Numa palestra que dei há mais de um mês na Universidade de Hong Kong, sugeri modestamente que os dois primeiros passos para a reforma política na China poderiam ser: um tratamento mais tolerante para com os meios de comunicação e um maior respeito aos direitos da população chinesa. No debate que se seguiu, várias pessoas criticaram a falta de ambição desta perspectiva. “Não deveríamos ir mais longe?”, perguntaram. No entanto, na última semana vimos como até estes “tímidos” desejos se chocaram com uma forte resistência na China. E nunca eu tinha imaginado que a primeira prova, o primeiro episódio importante do ano 2013 na China, em matéria de meios de comunicação, aconteceria no jornal em que eu trabalhei, o Semanário do Sul (Nanfang Zhoumo).
O conflito, agora denominado “incidente da saudação de Ano Novo do Semanário do Sul”, começou com a brutal intromissão das autoridades de propaganda da província de Guangdong nos preparativos da edição de Ano Novo do jornal. Na reação que provocou, foi criticada a censura. A quem deseje compreender melhor o incidente do Semanário do Sul, recomendo em particular dois artigos. O primeiro, “Denúncia da exclusão dos veículos de imprensa pelo Partido”, é obra do ex-redator-chefe do Diário Metropolitano do Sul, Cheng Yizhong. O segundo, “Quem reviu a saudação de Ano Novo do Semanário do Sul”, foi escrito por Zeng Li. Este trabalhava, na realidade, no Semanário do Sul como revisor de conteúdos, e no meio da crise publicou um artigo num blog no qual desmentiu rotundamente os rumores de que os chefes de propaganda provinciais não tinham sido responsáveis pelo conflito no Semanário do Sul. Zeng apresentou provas concludentes da existência da censura.
Para ser preciso, a China não tem (ou normalmente não tem tido) o tipo de censura sobre o material impresso que foi prática comum no tempo do Kuomintang. Com Mao Zedong, a mensagem da imprensa estava totalmente unificada. Na era de Deng Xiaoping, falou-se de reforma e um vice-ministro da Propaganda chegou a dizer então que “o que os jornais publicam ou não publicam é algo que deveria ser decidido pelos próprios jornais”. Depois do massacre de 4 de junho de 1989 na praça Tiananmen, no entanto, os meios de comunicação voltaram a estar submetidos a um estrito controle. Durante o mandato de Jiang Zemin, os controles diários dos média eram exercidos sobretudo na forma de “ordens e proibições prévias” e “castigos a posteriori”.
Proibição e castigo
Quando trabalhei como subchefe de redação no Semanário do Sul, de 1998 a 2001, vi numerosas “ordens e proibições” e vários exemplos de “castigo”. As primeiras delimitam e restringem basicamente o trabalho antes da publicação; estabelecem o que se pode e não se pode informar e como deve fazê-lo. Talvez também indiquem o que tem de ser informado. O castigo costuma ser imposto pelo “grupo de comentário de notícias” do Departamento de Propaganda, que rastreia o conteúdo da mídia, chamando à ordem quando se descobrem “problemas” retrospectivamente. No tempo em que estive no Semanário do Sul, recebíamos regularmente uns dez ou mais “comentários de notícias” por ano do Departamento Central de Propaganda. Cada vez que isso ocorria, os diretores superiores – os da nossa matriz, que edita o Diário do Sul – sofriam palpitações de ansiedade. Quando chegava um desses comentários, pressionavam-nos a discutir a questão. Nos reuníamos e decidíamos se tínhamos que fazer autocrítica ou se era preciso adotar outra medida disciplinar.
O meu destino, isto é, a minha demissão como um dos principais redatores do jornal foi traçada quando acumulei um bom número desses “comentários de notícias”. Um artigo polêmico foi a gota que fez transbordar o copo, e assim chegou a minha vez de sair para não voltar. No passado, o Semanário do Sul gozava da proteção da direção do partido da província de Guangdong, mas durante os anos em que trabalhei na redação, a situação foi piorando progressivamente.
