Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Incipiência analítica ou comprometimento?

A avaliação de questões referentes às maneiras como cidadãos e cidadãs emitem suas opiniões políticas, mais especificamente acerca da expressão pelo voto em branco ou pela nulidade do voto, requer, principalmente, uma análise das instituições eleitorais e dos atores políticos – neste contexto, os partidos, o(a)s candidatos e a própria cidadania. Não é, a priori, um exercício fácil. Neste sentido quero me referir ao editorial do jornal A Tarde, o maior diário do estado da Bahia, publicado no domingo, 7 de outubro, intitulado “Cidadania Responsável”. Entre as muitas afirmações, está a seguinte: […] “Na prática, embora seja direito do eleitor, invalidar o voto negligencia (grifo nosso) as conquistas históricas que o regime democrático tem proporcionado”. Não será uma negligência do periódico (editor) essa afirmação tão categórica?

Primeiro, gostaria de sugerir uma pequena reflexão acerca do significado de “regime democrático”. Para muito(a)s, este se resumiria, principalmente, à realização periódica de eleições diretas, através do sufrágio universal. Sem nenhuma sombra de dúvidas estas duas garantias tendem a caracterizar o chamado sistema democrático. Mas é preciso atentar para o fato de que estas, por si só, não asseguram a efetivação da democracia.

Modelos de Estado e de governo

A existência de democracia pressupõe a existência de liberdade. Neste sentido, pode-se perguntar, por exemplo, como é possível falar em democracia, de fato, no Brasil, se existe a obrigatoriedade do voto? Eis uma primeira questão que põe em xeque essa tão clamada democracia brasileira, que o editor de A Tarde tanto quer defender através da condenação daquele(a)s que optam pelo voto nulo ou branco. A partir desta perspectiva é possível levantar duas questões: 1ª) Se as pessoas não são livres para escolher se vão ou não votar, não têm elas o direito de expressar a sua indignação através da não escolha por qualquer opção de candidatura, como forma de protesto por este não direito?; 2ª) Ainda que o voto fosse facultativo, que a cidadania pudesse escolher ir ou não votar, sem que lhe recaísse nenhuma penalidade, não teria o direito de optar pela nulidade do voto ou mesmo pelo voto em branco caso não encontrasse nas candidaturas apresentadas alguma que a contemplasse, posto que neste mesmo sistema democrático defendido pelo jornal A Tarde, além das opções por candidaturas, o eleitorado tem duas mais: o voto nulo e o voto em branco?

Ao menos uma reflexão acerca dessas duas questões esperaria encontrar no editorial de A Tarde porque da maneira como a editoria coloca a opinião desta empresa jornalística a respeito dos votos nulo e branco deixa muito a desejar e, mais do que isso, nos remete a uma crítica contundente acerca da incapacidade analítica de quem escreveu a nota, ou nos leva a pensar em uma intencionalidade perversa no sentido de defender alguns interesses não explicitados no texto, mas que podem haver motivado a construção do editorial.

O voto nulo ou o voto branco não podem ser taxados como atitudes inconsequentes ou mesmo como uma prática aleatória, ainda que seja provável que algumas dessas manifestações possam sê-lo. O fato é que esta generalização feita por A Tarde priva a cidadania de uma reflexão acerca do cenário político brasileiro, qual seja a falta de projetos administrativos, de posições ideologicamente embasadas que levem a cidadania a refletir sobre os modelos de Estado e de governos que desejam para o Brasil.

Opinião sem reflexão

Discutir sobre o papel dos partidos políticos e o próprio envolvimento da sociedade nas questões que dizem respeito ao processo de instauração e consolidação da democracia no país deve estar em pauta, sobretudo nos meios de comunicação. E o jornal A Tarde perdeu uma grande oportunidade para entrar nesta discussão. Em vez disso preferiu estereotipar cidadãos e cidadãs que, por se recusarem a participar deste cenário caótico escolhendo “o menos pior”, devido à falta de opções, resolveram anular o seu voto ou votar em branco. Muitas destas atitudes quiseram manifestar, na verdade, sua discordância com as coligações partidárias realizadas sem o menor pudor; com a falta de coerência ideológica e programática; com o afã pelo fisiologismo demonstrando através destas atitudes, a exemplo da aproximação do PT com Paulo Maluf, para tratarmos de um exemplo emblemático.

Quando o jornal A Tarde, em seu editorial, afirma que 15% do eleitorado baiano declarou, em pesquisa, que optaria pelos votos nulo e em branco seria interessante que o periódico tentasse mostrar, em números reais, quanto isso significa da população de eleitores – 1 milhão e 500 mil pessoas – e, posteriormente, avaliasse o peso dessas escolhas (grifo meu) e, mais do que isso, os porquês, refletir sobre os diversos porquês dessas atitudes.

O jornal em questão poderia, também, tecer uma crítica diferente às pessoas que optam pelos votos nulo e branco, se questionasse, por exemplo, a falta de um movimento organizado com a finalidade de debater socialmente essas manifestações. Mas afirmar ser “negligência” ou que “são frágeis, um desperdício, portanto, as justificativas para o voto em branco o argumento da suposta ‘falta de alternativa’”, ou mesmo afirmar que “as cidades baianas têm muito a perder com o vazio dos votos nulos e brancos”, é deveras incipiente.

Parece-me vazio um editorial que emite opinião sem embasamento, sem uma reflexão profunda. Nós, baianas e baianos, temos, sim, muito a perder, com esse tipo de jornalismo.

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[Verbena Córdula Almeida é professora adjunta do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, BA. Ministra as disciplinas Comunicação e Realidade Brasileira e Comunicação e Realidade Regional]