Ayres Britto completa 70 anos no próximo domingo (18), quando será obrigado por lei a se aposentar. Sergipano de Propriá, chegou ao STF em 2003, na primeira leva de indicações promovida pelo então presidente Lula. Na quarta (14), presidiu pela última vez uma sessão do tribunal, fez discurso de despedidae foi homenageado.
Na entrevista, o ministro conta momentos difíceis durante o julgamento do mensalão (ação penal 470), diz que “essas decisões do Supremo na ação penal 470 sinalizam uma virada de página na direção de um Brasil com melhor qualidade na vida política”, reflete sobre o papel do juiz, os casos que relatou e o legado de transformações de uma presidência de sete meses, uma das mais breves da história do Supremo.
Sobre seu maior legado, o ministro destaca a derrubada da Lei de Imprensa, que havia sido editada 1967, durante o regime militar. Ayres Britto foi o relator do processo no STF que, em 2009, considerou a lei inconstitucional e a revogou. A derrubada da lei da imprensa, segundo o ministro, derrubou toda possibilidade de censura, garantindo que todos possam dizer o que quiserem, sem, no entanto, impedir depois que respondam pelos excessos que cometerem.
A entrevista:
A dosimetria (definição das penas) saiu mais complicada que a encomenda?
Carlos Ayres Britto – Saiu. Brincando, eu digo que dosimetria é dose. Por que é dose? É algo difícil? Porque é o momento culminante de um julgador apenar, castigar o réu, o ser humano. Aí ele percebe que aquele réu é um ser humano e que faz jus a direitos que são fundamentais, como, por exemplo, o maior de todos, o direito a individualização da pena. A pena tem que ser aplicada por uma forma rigorosamente individualizada, mas individualizada no plano da protagonização objetiva das coisas, mas também da subjetividade do réu. A história do réu conta nessa hora, a história do réu não conta na primeira fase, que é o juízo de incriminação, se ele incorreu ou não incorreu em delito. Na segunda fase, da apenação, a personalidade dele conta, a personalidade dele, diz o artigo 59, conta. O histórico de vida conta nesse segundo momento. O Código Penal, no artigo 59, lista oito vetores para que a pena seja aplicada por modo individualizado. Não quantifica, em termos de pena, numericamente mesmo, nenhum dos vetores, pena mínima ou pena máxima. Para nenhum desses oito vetores, o Artigo 59 avança uma aritmética. Então há um espaço de subjetividade para o juiz e o juiz fica preocupadíssimo com isso. Porque o juiz gosta de ser objetivo, para depois não ter remorso, para incidir o menos possível em erros. Quando os parâmetros são todos objetivos, a possibilidade de erros é muito menor. Quando são subjetivos, a possibilidade de erros é maior, suas antipatias e simpatias inconscientes, chamadas de gratuitas, elas afloram nesse momento da dosimetria.
Para chegar a um denominador comum em termos de dosimetria, é algo trabalhoso. Muitas vezes é algo, sem trocadilhos, penoso. O público não sabe disso quando não há a transparência, ou seja, o julgamento não é exibido pela televisão ou pela internet, o produto já chega para o público pronto. Agora não, é um produto que, para atingir o seu ponto de perfazimento, passa por fases que são discussões até acaloradas, como temos visto nas sessões.
O senhor foi uma das pessoas que mais se empenhou para respeitar os direitos de todos, os prazos, para que esse julgamento se realizasse este ano. Lhe dói não proclamar esse resultado?
C.A.B. –Não, não dói, porque as coisas não se passam de acordo com a nossa vontade do ponto de vista arbitrário. O importante era julgar esse processo, porque os fatos aconteceram há mais de sete anos. A denúncia foi recebida há mais de quatro anos e temos mais de um ano, começo de junho, quero crer, nós já tínhamos um ano de completada a fase de instrução criminal. O processo estava completamente pronto. Então que desculpas nós tínhamos para não julgar? Quando chegavam para mim e diziam 'Mas ministro, para que julgar?', eu dizia: 'E por que não julgar?'. Basta lembrar que a lei diz assim: ultimada a instrução, o processo criminal, sobrevem o julgamento. Então, era preciso julgar, por dever nosso. Condenar, absolver, isso é contingencial, isso vem como consequência do julgamento. Agora, era preciso julgar. E nove ministros assim concluíram unanimemente.
Mais de três meses do julgamento, quase quatro, olhando para trás, desde agosto, se o senhor tivesse que lembrar de um momento difícil…
C.A.B. –Houve momentos difíceis, que eu encaro com certa naturalidade e chamo isso de intercorrências, de acidentes de percursos. O que não pode haver é pane. Esse substantivo pane é até do ministro Gilmar (Mendes). Não pode haver pane processual, impasse processual.