A censura prévia sai da jaula
Como assinalou Cheng Yizhong, em finais do mandato de Jiang Zemin, as ordens e proibições do Departamento de Propaganda chegavam clandestinamente: deixaram de ser emitidas por escrito. A partir de 2005, estreitaram-se os controles. Depois da criação, no começo da década de 1990, do Grupo de Comentários de Notícias, o Departamento Central de Propaganda estabeleceu um “sistema de revisão de conteúdos”, incorporando os seus “revisores” (shenduyuan) nas redações dos veículos considerados estratégicos. Estes revisores praticariam a censura prévia do conteúdo. Ao mesmo tempo, uma série de funcionários de propaganda fiéis ao Partido foram nomeados redatores-chefes com a missão de tomar precauções estritas.
Tal como as coisas evoluíram, numa situação em que o mínimo deslize se confundia com um ato hostil, a atitude dos veículos considerados mais críticos pelos funcionários de propaganda era de maior temor. O Departamento Central de Propaganda tornou-se muito mais intervencionista, desenvolvendo o seu poder perante publicações como o Semanário do Sul. Zeng Li, o revisor destinado ao Semanário do Sul, revelou que desde maio de 2012, quando Tuo Zhen foi nomeado responsável pela Propaganda de Guangdong, o controle e a supervisão da imprensa da província atingiram proporções nunca vistas anteriormente. O tema de cada número do semanário devia ser comunicado ao departamento provincial de propaganda, e os editores não podiam trabalhar nele até que fosse aprovado.
Todas as reportagens importantes e os editoriais tinham que ser submetidos à revisão por parte do Departamento de Propaganda antes de poderem serem publicados. Inclusive houve um caso em que a notificação da exclusão de um artigo não chegou até ao jornal ter entrado na impressora, de maneira que foi preciso destruir centenas de milhares de exemplares impressos (outro companheiro do Semanário do Sul diz que em 2012 houve quatro casos de artigos que tinham sido censurados depois da edição ter entrado nas máquinas).
Censura prévia pela primeira vez
De fato, o processo de edição do número especial de Ano Novo de 2013 do Semanário do Sul é um exemplo vivo da censura de notícias na China atual. No meio da tormenta, o Comitê de Ética Profissional do semanário publicou uma versão do processo interno em que apresenta uma imagem fiel da brutal intromissão da censura de notícias. Ao ter colaborado na edição de Ano Novo, compreendo como ela é importante para a imagem de marca do Semanário do Sul. Os leitores e leitoras esperam a edição com interesse, e o processo de elaboração é laborioso e preciso, especialmente quando tudo o que se faz é analisado à lupa.
Os preparativos para esta edição começaram no início de dezembro. O tema acordado no início era “atravessar o rio”, em alusão, certamente, à famosa expressão de Deng Xiaoping sobre o processo de reforma como um ato de “atravessar o rio passando por cima das pedras”. A redação comunicou o tema proposto ao redator-chefe do jornal, Huang Can, que respondeu em meados do mês assinalando que a edição se centraria na ideia “O sonho da China”. Uma decisão para, acima de tudo, apaziguar os dirigentes do Departamento de Propaganda. A 23 de dezembro, a redação entregou a Huang Can um projeto escrito do número especial, e no dia seguinte o redator-chefe apresentou o plano à autoridade provincial de propaganda. Convém destacar que essa foi a primeira vez na história do jornal que a edição especial de Ano Novo se submeteu à censura prévia.
Os “cinco cortes”
Efetivamente, esta censura prévia do Semanário do Sul comportou o que denominamos os “cinco cortes”, a saber:
Primeiro corte – Muitos dos temas propostos foram recusados. A 26 de dezembro chegou a primeira indicação do departamento provincial de propaganda, referente à seção “gente”. Tinha que se eliminar muitos perfis que se tinham planejado sob certas pessoas.
