Há dois mil anos, os romanos consolidaram as ideias de fronteira e lei como pilares de seu império. Além da lei e da fronteira, só existia a barbárie. Como lembra Umberto Eco, se lei e fronteira não são reconhecidas, então, não pode haver civitas – a cidadania. O longo período de trevas em que o mundo europeu mergulhou na Idade Média surgiu em decorrência do rompimento das fronteiras romanas e de suas leis. Só a lenta organização dos Estados europeus, forjando leis nacionais e desenhando fronteiras, recriou a civilização como a conhecemos, muitos séculos depois.
O mundo contemporâneo flexibilizou os limites que já não são quase visíveis fisicamente. Podemos cruzar de avião muitas fronteiras nacionais sem percebê-las. Nossa comunicação digital com qualquer um em qualquer parte do mundo, as compras que fazemos pela Amazon, a circulação instantânea da informação são alguns exemplos que nos dão a impressão de que vivemos num “mundo sem fronteiras”. Quem tem mais dificuldade de viver essa realidade é a gente mesmo, fisicamente, com todos os aparatos de controle de migração e segurança que enfrentamos. Faz até pensar em como seria bom viajar só com nossos corpos virtuais, o que talvez seja possível um dia.
O que vemos hoje, no ambiente digital, é o incentivo ao conceito do mundo sem fronteiras como a nova utopia. Mas essa sedutora utopia do mundo global, com menos limites reais e virtuais, facilitando o trânsito de mercadorias, capitais e ideias, só pode ser alcançada à medida que a lei também se torna mais ampla, incorporando esses avanços. Esse processo é permanente e contínuo e, às vezes, descompassado. Cada ampliação do conceito de fronteira precisa encontrar seu correspondente no ambiente legal. Afinal, o mundo sem limites não pode significar o mundo sem lei. O que é o atual problema europeu senão o da criação de uma moeda que atravessa fronteiras, o euro, sem uma correspondente legislação tributária que regule de forma coerente os efeitos de sua adoção?
Caminhando para a barbárie
Misturar o conceito de liberdade no ambiente da internet, incluindo o de liberdade de expressão, com a ideia de fim das fronteiras, sem incluir a lei, é sugerir que a pós-modernidade é anárquica, e, intencionalmente, levar à conclusão de que a lei não pode ou não deve regulá-la. A quem interessa esse movimento? Vamos dar nome aos bois: interessa, principalmente, a quem atua globalmente no mundo virtual, de forma monopolista, sem pagar impostos e sem se sujeitar às leis dos Estados nacionais, ou mesmo às leis internacionais. Na semana passada, uma das megaempresas mundiais de busca na internet foi condenada a pagar um bilhão de euros em impostos não recolhidos na França, pois, como num passe de mágica, transferia virtualmente as atividades reais que fazia em território francês para a Irlanda, país de regulação tributária mais favorável. Atrás do escudo dessa utopia pós-moderna, em si um oxímoro, esconde-se o conluio entre a malícia de poucos e a ingenuidade de muitos.
O mundo virtual dilui fronteiras, mas isso não pode ser justificativa para diluir a lei. O desafio do nosso tempo é criar leis que promovam a justiça e ordenem o funcionamento da sociedade nas diferentes formas em que a vida social se manifesta, inclusive no ambiente virtual. Isso não tem nada a ver com controlar a vida do cidadão ou transformar o Estado num Grande Irmão (muito pelo contrário, pois a vida de todos nós já está muito bem registrada nos computadores privados das empresas digitais). Afinal, não há diferença entre arrombar fisicamente um banco e surrupiar virtualmente uma conta bancária. Difamar alguém num blog é o mesmo que fazê-lo numa revista. Não recolher imposto numa transação virtual internacional não passa de contrabando digital. Ou a sociedade entende isso, ou caminhará alegremente para a barbárie, fantasiada de pós-modernidade digital. Para o deleite e lucro de uns poucos – esses, sim, muito reais.
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[Jorge Nóbrega é diretor das Organizações Globo]