Se tivesse que lembrar alguma coisa…
C.A.B. –Logo no começo, na primeira sessão, nós ali nos bastidores, combinamos sim, que a metodologia prevalecente seria a do relator, como sempre foi na história do Supremo Tribunal Federal e de qualquer tribunal. O presidente da casa preside o julgamento, preside as sessões, mas quem preside o processo é o relator. Então, houve uma resistência, conhecida, a que a metodologia de julgamento do relator preponderasse, prosperasse. Mas nós conseguimos resolver isso. Porém, no momento subsequente, já em plena sessão, quando o ministro relator anunciou sua metodologia, o ministro revisor se opôs, e aí houve um momento de muita fricção, de muita tensão. Eu tive que dizer, junto com o ministro Celso de Mello, por exemplo, 'então cada ministro vota com sua própria metodologia'. Foi o modo de sair do impasse.
Porém, o ministro revisor, um pouco mais além, algumas horas depois, anunciou que se submeteria, acertadamente, à metodologia do relator, que foi a metodologia do fatiamento, dos temas e dos réus segundo a ordem da denúncia. Foi lógico isso, o ministro Joaquim Barbosa teve esse extraordinário mérito de adotar o método adequado para essa causa. Além de outro mérito, que a história vai registrar: o ministro Joaquim Barbosa agiu como um legista, fazendo a autópsia, no caso dos fatos. Ele reconstituiu materialmente os fatos por uma forma absolutamente fidedigna e fez um link entre os fatos, na sua ocorrência, na sua fenomenologia e os respectivos autores e partícipes.
Muitos momentos de atrito de grande tensão no Plenário. O senhor acha que somente sendo um algodão para conseguir conduzir os trabalhos?
C.A.B. –A metáfora do algodão entre cristais é perfeita no sentido de que, quando a taxa de cordialidade sobe, a taxa de gentileza, cortesia, de atenção de um colega para os demais, o processo flui. Chega a ser uma técnica de gerenciamento de conflitos. Há um livro da jornalista Leila Ferreira que diz exatamente isso, que a cordialidade em ambientes coletivos de trabalho se torna um fator de eficiência. E como o processo é marcha, não é contra marcha, processo é um seguir adiante, é um mandar para frente, termina sendo um andar para a cima, porque tudo se ajeita e se ajusta. Eu me esforcei para que a taxa de cordialidade entre os ministros permanecesse alta.
Algumas pessoas achavam que, porque a maioria dos ministros da atual composição da corte foi indicada durante o mandato do então presidente Lula, do PT, partido que tem alguns dos principais réus da ação penal 470, os ministros se comportariam de outra forma, o julgamento não produziria condenações. O que o senhor tem a dizer sobre esse pensamento?
C.A.B. –É preciso separar as coisas, entender bem a natureza das coisas. O cargo de ministro do Supremo, não é cargo em comissão, nem é função de confiança. Cargo de ministro do Supremo é para ser exercido com absoluta independência, a prerrogativa da independência é para ser exercitada a todo instante.
A soberania do judiciário passa por essa coragem, por esse destemor de assumir a própria independência. Gratidão do plano pessoal é uma coisa que deve existir sempre, pela sua chegada aqui, por efeito da indicação do Presidente da República. Cada um dos ministros teve sua indicação e posterior nomeação feitas por um Presidente da República que estivesse no cargo. Agora, não se pode ser grato com a toga. A toga exige de cada um de nós fidelidade às leis e notadamente à Constituição, porque o Supremo é o guardião mor, maior da Constituição. E como a Constituição é o mais legítimo dos documentos jurídicos, porque é produzido não pelo povo, quadrienalmente convocado, a Constituição é produzida pela nação, e nação é um conceito atemporal. Passado, presente e futuro. Nação incorpora da primeira geração, da mais antiga geração a mais atual, a nação é dotada de uma vontade normativa, uma vontade jurídica permanente, e essa vontade jurídica permanente da nação – da nação chega a ser um cacófato, mas é inevitável – essa vontade permanente é derramada na Constituição. E a Constituição depositária da vontade normativa permanente da nação, que é mais do que o povo, ela, a Constituição, governa permanentemente quem governa transitoriamente. Então, a legitimidade do juiz e, sobretudo do ministro do Supremo, decola, arranca do seu apego irrestrito à Constituição. Ele só é grato à Constituição. Unicamente.
Alguns réus têm atacado as decisões do Supremo de uma maneira bastante ácida. Como o senhor vê? O senhor acha que essas manifestações aceitáveis, adequadas?
C.A.B. –Isso faz parte da liberdade de expressão. Eu sou um apologista da liberdade de expressão por haver relatado aquela Adin, Ação de Direito da Inconstitucionalidade, que cominou com o reconhecimento da plenitude da liberdade de expressão em nosso país, da liberdade de pensamento, liberdade de informação e liberdade da expressão lato sensu, criação artística, as descobertas científicas, liberdade de expressão numa maneira mais geral possível. Então, criticar o Supremo é válido. Aplaudir também é válido. Isso não me tira do sério, não me tira do eixo. Eu ouço e respeito os pontos de vistas. Leio, ouço e respeito. Agora, o meu juízo pessoal da conduta do Supremo Tribunal Federal, na condução dessa Ação Penal 470, é um juízo de aplauso. Eu acho que o Supremo tem agido por modo técnico, por modo fundamentado, tem fundamentado, por modo transparente, por modo independente, por modo atual e por modo desassombrado como deve ser.