Segundo corte – A saudação de Ano Novo da edição especial foi entregue duas vezes às autoridades de propaganda para revisão. O título original da saudação do Semanário do Sul era “O sonho da China, o sonho do constitucionalismo”. Huang Can não estava contente com o editorial, de modo que introduziu mudanças e depois remeteu-o às autoridades. O ato seguinte foi a ordem dada ao jornal para que elaborasse outro projeto, que voltou a ser submetido a revisão. O projeto apresentado a 31 de dezembro ficou reduzido a mil palavras, e o título era “Estamos mais perto que nunca do nosso sonho”.
Terceiro corte – Praticaram-se importantes cortes no conteúdo das páginas interiores. Na noite de 31 de dezembro, quando já se terminava a produção do número especial, Huang Can transmitiu novas indicações do departamento de propaganda para os editores do jornal. Foi eliminada uma página inteira. Mais tarde chegou outra ordem de suprimir mais dois artigos. Os editores não tiveram outro remédio que trabalhar mais duas horas para deixar pronta a edição.
Quarto corte – Houve uma tentativa de substituir toda a manchete do número especial. Quando os editores estavam a maquetar a página, Huang Can tirou uma foto da manchete com o seu celular e enviou-a ao departamento de propaganda. Nas primeiras horas de 1º de janeiro de 2013, Huang Can informou de repente aos editores sobre a última “opinião” da autoridade de propaganda. Esta considerava que a ilustração da manchete sobre a história de “Yu, o Grande, domando as águas” era demasiado escura e podia ser mal interpretada, disseram. Tinha que ser substituída pela fotografia de um porta-aviões. Além disso, na manchete não deviam figurar as palavras “O sonho da China, um sonho vislumbrado através da adversidade”. Ao conhecer estas instruções, o estado de ânimo dos editores afundou-se. A hora limite para aprovar as provas de imprensa tinha passado há muito e era praticamente impossível introduzir mudanças substanciais. Após algum debate, acordaram em manter a ilustração e mudar o título para “Os sonhos da pátria”.
Quinto corte – Este foi o último corte e o mais grave, e deu-se após a conclusão todo o processo de produção. Cerca de três horas da madrugada do dia 1º de janeiro, quando o trabalho tinha chegado ao fim, os editores responsáveis pelo número especial deram a aprovação às páginas. O subchefe de redação foi o último a assinar antes do envio das provas para impressão. Os editores desligaram então os seus celulares e foram para casa. Ao amanhecer, o chefe e o subchefe de redação foram convocados pelo departamento de propaganda, que lhes ordenou que introduzissem novas mudanças no jornal. O problema estava na manchete e na saudação anual. A autoridade provincial de propaganda disse que tinha que se incluir umas observações introdutórias na manchete. Estas palavras foram atribuídas ao chefe de propaganda de Guangdong, Tuo Zhen, quando o incidente chegou às redes sociais chinesas.
Um “sistema empresarial moderno”
Partindo do que sabemos agora, tudo indica que as observações introdutórias foram ditadas de viva voz pelo vice-ministro de Propaganda, Yang Jian, e transcritas pelo subchefe de redação antes de voltar a enviá-las por SMS para aprovação definitiva. A versão final destas observações foi reenviada então pela autoridade de propaganda para inclusão na publicação. Ainda não está claro quem exatamente deu o último toque ao texto, que continha alguns erros de vulto, como, por exemplo, ao referir o episódio histórico de Yu, o Grande, domando as águas e dizer que ocorreu há 2.000 anos. Na realidade, Yu, o Grande, viveu entre 2200 e 2100 a.C., ou seja, há mais de 4.000 anos.
Ainda insatisfeita, a autoridade também voltou a algumas passagens da saudação de Ano Novo (que, recordemos, já tinha sido censurada três vezes). Era preciso suprimir várias linhas e acrescentar cerca de 100 palavras novas. Uma vítima dessa versão final foi a última referência à palavra “constitucionalismo”, a ideia chave do projeto original. Os novos itens da saudação incluíam frases tomadas diretamente do relatório político ao recente XVIII Congresso Nacional do Partido: “Confiamos na nossa teoria, confiamos no nosso rumo e confiamos no nosso sistema.” Na noite de 1º de janeiro, a autoridade provincial de propaganda ordenou que se mudasse o título da edição especial pela expressão “Em busca de sonhos”. Já que a equipa de edição estava fora de serviço, foram o chefe e o subchefe de redação quem tiveram que ir à gráfica para executar as últimas instruções.
