Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Os diferentes “tempos” de um acontecimento jornalístico

Soube apenas no dia 23 de outubro da suposta ameaça de suicídio coletivo de 170 índios da tribo Guarani-Kaiowá que ocupam uma terra em Iguatemi, MS. No dia seguinte, alguns amigos e amigas do Facebook começaram a colocar “Guarani-Kaiowá” como sobrenome, algo que foi repetido por algumas pessoas também no Twitter. Isso me chamou a atenção.

Devido à necessidade de acompanhar um “acontecimento jornalístico” que tivesse reflexos nas mídias sociais, venho seguindo como se dão os reflexos deste caso neste espaço da internet, com maior atenção para a página do evento no Rio Grande do Sul para um dos atos em prol dos índios guarani-kaiowá, que ocorrerá no dia 9 de novembro, além de ficar atento ao que é difundido por outras pessoas e perfis no Facebook e às discussões relativas ao assunto em grupos mais restritos nesta rede.

Após esta questão dos sobrenomes, algo que não lembro ter visto antes, outra coisa que me chamou e continuou a me chamar a atenção é como se deu a difusão da “Carta da comunidade Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbakay-Iguatemi-MS para o governo e Justiça do Brasil”. A carta foi divulgada no dia 10 de outubro em poucos sites na internet como resposta a uma decisão da Justiça Federal de Naviraí, MS do dia 29 de setembro.

Dados e documentos

No dia 22 de outubro este fato transformou-se em acontecimento jornalístico ao ser comentado em duas diferentes mídias. Ainda pela manhã, a jornalista Eliane Brum escreveu em sua coluna semanal no site da revista Época (Organizações Globo) sobre o assunto, com o título “Decretem nossa extinção e nos enterrem aqui”. No texto, Eliane resgata como os povos originários foram tratados no país e, neste caso em específico, como eles não foram considerados numa história recente como indivíduos portadores de direitos.

No mesmo dia, mas à noite, o jornalista Bob Fernandes dedicou o seu comentário no Jornal da Gazeta (TV Gazeta/São Paulo) ao assunto, sob o título “863 índios se suicidam… e quase ninguém viu”. Bob Fernandes, que também escreve para o portal Terra, destaca o silêncio da grande mídia sobre o assunto, com exceção de Eliane Brum, repassando o dado que desde 1999 – quando visitou a comunidade – outros 555 jovens desta tribo teriam cometido suicídio no Mato Grosso do Sul. Foi através deste vídeo que eu e muitas outras pessoas tiveram acesso à carta da tribo – para se ter uma ideia da repercussão, até o dia 2 de novembro foram mais de 450 mil exibições do vídeo no YouTube.

O assunto voltou a ser tema de seu comentário no Jornal da Gazeta no dia 24 de outubro, porém, sem a repercussão do anterior, tendo até o dia 2 de novembro menos de 2000 exibições e sem qualquer difusão pelas redes sociais. Bob Fernandes mostra dados oficiais, com documentos, sobre suicídios de índios no país.

Documentos de apoio

Voltando depois à coluna de Eliane Brum, percebi dois links de matérias feitas anteriormente sobre esta tribo e me assustei ao perceber que Ricardo Mendonça e Mariana Sanchez publicaram uma reportagem na mesma revista Época há onze meses (02/12/2011) sobre o assunto, com o título “Uma tragédia indígena”. Neste, eles destacam as precárias condições de vida do maior grupo indígena do país, com média de vida equivalente a 45 anos, valor “só comparável ao Afeganistão”.

Nem eu, nem provavelmente a maioria de nós que acompanhamos o caso, apoiamos a luta destes índios para voltar à sua terra original, nem soubemos desta reportagem anterior. Foi necessária, para além de uma carta cujo conteúdo foi inicialmente interpretado como ameaça de suicídio coletivo, a difusão pelas mídias sociais sobre o assunto para que este acontecimento surgisse e fosse difundido.

Ainda assim, difundido de forma “tímida” nos meios de comunicação de maior recepção. Pelo que acompanhei – ao menos até o dia 01/11, que conforma uma semana de seguimento diário –, os sites sãos os que mais noticiaram este acontecimento e seus desdobramentos, principalmente através de manifestações realizadas em alguns locais do Brasil, casos de Vitória-ES e Recife-PE. No caso de jornalões como O Estado de S.Paulo e O Globo, também houve a publicação de documentos de apoio escritos por personalidades importantes, como a ex-ministra do Meio Ambiente e candidata à presidência, em 2010, Marina Silva.