Nisso, qual que o senhor acha que é o principal legado do julgamento da Ação Penal 470?
C.A.B. –O Supremo Tribunal Federal vem interferindo no curso da vida, Renata. Isso é fato. Eu aplaudo as decisões que o Supremo tem tomado, inclusive nessa, da Ação Penal 470, que sinaliza, que traduz um vislumbre pelo menos de virada de página na direção de um Brasil com melhor qualidade na vida política, e que abomina, excomunga a formação de alianças partidárias ou parlamentares, à base de propina e de outros crimes, lavagem de dinheiro, por exemplo, evasão de divisas, peculato. É uma postura do Supremo que me parece rigorosamente técnica, porque fiel à Constituição, que é um documento técnico. Do ponto de vista jurídico ele é um documento técnico, e uma decisão que corresponde a anseios coletivos. Não que o Supremo seja submisso, seja escravo, seja refém da opinião pública, não se trata disso. Mas quando uma decisão do Supremo Tribunal Federal coincide com um pensar coletivo mais profundo, mais legítimo, é a glória, porque aí se dá a conciliação da vida com o direito. E quando o juiz percebe que está conciliando o direito com a vida, a vida mais arejada desses pontos de vista ético, ecológico, democráticos, cívico, o juiz percebe que ser juiz é mais do que um meio de vida, é uma razão de viver.
Saindo um pouco da Ação Penal 470, eu queria falar um pouco sobre casos importantes dos quais o senhor tratou, que o senhor relatou, durante os seus quase dez anos como ministro dessa casa, casos como o da Raposa Serra do Sol, da união homoafetiva, das pesquisas com célula-tronco, a Lei de Imprensa. O que o senhor diria que foi o seu trabalho mais importante ou os seus trabalhos mais importantes na corte?
C.A.B. –Eu diria que a mais importante de todas as decisões foi a que deu pela plenitude da liberdade de imprensa. Por quê? Porque pela liberdade de imprensa ocorre no país o que há de mais importante, mais essencial, quem quer que seja pode dizer o que quer que seja. Responde pelos excessos que cometer, mas não pode ser podado por antecipação. Ou seja, não é pelo medo do uso, pelo medo do abuso, não é pelo temor, pelo receio do abuso que se vai proibir um uso. A liberdade de expressão está na linha de largada da democracia, e a democracia, que é o princípio dos princípios da Constituição de 1988, é a menina dos olhos da Constituição. O princípio estruturante do estado, da sociedade, do governo, da administração, não é dizer, como outro dia eu vi um governante sul-americano dizer equivocadamente: ‘A democracia não é incompatível com a liberdade de imprensa’. Não é isso. O certo é: não há democracia sem liberdade de imprensa.
Saindo agora do seu legado como ministro, vamos falar um pouco do seu período na presidência, eu fui pesquisar, salvo engano meu, me corrija se eu estiver enganada, só dois presidentes tiveram um período mais breve do que o seu no comando do Supremo. O que o senhor gostaria que ficasse como a marca da sua presidência no Supremo?
C.A.B. –Eu acho que o maior exemplo, vamos dizer, a melhor pregação que tentei fazer é dar essencialidade e superioridade absoluta da democracia. Agora, no âmbito da democracia com relevo para a atuação do poder judiciário, por ser o poder judiciário, a âncora definitiva de confiabilidade do corpo social em que a sua Constituição e todo o direito, Constituição e leis em geral, serão respeitadas. Constituição e leis em geral. Só o judiciário, num regime democrático, antes de tudo democracia, conceituada como geminada à liberdade de imprensa, irmã siamesa da liberdade de imprensa. Só no âmbito da democracia é que se tem um poder judiciário soberano, ocupando o espaço da soberania para vetar e sancionar o que estiver de acordo com a ordem jurídica. Vetar o que estiver em desacordo. Sancionar o que estiver, sancionar positivamente, afirmativamente, o que estiver de acordo com a ordem jurídica.
O senhor já teve uma experiência em política partidária, já foi candidato uma vez. O senhor admite a possibilidade de voltar a enveredar por esse caminho?
C.A.B. –Não. Não. O livro da vida ensina a virar páginas. Lógico, né. Senão não seria o livro da vida. Essa página está virada. Eu não volto para a vida político-partidária. Eu vou cuidar de escrever, de ler, seja na área jurídica, seja poética, seja até com alguns experimentos holísticos, quem sabe. Mas político-partidária não.
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[Renata Lo Prete é editora de política do Jornal das Dez, da Globo News]