A manchete da Folha de S.Paulo de sexta-feira (14/6) traz uma clara mudança de tom em relação à da véspera: “Polícia reage com violência e SP vive noite de caos”. Parece que o aliado de ontem virou o algoz de hoje, sem dúvida porque muitos jornalistas foram covardemente atacados e presos, alguns com ferimentos graves, entre eles uma repórter da própria Folha. Também não há dúvidas que o apoio popular se dilatou em São Paulo e que a truculência policial atingiu as raias do absurdo, ao partir pra cima e jogar bombas quando os manifestantes gritavam “sem violência”, cena que pode ser vista em vídeo já viral.
A reação do governo municipal e estadual de manter as tarifas no auge dos confrontos de ontem ajuda a mudar a percepção sobre quem é de fato o grupo intransigente e que não aceita negociar. Haddad resume tudo aos excessos passionais da turba desenfreada e adota um economicismo vulgar ao insistir na alteração das tarifas com valores que considera “bastante inferiores” à inflação, esquecendo-se que de 2004 para cá a passagem teve aumento percentual de 458,3%, enquanto o salário mínimo subiu 260% no mesmo período. Alckmin segue com sua defesa do “pluralismo democrático” do “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”, e lança mão de um perigoso discurso belicoso, que fica mais virulento conforme crescem o apoio popular e a visibilidade internacional. De ambos, nenhuma palavra sobre o comportamento das polícias.
Enquanto isso, no Rio, o Globo está de arrepiar, pegando tão ou mais pesado que as edições de anteriores. O discurso contra o vandalismo das depredações continua o mesmo, só não deu pra apagar a escalada de violência contra os jornalistas. Em vista dos acontecimentos, o despreparo da polícia paulista ganhou mais cores. Embora voz isolada no jornal, a coluna de Elio Gaspari chega a reconhecer que o batalhão de choque iniciou o confronto quando a paz reinava, mas conclui afirmando que “foi uma cena típica de um conflito de canibais com os antropófagos”. E, no meio de uma guerra insana, quem perde com isso? Os motoristas de carro, os usuários de metrô e ônibus, que não podem se deslocar livremente pela cidade e são exaustivamente entrevistados com suas reclamações sobre o fluxo em mais de meia página das quatro dedicadas pelo jornal ao tema. Novamente, todos os manifestantes que são ouvidos já estão detidos e algemados, antes de dar sua versão, e se repete o perfil do entrevistado, sempre estudante classe média/alta militante em partidos de extrema esquerda. Mesmo isso não ocupa mais do que alguns parágrafos de apenas uma das reportagens. Nenhuma imagem de cima da multidão de três mil manifestantes no Rio (nem dos doze mil em São Paulo) foi registrada pelo famoso Globocop.
Massa de manobra
Ao contrário de antes, a truculência da polícia está na vitrine, mas ela tem uma dupla face. Se serve para fiscalizar o abuso da força, também serve para mostrar que os tais “vândalos” já estão prostrados, de joelhos, se não rendidos, pelo menos virtualmente vencidos, em suas ilusões de “um mundo melhor”, essa coisa que no Brasil soa como utopia revolucionária. Segue uma página sobre os eventos do Rio, onde o “protesto termina com ataque ao Palácio Tiradentes”, pichações à estátua de nosso grande mártir – pena que o povo não sabe como aquela estátua foi parar ali –, e o lamento de um deputado diante do ato bárbaro cometido contra “um prédio que conta um pouco da história do nosso país”.
Tal cobertura insidiosa do protesto parece mais, na verdade, um inventário das baixas contra o patrimônio público e às vitrines dos bancos, com a usual despreocupação em mostrar a coerência na escolha dos alvos: edificações que simbolizam o Estado e o capitalismo, identificados pelo povo como fontes de opressão, tal qual se deu e continua se dando em todos os grandes movimentos sociais desde a revolução francesa. Segue-se mais gritaria sobre o fechamento do comércio, embora até agora não tenha havido qualquer notícia de saques e pilhagens. Na semana em que o trânsito se tornou uma entidade tão invisível quanto o mercado, as vias da Presidente Vargas e da Rio Branco foram protegidas pelos policiais contra um movimento “integrado por funkeiros, militantes com bandeiras do PSOL e PSTU, e membros dos movimentos dos sem teto”. A impressão de esquerda festiva é reforçada com a referência a cartazes que diziam “Cabral, seu sem vergonha, a passagem está mais cara que a maconha”. Um jovem que diz estudar em Ipanema e ter chegado à manifestação de skate para não pagar o preço abusivo da passagem completa a matéria sobre o protesto em si.
Como era de se esperar, o destaque dado aos abusos contra jornalistas têm espaço desmesurado. Para falar das agressões a cinco jornalistas, em meio a uma multidão de doze mil em São Paulo, o jornal reservou duas de suas cinco fotos e cerca de meia página de texto. Só esqueceram de combinar com a equipe da Globonews, onde na véspera ouvi de uma repórter cobrindo os eventos de São Paulo que, “em meio a tanta gente, é natural que a polícia não saiba distinguir jornalistas de manifestantes”. Mas tamanho teatro ilusionista não teria credibilidade suficiente sem a tradicional consulta ao conhecimento certificado dos especialistas. E a escolhida é Angela Randolpho Paiva, que em argumento constrangedor para qualquer um que se diz acadêmico e sociólogo, acusa o movimento “de recusar o diálogo e preferir o confronto”, o que ela confessa não conseguir entender “afinal, não estamos mais vivendo numa ditadura”. Sua análise meticulosa pode ser vista nas comparações que faz do movimento com Tempos Modernos, em que Carlitos “tenta devolver uma bandeira vermelha caída no chão para o motorista de um caminhão, mas um grupo de trabalhadores, ao vê-lo, passa a caminhar atrás, fazendo-o liderar involuntariamente o protesto”. Temos uma socióloga e professora doutora chamando o povo de massa de manobra e, sem querer, fazendo coro com Sérgio Cabral, certo de que “essas manifestações estão tendo um caráter, um ar político que não é espontâneo da população”.
O enquadramento midiático
A chave de ouro ficou com a disposição das matérias, que vai do protesto popular contra o aumento das passagens ao protesto dos ruralistas contra as demarcações de terras indígenas, como se se tratasse de coisas mais próximas do que distantes. O elo é simples: ao contrário da baderna do primeiro, estes homens de bem resolveram usar tratores nas paralisações que farão em rodovias estaduais e federais de todo o país. A ideia é “mostrar à sociedade a insegurança jurídica vivida no campo”, sem travar totalmente o trânsito. Estes entusiastas do jogo democrático exibirão cartazes com o slogan “onde tem Justiça, tem espaço para todos”.
Não sei aonde o movimento das passagens vai nos levar. Mas sei que ele cresce muito mais pela resposta repressiva de um Estado parecido com o turco, que não consegue perceber e acolher demandas sociais legítimas de sua população, no que é fortemente respaldado por uma sociedade elitista e conservadora. Sei, ainda, que estamos diante de algo com mensagem e dimensão sem precedente, ao menos na história recente deste país. Tudo indica que está longe de acabar hoje ou amanhã. Resta-me um alento que é também uma certeza. Se ao final o movimento suceder, parecerá, no nível micro, apenas uma contenção provisória de aumento das tarifas. No macro, entretanto, não é arriscado dizer que podemos esperar uma mudança no enquadramento midiático da esfera pública.
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Alexandre de Paiva Rio Camargo é historiador e doutorando em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