Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

São eles, somos nós

Na Turquia e no Egito, são eles. Na Grécia, na Síria e na Tunísia, idem. A Espanha tem visto com frequência suas ações reivindicatórias. França também. No Brasil, são eles. Em São Paulo, no Rio, em Florianópolis e Fortaleza. São eles, os jovens. Com diferentes pautas e operações de mobilização, são eles. A crise econômica da aldeia global, os não ajustes dos mercados e a incapacidade de o neoliberalismo produzir acessos têm feito os jovens irem para a rua. Em todos os sentidos, para a rua. Mas há um deles bastante indesejável, a mobilização. São eles.

São eles os que querem a esperança a todo curso, anseiam com urgência não apenas a redução da tarifa do transporte, mas (o pouco de) liberdade que o próprio modelo econômico diz garantir. O capitalismo tardio apresenta o mote de que os mercados resolveriam os desvios de percurso da produção e das disparidades sociais desde que o Estado restasse mínimo, regulando pouco, deixando a corda frouxa para a integração de blocos econômicos com livre trânsito de capital, mercadoria e pessoas. A promessa de um sem-fronteira incluía o dinheiro ter seus escoamentos com maior facilidade.

Mais ainda, desde que ele pudesse produzir mais dinheiro, adubando e nutrindo-se de investimento cuja mobilidade depende de um clique para ser transportado de um continente a outro. Capital transnacional, livre, leve, solto e forte. Ao Estado resta(ria) o trabalho de fortalecer-se apenas na função de controlar a segurança, assegurar a ordem e reprimir o político quando ele irrompe de modo indesejável, de aparar as pontas de resistência dos descontentes e de arrancar os brotos vivos de mobilizações populares. São eles. Talvez nem eles mesmos saibam exatamente as novas configurações do capitalismo financeiro, mas percebem que algo não vai bem, que o pão anda pouco e a liberdade pequena. São eles a antena parabólica da contemporaneidade.

A didatização da violência

Dito de modo rasteiro, o que se configura é o dragão da truculência de Estado, o uso da força bruta para esmagar o desconforto que o próprio sistema econômico cria, engendra e produz como sinais de sua própria contradição. Por isso, é preciso limpar a Paulista, epicentro econômico mais poderoso da América pobre, para que os negócios continuem a ser fechados, a Bolsa não caia, a “liberdade” de imprensa seja garantida e a ordem vigente vigore. Há que se indagar: de que ordem se trata? E, para além de abominar os mecanismos de repressão e violência da Polícia Militar diante de jovens gritando o mantra da conquista democrática no país “o povo unido jamais será vencido” e clamando “Violência não”, há que se questionar alguns pontos para além de obviedades: a que custo tal ordem tem sido mantida para os trabalhadores no país? Quanto custa impedir que a rua, a praça e a avenida sejam realmente do povo? A quem serve a violência de Estado? Como se aborda a esperança quando jovens são impedidos de cantar, de protestar, de interromper o transito acomodado pelas submissões que nos calam aos poucos? E quando são espancados violentamente, presos e submetidos à violência da ameaça e da tortura pela instituição que deveria protegê-los?

A resposta do mercado vem rapidamente pela boca de autoridades: porque a tarifa subiu menos do que o esperado. Esperado por quem? Subiu pouco para que setor? Ora, não se trata apenas disso. Por que deveríamos coadunar com a explicação sobre o aumento de tarifas, impostos, taxas de inflação, e outros nomes do economês de plantão? Por que aceitar calado o troco roubado que o neoliberalismo nos devolve sem protestar? São eles. Com palavras, flores, pedras e facas. Com o grito rouco, com as pernas trêmulas e assustadas, com os braços dados, com as mãos estudantis erguidas… São eles de joelhos diante dos soldados armados e blindados até as tripas…

No sábado (15/6), a fotografia de capa da Folha de S.Paulo estampa tal assimetria. São eles no palco público para dizer, com sua presença esperançosamente escandalosa, o que se denomina no discurso jornalístico como “vandalismo, depredação do patrimônio público, guerra, confronto de horror”. O que assusta, mas não tanto se considerarmos a nossa longa narrativa como país, é o modo como se denomina os que se organizam politicamente, os que se postam contra e se mobilizam a produzir fendas na ordem vigente: são falados como criminosos. E a tropa de choque com caminhões, cavalaria, helicóptero, viaturas e todo o aparato que lhe cabe, escancarou isso em rede nacional e internacional (afinal as empresas de comunicação são trans), mostrando, em detalhes, táticas, manobras e estratégias de ocupação de um território tratado como se fosse apenas do Estado e não daqueles que ele representa. A didatização da violência e da repressão contou ainda com indicadores quantitativos do “sucesso” da operação, já que o número de presos encaminhados a delegacias foi grande, e os de feridos ainda maior. Diga-se de passagem, muitos foram presos antes que a mobilização tivesse início. São eles. Fogo neles.

A nossa voz

Os “bandidos” de plantão quebram os vidros da estação Trianon do metrô, sujam a rua e deixam um “rastro de destruição” por onde passam, o riso da jornalista é nervoso, talvez enigma até para ela. As entrevistas se somam com transeuntes denominados “trabalhadores” da região, que se dizem “ameaçados” e não especificam se diante dos manifestantes ou dos policiais, mas a jornalista não pôde ouvir a opacidade desse dizer. Afirma algo como “se fossem trabalhadores, não seria assim”. São eles, os jovens. São estudantes trabalhadores, porque profissão maior não há. São eles cuja voz não foi divulgada por nenhum telejornal; nenhuma reportagem ao vivo quis saber quanto modifica a vida deles o aumento da tarifa, quanto lhes falta o emprego digno, como é duro viver de bicos e de bolsas, o que anseiam para si e para o país. São eles, a maioria jovens universitários cuja emoção, dinamismo e intensidade turbilhonaram momentos importantes de luta pela liberdade e pela democracia no Brasil e no mundo.

São eles, os jovens que fomos, e o que ainda somos ao dizer não. Não, não e não. Não queremos pagar caro para andar como gado em ônibus lotados e desconfortáveis, não é justo que nosso salário seja atualizado com tarifa desigual àquela garantida a serviços quaisquer que sejam, não nos cabe ser tratados como criminosos por um sistema sem espaço para nos acolher com nossa voz, não aceitamos a violência de Estado. Não, não e não. Não admitimos nossa fala interrompida e nosso labor pisoteado no asfalto, asfalto este em que servimos para trabalhar como mão-de-obra. Não roubem a nossa voz porque dela não abrimos mão. Não, não e não. São eles, os jovens. Somos nós.

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Lucília Maria Sousa Romão é professora livre-docente da Universidade de São Paulo