Peço aos meus companheiros jornalistas chineses que me digam, após ler este relato, se alguma vez conheceram um processo de edição como este. Conheço perfeitamente os mecanismos de controle dos meios de comunicação na China, mas este caso parece-me incrível. Há algo que esta censura não toque? Não: os esboços de conteúdo, os temas gerais e concretos, os rascunhos, as fotos, tudo, absolutamente tudo tem de estar ao serviço dos objetivos do Departamento de Propaganda. E os jornalistas e editores do jornal são pouco mais que serventes que estão ali para receber ordens. O pessoal do Semanário do Sul teve de trabalhar até ao esgotamento, dia após dia, não para criar o melhor número possível do jornal, mas para satisfazer os obscuros caprichos dos funcionários do Departamento de Propaganda. Estes controles são como um pesadelo que continua dia após dia, mês após mês.
O Semanário do Sul é um produto comercial, ainda que, antes de tudo, seja um produto de tipo especial. É editado por uma empresa que opera comercialmente e cujo proprietário, em última instância, é o Partido Comunista da China. No entanto, a China conta já hoje com um “sistema empresarial moderno”. Olhemos para as empresas estatais de hoje: podem os dirigentes do Partido manejar a seu desejo os diretores dessas empresas? Podem meter os narizes e mexer no seu funcionamento? Certamente que não. Mas estes sintomas crônicos da economia planificada continuam a estar muito vivos no sistema atual de comunicação e propaganda.
O primeiro “não”
O incidente do Semanário do Sul é importante, antes de tudo, porque dá a conhecer publicamente o que tem ocorrido nos bastidores. Ao longo de vários anos, o controle da mídia foi tornando muito mais rigoroso. Os métodos da censura prévia tem sido empregados descaradamente nos bastidores. Nos últimos anos, os leitores assíduos do semanário terão notado que este se tornou menos contundente e menos crítico, que não tratou muitos acontecimentos importantes. A proliferação do jargão oficial e do palavreado oco não terão passado despercebidos. Li Haipeng, antigo jornalista do Semanário do Sul, escreveu recentemente na rede social chinesa: “Comecei a trabalhar no Semanário do Sul em 2002 e fui embora em 2009. Vi com os meus próprios olhos que não houve nem um dia em que o jornal não tivesse que lutar sob um controle férreo. Era como uma árvore que perdia um ramo num dia e outro no dia seguinte…”
As leitoras e leitores do Semanário do Sul não podiam saber quanta verdade tinha ficado sepultada sob o peso da censura prévia, quantas faíscas tinham sido apagadas. Os jornalistas sofreram durante muito tempo, mas desta vez já não podiam aguentar. As suas reivindicações eram concretas: queriam que se anulasse a censura prévia e que os editores voltassem a ter autonomia. Talvez agora, após esta batalha contra a censura, os responsáveis pelo Departamento de Propaganda sejam mais cuidadosos. Mas o caminho para a liberdade de expressão, tal como está consagrada no artigo 35º da Constituição chinesa, será longo. As ordens e proibições continuarão, e o castigo continuará à espera de quem pise fora da linha.
Mas podemos dizer que as coisas começaram a se mexer. Pela primeira vez, a palavra “Não” soou no sistema de meios de comunicação da China. O jogo de interesses contrapostos que temos visto nesta semana não tem paralelo no passado. A minha esperança é que os dirigentes da China tenham a sabedoria de distinguir entre os que desejam e apoiam uma nova abordagem do governo e aqueles cujos atos vergonhosos não geram mais do que raiva e desconfiança. Chegou o momento dos meios de comunicação gozarem de mais tolerância. Chegou o momento de haver mais respeito aos direitos das pessoas. Em matéria de reforma política, já não podemos esperar mais tempo.
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[Qian Gang é escritor e jornalista]