociedade brasileira num estado como São Paulo?

A.C. – A Polícia Militar que atua dentro do perímetro do rodízio de veículos (de São Paulo), o chamado centro expandido, não é a mesma que atua na periferia. Temos duas polícias militares para cuidar da mesma cidade, e cada uma delas trata os cidadãos de maneira diferenciada, isso de acordo com o CEP da pessoa. Muitas vezes, policiais são mandados à periferia como forma de punição dentro do jogo de poder que não está nos manuais da corporação. Então, já vai para lá com um sentimento diferenciado. Recentemente, pesquisadores mostraram, com base em dados da Secretaria Municipal da Saúde, que 93% dos mortos pela Polícia Militar moravam na periferia de São Paulo. O estudo teve como base os anos entre 2001 e 2010. No período, dos mortos por PMs, 54% eram pardos ou negros.

Hoje há programas de TV que cobrem a área policial, nos quais suspeitos são tratados por jornalistas como condenados – e condenados sem direito algum –, marcas de tortura em detidos e presos são ignoradas e apresentadores incitam a violência da sociedade contra “vagabundos”. Você acha que esse tipo de imprensa colabora para que jornalistas como você, que trabalham com seriedade e denunciam também os abusos cometidos pela polícia, sofram ameaças?

A.C. – São profissionais da imprensa que recebem altos salários para fazer o que fazem. Eles são experientes e, creio, no fundo sabem que somente a Justiça pode condenar ou inocentar algum suspeito de determinado crime. Estão ali por cifras altas. É a mesma situação de um profissional de jornalismo que abandona a carreira numa redação para ser assessor e ganhar R$ 1 milhão por seis meses de trabalho numa campanha política. São opções e temos de respeitar quem as toma. Mas essas pessoas também têm de respeitar quem não pensa como elas.

Como é estar no lugar de vítima para você, que tanto denunciou a violação de direitos humanos dos mais pobres e indefesos?

A.C. – Vítima é a dona Maria da Conceição, mãe do Antonio Carlos da Silva, o Carlinhos, portador de deficiência mental que foi morto por policiais militares que integram o grupo de extermínio “Highlanders”, segundo a Polícia Civil e a Promotoria. Ele teve a cabeça e as mãos arrancadas após ter sido morto porque andava na rua e tinha dificuldades de comunicação.

Você pode contar melhor esta história?

A.C. – Carlinhos foi morto em outubro de 2008, na periferia da zona sul de São Paulo. Estava perto de casa quando foi obrigado a entrar em uma viatura da Polícia Militar que fazia ronda no local. Vizinhos assistiram à cena e relataram à família. Imediatamente, a mãe, dona Maria da Conceição dos Santos, a irmã, Vânia Lúcia, e o pai começaram a procurá-lo. Poucas horas depois foram até o 37º Batalhão, onde ouviram da boca dos PMs – que, segundo a Polícia Civil e a Promotoria, mataram seu filho – que não o tinham visto. Encontraram o corpo de Carlinhos, decapitado e com as mãos arrancadas, em uma cidade vizinha. Ele, que era portador de necessidades especiais, tinha dificuldades para se comunicar. 

Uma das maiores dificuldades da situação que você está vivendo parece ser o fato de ter virado notícia. Por quê?

A.C. – Para começar, nunca me vi numa situação assim. Não é para isso que decidi ser repórter. A questão da exposição parece parte de uma realidade paralela, não se encaixa na minha trajetória. Optei por sempre passar despercebido.Quero poder continuar sentando numa delegacia sem que ninguém saiba quem eu sou.

Imagino que você tenha medo em alguns momentos ou o tempo todo. Como lida com isso?

A.C. – O medo pode ser uma ótima ferramenta para aguçar os instintos. Sim, pode ser devastador também. Tento utilizá-lo como um agente minimizador de riscos. Nos momentos mais difíceis de administrá-lo, busco lembrar por que estou nesta caminhada. Me vêm à mente pessoas das quais contei histórias. O foco são elas, não eu.

Há perspectiva de sair dessa situação em breve?

A.C. – Minha situação atual passa por constante avaliação da direção do jornal. Por enquanto, manteremos como está.

Como essa experiência está transformando você? Já é possível perceber alguns impactos e mudanças?

A.C. – Situações dessa intensidade são oportunidades para reafirmar algumas ideias e descartar outras. Houve impacto, e mudanças certamente virão. Mas estão em curso, e por isso prefiro guardá-las aqui comigo.

Que ideias você reafirmou e quais descartou?

A.C. – Reafirmei, por exemplo, a ideia de que tenho de permanecer alguém que conta as histórias dos outros, e também meu intuito de contribuir, minimamente que seja, para a melhoria dos setores que cubro. Deixei de lado a ideia de que riscos podem ser mensurados com algum grau de exatidão. Ninguém faz nada, até que alguém faça.

Como tem sido seu cotidiano nessa situação de ameaçado de morte?

A.C. – Realmente acho difícil falar sobre isso. Há preocupação referente não apenas à situação atual, mas a como será no futuro. Esta não é uma situação que tenha prazo de validade. Agora à noite, um dos meus filhos disse que preferia estar na nossa casa de verdade. Perguntei o motivo. “Lá é mais colorido.” 

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[Eliane Brum é repórter da Época]