Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Mais um aliado da polícia

A polícia civil e o Ministério Público do Paraná conquistaram mais um aliado no esforço de alcançar a pré-condenação dos médicos que comandavam a UTI do Hospital Evangélico de Curitiba, acusados de terem abreviado a morte de um número ainda incerto de pacientes. O novo aliado é a revista Veja, que em sua última edição (nº 2316) publica documentos que recebeu da polícia para mostrar a seus leitores “como funcionava a máquina de morte da UTI em Curitiba”. A única novidade que a revista acrescenta ao caso é a sua capacidade, já antiga, de substituir informação por adjetivos e retórica sensacionalista. Depoimentos de enfermeiros, cujo teor já havia sido revelado pela mídia em geral, são publicados por Veja como novidade e classificados como “estarrecedores” sobre a “repugnante máquina de execuções” instalada na UTI do Evangélico.

Veja cita frases que teriam sido pronunciadas pela médica Virgínia de Souza enquanto chefiava a UTI do hospital: “Aqui não existe Deus; quem decide quem vive e quem morre sou eu”. Quem lê a reportagem passa a acreditar que Veja seria capaz também de pronunciar frases um tanto quanto presunçosas: neste país não existe Justiça; quem condena uma pessoa pela prática de um crime é esta revista.

A pré-condenação perpetrada por Veja está baseada em dois tipos de documentos que lhe forneceu a polícia do Paraná: íntegra de depoimentos de enfermeiros que denunciaram a equipe médica que comandava a UTI do Evangélico de haver abreviado a morte de pacientes atendidos pelo SUS para abertura de vagas a pacientes atendidos pelos convênios particulares; e cópia de 21 prontuários de pacientes que foram a óbito.

Gesto de humanidade

A história que mereceu mais destaque foi contada por uma das enfermeiras – “que não quer se identificar por temer represálias”. Em meados de 2010, segundo esse relato, a médica-chefe da UTI, Virgínia de Souza, alertou sua equipe de que um acidente de trânsito havia feito várias vítimas e que todos se preparassem para recebê-las. Uma das enfermeiras alertou que os 14 leitos da UTI estavam ocupados. Virgínia de Souza respondeu que as vagas seriam criadas. Em menos de meia hora, seis pacientes da UTI foram a óbito.

Assinada por Leslie Leitão, a reportagem de Veja limita-se a transcrever o depoimento da enfermeira e sequer se preocupa em investigar se ele é falso ou verdadeiro. Tal informação não poderia ter sido publicada sem que o repórter procurasse descobrir se a UTI do Evangélico registrou, sim, seis óbitos no intervalo de meia hora em meados de 2010 e se neste mesmo dia houve o registro de algum acidente grave com várias vítimas e também se as vítimas foram mesmo encaminhadas para o Evangélico. Seria necessário ainda que o prontuário desses seis pacientes contivessem informações ou indícios de que o depoimento da enfermeira é verdadeiro.

Ainda que a apuração confirmasse a veracidade do depoimento, não pode a mídia, num caso desses, ratificar os termos do inquérito policial sem antes analisar o assunto por seus aspectos científicos. Já dissemos, em artigos anteriores, que a comprovação da morte nas UTIs é um assunto regulamentado pela legislação introduzida a partir da expansão das técnicas de transplante de órgãos no Brasil. Mencionamos argumentos de especialistas que nos mostram que a Medicina tem hoje condições de determinar se o paciente em coma sofreu morte encefálica. O paciente que sofreu morte encefálica terá vida vegetativa, ainda que os órgãos vitais continuem em funcionamento. Ele teve irreversivelmente destruído o que os especialistas chamam de “complexo humano”. Nestes casos, o desligamento dos aparelhos em UTI passa a ser um gesto de humanidade, pois faz cessar o sofrimento do paciente e a angústia de seus familiares.

Anomalia jornalística

Pode ser coincidência, mas a pergunta que deve ser feita é esta: a UTI do Evangélico naquele dia não tinha seis pacientes que haviam, comprovadamente, sofrido morte encefálica? In dubio, pro reo, nos ensina um dos princípios do direito penal ao estabelecer o que também é chamado de presunção da inocência.

Outro pilar da reportagem de Veja veio da leitura de 21 prontuários. A revista só fez confrontar os prontuários pelo que disseram os enfermeiros à polícia. Numa primeira acusação contra os médicos, os enfermeiros disseram que os pacientes eram mortos pela redução da quantidade de oxigênio fornecida pelos aparelhos. Para Veja, o depoimento dos enfermeiros tem credibilidade total. Como a redução de oxigênio não está registrada na maioria dos prontuários analisados, houve simplesmente “manipulação de informações” pelo hospital.

Outra acusação contra Virgínia de Souza e demais médicos é a aplicação de várias drogas – Diprivan, Pavulon, Fentanil, Thionembutal, Dormônio, Ketalar – com objetivo de abreviar a morte de vários pacientes. A combinação de diferentes dosagens é chamada pela revista de “kit morte”. Nesse ponto, a revista dá mais um exemplo de péssimo jornalismo: publica, em meio à reportagem, um infográfico que menciona droga por droga e seus efeitos no organismo humano. As informações, contudo, não são creditadas a nenhum especialista. É como se o repórter fosse também médico, intensivista, farmacologista ou bioquímico. A anomalia jornalística – um gráfico com informações técnicas e científicas sem o crédito às fontes pesquisadas ou entrevistadas – causa estranheza ao leitor. As fontes não quiseram revelar nomes de medo de sofrer represálias ou porque suas informações não têm rigor científico?

Contribuir com a polícia?

Esse caso da prescrição de drogas em combinação letal também não é novidade. O assunto foi explorado já no início da cobertura do caso, há cerca de um mês. O Fantástico, da TV Globo, havia submetido a médica Virgínia Soares a uma espécie de pegadinha à la Faustão. Ouviu primeiro um outro médico intensivista, que disse que o uso dessas drogas não era comum em UTIs; depois, ouviu a médica Virgínia enquanto ainda se encontrava presa (ela foi solta há duas semanas), que afirmou que a prescrição desses medicamentos era rotineira em UTIs. O Fantástico só fez despertar dúvidas em seus espectadores. Veja poderia ter ouvido médicos intensivistas de várias regiões do país e esclarecer as dúvidas em definitivo.

Diria que se a intenção foi contribuir com a polícia e o Ministério público para pré-condenar médicos e hospital, Veja agiu de modo muito sagaz.

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Dirceu Martins Pio é jornalista, consultor em comunicação corporativa e autor do livro Caminhos Seguros para o Empreendedor, escrito em parceria com Pedro Cascaes Filho