Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Derrota de Cristina

Dado o retrospecto de agressiva ingerência da presidente Cristina Kirchner nas instituições do Estado argentino, chega a surpreender pela ousadia a decisão de um tribunal federal, a Câmara Civil Comercial de Buenos Aires, em defesa dos direitos de um querelante que o kirchnerismo considera seu inimigo número um e contra o qual move há quatro anos uma pertinaz campanha de aniquilamento. Trata-se do Grupo Clarín, o maior conglomerado de mídia do país, que edita o jornal de mesmo nome, o mais importante órgão argentino de imprensa. De aliado – e beneficiário – do então presidente Néstor Kirchner, o Clarín passou a fazer-lhe oposição desde a sua ofensiva, afinal malograda, contra o setor rural, em 2008.

A decisão judicial a que nos referimos prorrogou, até a palavra final dos tribunais, a vigência de uma liminar obtida pela empresa sobre a constitucionalidade de dois artigos da Lei de Mídia promulgada em 2009 com o alegado objetivo de democratizar a comunicação social. Na realidade, a lei nada mais é do que um instrumento da Casa Rosada para consolidar o seu já não desprezível controle sobre o setor e amordaçar de vez o jornalismo independente na Argentina. O que o ditador Juan Domingo Perón fez pela força, em 1951, contra o jornal La Prensa e ao expropriar o Clarín, a sua seguidora tenciona fazer sob um manto legal feito sob medida. A prorrogação foi concedida anteontem, na véspera do término da vigência da liminar, o 7D (7 de dezembro), na terminologia oficial, quando o governo convocaria ele próprio uma licitação para desmembrar o grupo.

Pela Lei de Mídia, uma empresa de comunicação poderá acumular até 24 licenças de rádio e televisão (o Clarín tem mais de 250) e a sua cobertura não poderá ultrapassar 35% da população das cidades em que operar (as estações de rádio da holding alcançam 41% dos argentinos; os seus canais de TV aberta, 38%; de TV a cabo, 58%). A lei proíbe ainda que uma concessionária de emissora convencional opere também no mercado de TV paga. No 7D, aqueles dos 21 grupos do setor na Argentina que já não tivessem apresentado planos para se adequar às novas regras, no prazo de um ano, correriam o risco de ser fatiados compulsoriamente. Para Cristina, portanto, a sentença representou uma acachapante derrota. Semanas atrás, decerto para prevenir o pior, o governo tentou forçar a troca de juízes da Câmara Civil e Comercial.

Pode-se aquilatar a intensidade da fúria kirchnerista pela truculência das manifestações do oficialismo. Antes ainda da divulgação do resultado, ninguém menos do que o ministro da Justiça, Julio Alak, disparou que, se a Câmara não votasse com o governo, os seus membros seriam tratados como se estivessem em “estado de rebelião” – passíveis, portanto, de “julgamento político”, na ameaça do senador Marcelo Fuentes, um dos principais porta-vozes da presidente no Congresso. Divulgada a decisão, o titular da Autoridade Federal de Serviços de Comunicação, Martín Sabatella, não só acusou os juízes que a subscreveram de terem sido subornados pelo Clarín com “viagens a Miami”, como considerou o seu ato “uma vergonha”. Em nenhuma democracia madura, um figurão do governo se permitiria vociferar tamanha enormidade.

Até a data antes tida como fatal, três outros grupos, além do Clarín, não haviam informado o que fariam e quando para se desfazer parcialmente dos seus ativos. Mas nada conta tanto para a Casa Rosada como quebrar o mais poderoso desses conglomerados, no que seria “a mãe de todas as batalhas”, conforme o linguajar grandiloquente de seus ocupantes. Ontem, o governo recorreu à Suprema Corte para desfazer a prorrogação da liminar. Valeu-se do recém-instituído per saltum, mecanismo pelo qual ações que tramitam em segunda instância podem ser transferidas para a mais alta Corte do país. Resta saber se ecoará ali o protesto da Comissão Nacional de Independência Judicial, divulgado na véspera, contra a mão pesada do kirchnerismo, traduzida em “fatos que agridem institucionalmente um poder do Estado”. A crescente impopularidade de Cristina talvez incentive o Supremo argentino a examinar a matéria de forma compatível com a reputação de autonomia que ainda preserva.