Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Da liberdade de expressão

Vinte e dois de fevereiro de 1971. Corria a Guerra do Vietnã quando Melville B. Nimmer, professor de Direito na UCLA, levantou-se para defender seu cliente, Paul Robert Cohen, perante os juízes da Suprema Corte, em Washington. O presidente do tribunal, Warren E. Burger, pediu-lhe que poupasse os presentes dos detalhes do caso, com os quais os membros da casa já estavam suficientemente familiarizados. Nimmer afirmou que seria breve, sim, mas que era necessário repassar os fatos.

Em 26 de abril de 1968, Cohen fora preso no corredor do fórum de Los Angeles por estar usando uma jaqueta com a frase “Foda-se a convocação”. O rapaz de 19 anos foi acusado e condenado localmente por “envolvimento em conduta tumultuosa”. Todos os recursos a seu favor foram rejeitados até que a Suprema Corte aceitou apreciar o caso, batizado Paul Robert Cohen v. Califórnia. Nimmer percebeu que não entrar em “detalhes”, conforme pedira o juiz Burger, receoso de escutar linguagem tão crua no seu tribunal, era simplesmente abdicar de entrar no cerne da questão. Estava certo.

Por cinco votos a quatro, a Suprema Corte revogou a condenação de Cohen por entender que ela violava a Primeira Emenda (“O Congresso não fará lei… restringindo a liberdade de expressão ou de imprensa”) da Constituição americana. Entendeu a maioria simples dos juízes que Cohen não se envolvera num “tumulto” ou praticara “conduta ofensiva”. O que estava em jogo não era o palavrão na jaqueta e sim o pronunciamento político: Cohen tão somente exercera o direito constitucional de se manifestar. No caso, contra o alistamento compulsório de compatriotas para combater no Vietnã.

Democracia não é apenas o governo de uma maioria

Paul Robert Cohen v. Califórnia é apenas um dos 88 processos abordados por Anthony Lewis em um livro altamente instrutivo que acabei de ler: Freedom for the thought we hate – A biography of the First Amendment (Liberdade para o pensamento que odiamos – Uma biografia da Primeira Emenda, publicado pela Basic Books, de Nova York, em 2007). Lewis foi colunista da página de Opinião do New York Times entre 1969 e 2001. Ganhou o Pulitzer em 1955 e 1963, ambos pela cobertura de casos na Suprema Corte. Ele faleceu em março último, na antevéspera de completar 86 anos.

O objetivo do jornalista em Freedom for the thought we hate era mostrar como o entendimento do que é liberdade de expressão e de imprensa foi se alterando nos EUA desde 1791, quando se fez a Primeira Emenda à Constituição. Embora haja a percepção de que desde então tais direitos tenham sido absolutos, em parte porque eles de fato são mais amplos lá do que em qualquer outro país do mundo, Lewis mostra que, dependendo da maré política, homens e mulheres foram presos por criticar o governo, um de seus representantes ou uma de suas medidas, sobretudo em tempos de guerra ou de paranoia anticomunista. Paul Robert Cohen quase cumpriu pena por isso.

Ainda que aos trancos e barrancos, sendo o mais grave o assalto da administração George W. Bush aos direitos individuais em nome da “guerra ao terror” e o mais recente a espionagem da agência de notícias Associated Press pela administração Barack Obama, os EUA têm bastante mais experiência democrática do que o Brasil. No correr dos séculos, o seu tribunal mais importante precisou entender que democracia não é apenas o governo de uma maioria, mas também a garantia de que essa maioria não se transforme numa ditadura contra as minorias (uma ideia que a muitos brasileiros soa aberrante). É essa concepção que permite a alguém nos EUA dizer, como aliás frequentemente é dito, que o presidente Obama merece ser assassinado – desde que tal opinião não represente “perigo real e imediato” de Obama ser assassinado.

“Liberdade para o pensamento que odiamos”

Lewis não era um corporativista, no sentido de achar que os jornais tinham razão em todos os processos envolvendo a liberdade de imprensa. No entanto, ele registra que a Suprema Corte consistentemente tem decidido a favor do direito de informar quando este entra em confronto, por exemplo, com o direito à privacidade ou com o direito a um julgamento desapaixonado. Entende o tribunal americano que, malgrado os erros e exageros do sensacionalismo, qualquer restrição ao estabelecido na Primeira Emenda do país abriria uma caixa de Pandora repleta de possíveis violações das liberdades civis.

O juiz que escreveu a sentença do processo Cohen v. Califórnia, John Marshall Harlan, assinalou: “O direito constitucional da livre expressão é um remédio poderoso em uma sociedade tão diversa e populosa como a nossa. Ele foi concebido na intenção de eliminar restrições governamentais à arena de discussões públicas (…). Que o ar às vezes possa parecer cheio de cacofonia verbal é, nesse sentido, não um sinal de fraqueza, mas de força.” Ou, como sintetizou em outra ocasião um de seus pares, Oliver Wendell Holmes Jr, há que se garantir “liberdade para o pensamento que odiamos”. Defender liberdade para o pensamento que amamos, e só para ele, é mole.

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Arthur Dapieve é colunista do Globo