Redes sociais como fonte de notícias

No Rio Grande do Sul, os sites do Sul21 e do jornal Zero Hora vêm acompanhando o caso com frequência, atualizando as notícias. Dentre elas, chamou-me a atenção uma pequena discussão na página do ato em Porto Alegre sobre a matéria “Carta na rede social com suposta ameaça de suicídio coletivo alerta para conflito de terra esquecido”, do jornalista Carlos Wagner, publicada no jornal no dia 26 de outubro.

Dois participantes do ato questionam que, já no título aparecem palavras como “suposto” e “esquecido”, gerando um debate sobre a possível confusão engendrada sobre o assunto – apesar de o conteúdo da matéria explicar tratar, inclusive, da origem do conflito, que tem ligação com o Rio Grande do Sul, já que milhares de famílias gaúchas foram levadas ao Centro-Oeste para povoar a região, em lugar dos povos originários que ali viviam. O problema teria sido que ao destacar o erro de interpretação sobre a carta – que na verdade não seria uma ameaça de suicídio, mas um recado de que os índios não sairiam daquelas terras – poderia estar reduzindo a importância daquele acontecimento.

No dia 30 de outubro, surgiu a notícia da suspensão da liminar que determinava a reintegração da posse da terra no interior do Mato Grosso do Sul – apesar de algumas notícias creditarem a um problema de interpretação da decisão inicial, que teria apenas confirmado a posse da terra para os fazendeiros, mas ainda não a retirada da população indígena. A curiosidade desta vez ficou pela maneira que o assunto foi difundido inicialmente. Isso se deu através de postagens no Twitter da secretária nacional de Direitos Humanos, Maria do Rosário, cuja página foi difundida para milhares de pessoas no Facebook. Mesmo o site da Empresa Brasil de Comunicação informou sobre o assunto tendo como fonte o perfil da secretária nesta mídia social. Procedimento repetido por outros sites, reproduzindo uma tendência atual de utilizar as postagens em redes sociais como fonte para notícias.

Nova decisão pode acirrar os ânimos

Para finalizar essa análise parcial deste acontecimento – até mesmo porque há uma série de atos em vários Estados programados para o dia 09 de novembro –, reafirma-se o silenciamento da chamada grande mídia sobre o assunto, especialmente nos telejornais. Apenas no dia 1 de novembro, a Globo News, canal de TV fechada das Organizações Globo, realizou um debate sobre o assunto. O programa Entre Aspas, apresentado por Mônica Waldvogel, teve como descrição no site sobre esta edição “Convidados analisam a situação desesperadora dos índios guarani-kaiowá”. Já na chamada, há a narração da jornalista destacando que este acontecimento criou uma mobilização nas redes sociais, chegando ao ponto de citar no debate que este seria um assunto que “mobilizou o país”, gerando várias manifestações em prol da causa dos guarani-kaiowás.

Apesar dessa situação, os telejornais em TV aberta não tocaram no assunto. De um lado, talvez por conta do tema “suicídio”, que não costuma ser tratado nas redações jornalísticas no Brasil – por uma aversão a estimular essa prática. Por outro, provavelmente por conta dos critérios de noticiabilidade definidos nas redações de telejornais – por mais que assuntos bem mais banais e com repercussão parecida nas mídias sociais, caso de “menos Luiza, que está no Canadá”, tenham sido trazidos a estes programas televisivos.

Observando o movimento que o assunto tomou é interessante perceber que ele segue caminho contrário da maioria dos que “pertencem” às redes sociais, saindo de meios de comunicação mais “tradicionais” (ainda que o site da Época e, principalmente, o Jornal da Gazeta não tenham tanta audiência) para ampliar as redes de alcance e difusão desse acontecimento nas mídias sociais, sendo agregados novos fatos ao assunto – caso de uma índia da tribo que teria sido violentada por oito pistoleiros no dia 24. Este é um acontecimento, portanto, cuja maior fonte de informações vem da internet, através das mais variadas páginas de eventos, perfis em redes sociais, canais no YouTube e sites em solidariedade à causa. Isto deve prosseguir mesmo com a difusão pela internet de um abaixo-assinado “pedindo a cobertura da mídia sobre o caso e ação urgente do governo Dilma e do governador André Puccinelli, para que impeçam tais matanças”, que possui quase 300 mil assinaturas.

O diferencial que talvez faça com que o assunto chegue aos telejornais podem ser os atos programados para ocorrer no dia 9 de novembro em várias partes do Brasil e em alguns outros países, como Portugal, que estão sendo mobilizados por grupos e páginas de evento no Facebook. Além disso, alguma nova decisão judicial também pode acirrar os ânimos entre os personagens envolvidos neste acontecimento.

***

[Anderson David Gomes dos Santos é jornalista e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos]