Imagine uma comunidade onde os moradores têm direito a uma renda garantida incondicional e indiscriminatória. Ou seja, os seus membros recebem um pagamento mensal, independente da classe social, gênero, idade, ocupação, estado civil ou qualquer outro fator. Impraticável, diriam alguns. Um incentivo ao ócio, argumentariam outros. Pois bem, esse lugar existe. E não é a clássica ilha de Utopia, de Thomas Morus. Fica aqui mesmo no Brasil e foi tema da matéria intitulada “Dividir para somar”, publicada na revista Brasileiros. Trata-se do projeto Renda Básica Garantida, realizado pela Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) ReCivitas na comunidade rural de Quatinga Velho, localizada no interior do estado de São Paulo. O projeto em questão, concebido pelo casal Marcus Vinicius Brancaglione e Bruna Augusto Pereira, paga, mensalmente, um rendimento incondicional de 30 reais aos moradores de Quatinga Velho.
Segundo Marcus Vinicius, quando o projeto começou, há seis anos, não foi simples colocá-lo em prática. Algumas famílias da comunidade acreditavam que os membros do ReCivitas estavam ligados a alguma campanha eleitoral e que, em troca do montante recebido, deveriam votar em algum candidato. “A desconfiança [dos quatinguenses] era grande, as pessoas pensavam: ‘Você entra na minha casa e quer me dar dinheiro? O que você quer de mim?”, frisou Marcos Vinicius. Entretanto, com o passar do tempo, os moradores de Quatinga Velho se convenceram que os membros do ReCivitas não estavam ligados a políticos e o projeto Renda Básica Garantida, enfim, tornou-se realidade.
No primeiro mês os pagamentos foram efetuados com recursos dos próprios fundadores do ReCivitas – Bruna e Marcus Vinicius. Já nos meses subsequentes, após intensa divulgação do projeto, novos colaboradores (inclusive do exterior) aderiram ao Renda Básica Garantida.
Realidade mais justa
De acordo com a matéria da revista Brasileiros, o rendimento extra de 30 reais mensais permitiu aos residentes de Quatinga Velho uma melhor alimentação, quitar dívidas, aumentar suas economias, comprar remédios, reformar alguns imóveis e a elevação da autoestima. “A gente é abandonada aqui, ninguém põe os olhos. Eles [ReCivitas] vieram, levantaram minha família. Esse dinheiro vira comida na mesa. Olha a criançada aqui fora, feliz, saudável. É só você ver e calcular o quanto é importante a ajuda que eles fazem porque eles não pedem nada em troca. Se servir de exemplo para muitos, acho que o caminho é esse”, afirmou Joel Inácio, residente de Quatinga Velho. Já outra moradora, a dona de casa Dalzira de Souza Lima, disse à reportagem da revista Brasileiros que possui a sua casa própria graças ao Renda Básica Garantida. “Nossa proposta com a Renda Básica Garantida serve para emancipar cidadãos, e não para criar dependência política”, destacou Bruna Pereira.
Em suma, o exemplo do ReCivitas em Quatinga Velho mostra que iniciativas do Terceiro Setor também podem contribuir para melhorar a sociedade brasileira. Conforme salientou o filósofo belga Philippe Van Parijs, assim como a abolição da escravidão no século 19 e a adoção do sufrágio universal no século 20 foram os grandes avanços da humanidade nos últimos tempos, a aplicação em larga escala de projetos de renda básica garantida poderá ser a grande conquista do presente século. Obviamente não se trata de uma solução peremptória para todas as mazelas que afligem o ser humano, mas garantir o mínimo para a sobrevivência de todos os indivíduos pode ser um importante ponto de partida para ensejar uma realidade mais justa e equilibrada.
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Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas, Brasil: Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG