Brasil, país sem segurança, seja social ou policial, país sem ética no cotidiano. País fundado na violência dos massacres contra índios, negros e pobres por elites que, ascendendo ao poder, reafirmam valores oligárquicos que já portavam, ou, senão, traem promessas de mudanças sociais. País violento nos afetos, que sequer tem regras ou pudores institucionais para impedir, em seu Parlamento, a ascensão de uma comissão de Direitos Humanos cujos integrantes, em sua maioria, são racistas, xenófobos e homofóbicos. País que nunca puniu seus torturadores e ditadores, todos brindados com a sorte de uma boa morte. E, sobretudo ao que aqui mais nos interessa, país sem democratização dos meios de comunicação.
Discursos legitimadores da violência institucional pululam na mídia, que há pelos menos quatro décadas destina espaço público (público, é bom lembrar sempre aos opositores da regulamentação da mídia) a apresentadores que fazem personagens como o deputado-apresentador Fortunato (Tropa de Elite 2) parecer um garoto ingênuo.
A democratização dos meios de comunicação e a regulamentação da mídia (que existe na Inglaterra, em Portugal e mesmo nos EUA, em diferentes níveis), aqui é tratada como atentado à liberdade de expressão, e protelada, senão mesmo abandonada, pelo governo. Regularizar rádios e televisões comunitárias foi mais uma bandeira das muitas que o PT antes tremulava, mas deixou, deliberadamente, que escapasse ao acaso. Liberdade para quem, além dos que detêm o controle empresarial e estatal dos meios?
Com raríssimas exceções – e entre elas estão a revista CartaCapital e o jornal O Povo, de Fortaleza –, a mídia tem se comportando de maneira camaleônica desde o início das manifestações. De início, a mídia de longo alcance não hesitou em se colocar ao lado (ou melhor, atrás) das barreiras policias e tachar de “vândalos”. Aqui há perigo: os vândalos foram povo guerreiro de origem germânica que, entre os sécs. V e VI, dominaram boa parte do antigo Império Romano e se estabeleceram no Norte da África e em ilhas do Mediterrâneo, dominando a região por cerca de um século. Durante um período considerável foram, portanto, vencedores.
“Fascismo social”
Em escala regional, a reação inicial da mídia se reproduziu. Na primeira grande manifestação que resultou em conflito em Fortaleza, dia 19 de junho, quase uma semana depois de iniciadas as revoltas do Sul, as afiliadas locais da TVs Globo e Bandeirantes no Ceará, sem exibirem uma cena sequer de manifestante agredindo a polícia, veicularam discurso legitimando a violência policial. Não por acaso, as duas emissoras são as que transmitem os jogos da Copa das Confederações, evento da Fifa, privado, mas que já consumiu 30 bilhões de reais do Estado, ou mais de 10 bilhões de euros. Parece que não assistiram à cobertura nacional dos dias anteriores, com a Globo, a Folha de S.Paulo, o Estado de S.Paulo e apresentadores e comentaristas gaguejantes, como Arnaldo Jabor e Luiz Datena, tendo que, despudoradamente, mudar a opinião inicial, alinhada à polícia e minimizando os anseios coletivos aflorados neste junho de 2013.
Brava foi a postura do jornal O Povo, na edição de 20 de junho. Em completa sintonia com o momento histórico da transição de mentalidade e conscientização coletiva da “coisa pública” e, ainda mais com o jornalismo moderno e ético, O Povo adotou postura incisiva na condenação e reprimenda à violência do Estado. Foi um alento em meio à cobertura um tanto insípida da maioria dos meios de comunicação locais.
Entretanto, os media não são os únicos claudicantes diante dos acontecimentos.
Políticos truculentos vieram a tona defendendo a ação policial. O fizeram bem à vontade, pois contam com a conivência da própria mídia e dos políticos outrora “progressistas”, hoje morgados no poder, mas cuja presença é mal vista nos manifestos (ver “O campo de jogo agora é outro“), por mais que nem todos compartilhem das mazelas atuais e que muitos tenham um passado de luta e resistência (a propósito, ver Plínio Bortoloti, “Ao jovem manifestante“). Políticos, inclusive de centro-esquerda, muitos castristas e guevaristas no passado, hoje convertidos a seitas religiosas carismáticas que negam a liberdade de gestão do corpo aos gays, ou às mulheres, barrando a legalização do aborto, ou a discussão sobre regulação e liberação de drogas leves, ainda que tenham se cercado de usuários de algumas delas nas passeatas do passado, onde, jovens e rebeldes, estavam do lado dos manifestantes.
Perplexos e atordoados, mídia, analistas e poder institucionalizado tiveram a velocidade de um George W. Bush diante do 11 de Setembro e do furacão Katrina para compreenderem que o que está em questão é o “fascismo social” (Boaventura Santos) presente há algum tempo nas políticas publicas brasileiras. “Contrariamente ao fascismo político, o fascismo social é pluralista, coexiste facilmente com o Estado democrático, e o seu espaço-tempo privilegiado, em vez de ser nacional, é simultaneamente local e global” [Boaventura Santos, em A Gramática do Tempo: Por uma nova cultura politica, Porto, Edições Afrontamento, página 180].
A racionalidade da prática governamental
Pois não é outra a postura que os sucessivos governos têm adotado sistematicamente contra a população desde a redemocratização, desmantelando ou pouco avançando no sistema de saúde, na educação pública (sobretudo a de nível médio, onde boa qualidade é monopólio das escolas privadas). O braço estatal de imposição do fascismo social diante das resistências populares é o cacete da polícia.
Em 2012, no artigo “Brasil, meu inimigo“, logo após o conflito por moradia no Pinheirinho, em São Paulo, expressei:
“O fascismo social é um tipo de regime no qual predomina a lógica dos mercados financeiros em detrimento de grandes setores das populações, gradativamente distanciados e excluídos do campo de direitos sociais adquiridos nas últimas décadas. O risco, alerta Santos, é o da ingovernabilidade. Presente ao Fórum Social de Porto Alegre quando da expulsão dos moradores do Pinheirinho, Santos, ainda que não referisse diretamente ao seu próprio conceito, demonstrou como o ‘fascismo social’ é presente na sociedade brasileira e reafirmou a necessidade de se contrapor a ações como aquela que, com o aval do Estado, beneficia setores dominantes e opressores em detrimento do bem público e social. O caso do Pinheirinho é grave e preocupante e alinha-se a outros acontecimentos recentes de violência estatal. Entre outros, estão a carga da Polícia Militar contra estudantes em São Paulo (USP) e contra professores cearenses, ambos em 2011. Vale lembrar que, já neste ano, a Polícia Militar foi autorizada pelos governos do Espírito Santo, do Piauí e de Pernambuco a carregar contra estudantes, em protestos contra reajustes do transporte coletivo.”
Neste pós-ditadura, o Brasil pouco melhorou no que diz respeito às decisões transparentes e à condução aberta dos negócios de Estado. Um risco à democracia, sem dúvida, mas um reflexo da ação de políticos de toda matiz que adotaram, em maior (FHC) ou menor (PT) medida aquilo que Foucault chamou de “governamentabilidade” neoliberal, onde “a questão da razão governamental critica vai girar em torno de como não governar demais. Não é ao abuso de soberania que se vai objetar; é ao excesso do governo. É comparativamente ao excesso do governo, ou em todo caso a delimitação do que seria excessivo para um governo, que se vai medir a racionalidade da prática governamental” [ Michel Foucault, em Nascimento da Biopolítica. Curso dado no Collège de France (1978-1979). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo, Martins Fontes, página 18].
Entre ausentes
As manifestações atuais trazem tamanhos imbricamentos que não basta circunscrever a análise no âmbito da comunicação social. Não é difícil compreender porque a presença massiva nos protestos é composta por estudantes do ensino médio e, sobretudo, da universidade pública. Num país onde ricos, classe média e pobres são separados pelo acesso a serviços de qualidade na Saúde, no Transporte, na Segurança e na Educação, qualidade pautada pela capacidade financeira familiar de arcar ou não com custos privados diante da quase omissão do Estado, a Universidade acabou sendo o último espaço público onde as diferenças se encontram e convivem com maior frequência e intensidade. Isso se deve também a alterações dos últimos anos (cotas raciais, Exame Nacional de Ensino Médio, acesso a financiamento para ingressar nas privadas, como o Prouni) que possibilitam aos mais pobres maiores chances de ingresso tantos nas universidade públicas como privadas – o que não é o mesmo que dizer que eles sejam maioria. Estudantes de classe média e os ricos têm, assim, contato com os mais pobres na universidade, e se dão conta de que a falta de transporte público, de segurança, de educação, de moradia, de terra e de saúde gera violência que afeta a todos, senão igualmente, pelo menos em termos de comprometer perspectivas futuras. Parece estar a se criar uma nova “consciência de classe” entre os estudantes, potencializada pelos compartilhamentos nas redes sociais onde o “virtual” passa à materialidade, nas ruas.
O que embasbaca aos media e à política convencional, nas manifestações, mais que a repulsa aos partidos políticos, é a ausência quase absoluta da “sociedade civil organizada”, de lideranças religiosas, sindicais, de ONGs. Em Fortaleza, dia 19 de Junho, na manifestação que coincidiu com o Brasil x México, havia jovens com cartazes dizendo “#vem pra rua cristão” (sic), bem como jovens com camisetas de mensagem evangélicas, jovens com camisetas estampadas com Bob Esponja junto a punks, gays, “burgueses”, miseráveis. Aos arautos do retorno do fascismo político, e aos políticos de esquerda que evocam fantasmas golpistas, opõe-se tamanha vontade de convivência da diversidade. Mas ainda não se aventuraram a aparecer nas linhas de frente dos movimentos sacerdotes, sindicalistas, expoentes do “terceiro setor”, demonstrando a complexidade do que está se passando no Brasil, da vontade e busca pelo novo em todos os campos de relação e organização.
Na manifestação do dia 20 de junho, quando oito mil estudante foram às ruas de Fortaleza, houve notícia de que adolescentes foram presos durante o protesto (ver aqui). Nesse dia, as principais reivindicações eram antecipar entrega de carteiras de estudante e reduzir o preço da passagem de ônibus urbano. De novo, sem presença de qualquer tipo de liderança, ainda que não partidária. Talvez seja hora de resgatarmos a figura dos antigos “notáveis”, ao menos para protegermos os jovens da “apreensão”, eufemismo para detenção. Pois se partidos são mal vistos, onde estão a OAB, a Central Única das Favelas (Cufa), as igrejas, os sindicatos de professores, as comissões de Direitos Humanos? Estes e outros antigos atores sociais que não necessariamente sofrem repulsa da massa que hoje sai às ruas estão ausentes, enquanto entidades da sociedade civil organizada.
“Sem vandalismo, sem vandalismo”
O que os mantém afastados pode ser a assimilação acrítica de alguns pelo aparelho governamental. Isso ficou claro na greve dos professores universitários de 2012, a mais longa da história da categoria, com a categoria dividida mesmo na representação sindical, com dois grandes sindicatos (Proinfes, alinhado ao governo, e Andes, oposição) disputando a hegemonia do movimento. Daí talvez os professores e intelectuais comparecerem aos manifestos individualmente, e não em coletivo. Mas também o meio acadêmico pode exemplificar outro temor que explica a tibiez. Depois das contestações às políticas públicas, o que virá? As contestações às práticas corporativistas? Por exemplo, às obsoletas e praticamente intocáveis seleções para ingresso de pós-graduandos e novos professores. “Saber é poder”, e compartilhar o espaço acadêmico é compartilhar poder, o que causa arrepio aos pseudodiscursos de interdisciplinaridade, particularmente no campo das Humanas.
No dia seguinte, 21, ocorreu em Fortaleza a terceira manifestação seguida, mas, dessa vez, com diferenças significativas. Se o governador Cid Gomes e o prefeito Roberto Cláudio (ambos do PSB) no mesmo dia receberam para conversar os criadores do movimento “+Pão-Circo: Copa para quem?”, que convocou as manifestações anteriores, terminando com violência policial, dois outros movimentos inicialmente convocados pelas redes sociais saíram às ruas no dia 21, um chamando a protestar por mais Educação e outro por mais Saúde. Na manifestação de maior contingente (a do “Operação Educação 10”), foi importante o carisma de Isa Carla, a jovem estudante de 18 anos que criou o perfil no Facebook. Mas predominou, de maneira positiva, do início ao fim, a ação de manifestantes experimentados que, embora não se identificassem pessoalmente com partidos, demonstravam estilo tipicamente orgânico de organização e condução do movimento, particularmente o do PSOL (dissidência do PT).
Provavelmente temiam hostilidades como vem ocorrendo país afora, e não se identificavam como membros do PSOL, mas sua presença foi importante em vários aspectos: enquanto a manifestação não chegou ao destino final (a sede da Prefeitura, no centro da cidade), jovens que habitam bairros pobres no entorno do Centro Cultural Dragão do Mar (ponto de partida da manifestação), foram contidos em gestos de agitação, sobretudo soltando potentes bombas típicas de festas juninas. A cada estouro, a passeata parava e os autores dos disparos de bombas eram chamados de “palhaço, palhaço”, ou “sem vandalismo, sem vandalismo”.
Mudanças necessárias, mas tardias
A presença dos militantes garantiu uma certa logística que, por exemplo, contava até mesmo com batedores em motocicletas para fechar o transito antes que a massa chegasse a determinados cruzamentos, diante da incompetência do órgão municipal de trânsito em dar conta de fazê-lo. Foram duas horas e meia de caminhada pela Praia de Iracema e avenida Beira-Mar, com direito a parada em frente ao hotel onde está hospedada a seleção da Espanha para o jogo deste sábado contra a Nigéria, no estádio local, onde a multidão gritou em “jogral” (outra típica manifestação organizativa de entidades estudantis e de esquerda) que nada ali era contra eles e sim por melhorias no país, seguido do hino nacional cantado por todos. Policiais presentes, somente seis PMs do Batalhão de Turismo que se perfilaram na escada de entrada do hotel, sem provocações de lado a lado.
Cabe destacar também que talvez militantes de partidos de esquerda estejam aprendendo como inserir-se e dar maior sentido aos movimentos espontâneos. Talvez daí surjam novos rumos quanto à atuação prioritariamente estatal e institucional à qual se limitam e aos seus discursos (como faz também o PSTU), e assimilem maior horizontalidade nas suas estruturas decisórias. De Portugal vem um exemplo importante: em Coimbra, o Bloco de Esquerda (partido oriundo de dissidências do PS e do PC) tem integrado movimentos que pretendem disputar as eleições municipais, abrindo mão de saírem do Bloco os candidatos do topo da lista (lá os sistemas são parlamentaristas, do governo central ao municipal). Na Espanha, o movimento 25-M (alusão à manifestação de 25 de março de 2012) se organiza visando a disputar cargos eletivos. O que virá disso não se sabe, mas sem dúvida será algo mais socialmente consistente do que o movimento Cinco Estrelas, do ator e humorista Beppe Grilo, na Itália, hoje terceira força no Parlamento em Roma.
A questão é se Dilma Rousseff e o PT (que hoje tem a pecha de “Partido Traidor”) também mudam e entendem as ruas e se as palavras da presidenta, proferidas em rede nacional no dia 21, demasiado tardias, se concretizarão em mudanças necessárias, muitas já tardias (o Público, da Espanha, e o Carta Maior trouxeram análise interessante nesse sentido, também de Boaventura Santos, atento ao que se passa no Brasil; ver aqui).
Balas para todos
Ainda no dia 21, em Fortaleza, os manifestações por mais Educação se encontraram com os que pediam mais Saúde e se dirigiram às obras do Aquário que o governo do estado esta implantando ao custo anunciado superior a R$ 200 milhões. Lá houve uma dispersão e um grupo (estimado em 10 mil pessoas pela Guarda Municipal) foi para a Prefeitura, a menos de um quilômetro do Aquário. Nele seguiram os jovens que volta e meia soltavam bombas durante o percurso mais longo. Com a cavalaria da PM perfilada em frente à Prefeitura, às primeiras pedras que os mais exaltados arremessaram, a mesma reação violenta por parte da PM em todo canto: balas de borracha e gás lacrimogênio para dispersar a multidão.
Incrível como um movimento de matizes diferentes conseguiu, com argumentos, conter e mesmo coabitar no mesmo espaço com jovens mais revoltados durante duas horas e meia de caminhada, mas a PM segue demonstrando a mínima intenção de fazê-lo, atingindo, com seus excessos, todos os presentes e conquistando maior antipatia para si e para os governantes e maior apoio aos protestos. Cabe refletir se é mera reação da PM ou estratégia para também, quem sabe, a corporação desgastar o governo (PM e governo tiveram embate sério na greve de polícias entre dezembro de 2012 e janeiro de 2013). O governo, por sua vez, não emitiu nenhuma ordem expressa para que os excessos sejam evitados e as provocações de grupos isolados sejam minimizadas, apesar dos atos graves de quarta, 19, no dia do jogo da seleção brasileira em Fortaleza, e de a PM ter carregado contra jovens estudantes na manifestação do dia 20 em frente ao palácio do governo.
Mas cabe, sobretudo, refletir sobre a caracterização, pelos mídia e por alguns jornalistas, dos jovens que são apressadamente chamados de “vândalos”, “delinquentes”, “massa de manobra de preparadores de golpe”. Pelo que pude perceber nas duas manifestações às que compareci (dias 19 e 21), são grupos integrados por amigos que habitam os mesmos bairros, não por acaso os bairros mais pobres próximos às áreas do conflito. Agitados e violentos, sim, como são violentas as condições de vida a que estão sujeitados.
São, portanto, os mais negativamente afetados pelas deficiências do serviço público brasileiro que estão elencados nos protestos. Marginalizados e oprimidos, alijados dos equipamentos de convivência social, mal vistos nos espaços clean dos shopping-centers, mais próximos do mundo do tráfico do que do da escola. Mas convivem com os jovens de classe média nas (raras) pistas de skate públicas, nas danças de rua ou no mundo do surfe, por exemplo. Os jovens brasileiros, de diferentes classes sociais, hoje compartilham códigos, nas ruas, na internet. Também eles não estão passando por um novo exercício de sociabilidade e convivência, criando novas e inéditas formas de organização coletiva imperceptíveis ao discurso governamental duro e ao discurso formatado e normalizador da mídia.
Portanto, há muito o que observar, dentro ou fora da mídia, acerca do que ocorre no Brasil hoje.
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Túlio Muniz é historiador e jornalista