O primeiro passo para entender os protestos que pipocam no país, iniciados pelo aumento da passagem dos transportes coletivos em São Paulo, seria ter a consciência da nossa própria condição de cidadãos despreparados. Despreparados não apenas na forma de realizar protestos ou na forma de contê-los, se é que isso é necessário, mas despreparados na forma de entender o que é cidadania e como ela acontece. No sentido ateniense do termo, cidadania é o direito da pessoa participar das decisões nos destinos da cidade. Resumidamente, a pessoa torna-se cidadão quando modifica ou intervém na realidade em que vive.
Tomando como base esse conceito, é importante analisarmos que uma simples passeata pode não intervir na realidade em que se vive, mas pode ser o resultado de uma mudança de atitude ou, quem sabe, uma perspectiva de que é possível, sim, originar uma participação nas decisões e nos destinos de nossa cidade, de nosso país.
O que estamos vivenciando já ultrapassou o sentido dos 20 centavos de diferença. A onda está maior e são notórios os vínculos que estão se formando em várias cidades, que sequer possuem tabelamento de preço em transporte público. Esses vínculos estão se fortalecendo não apenas pelo consenso de que algo está errado na violência da repressão promovida pela força policial, seja ela moral ou física, mas também de que mais errada ainda é a violência promovida por aqueles que se infiltram nas passeatas para conturbar ou por aqueles que ainda não compreenderam que a incoerência ideológica e a baderna não podem trazer algo bom. Mas, mesmo que seja notório esse crescimento, também é notória a sensação de que podíamos mais. E para os profissionais da comunicação, essa sensação deveria servir para repensarmos o papel da comunicação no processo do alcance da cidadania.
Como encarar o momento histórico?
Ora, se a comunicação é entendida (ou deveria ser) como uma esfera de participação e de construção onde os cidadãos debatem o que suas atitudes podem trazer de melhoria para a qualidade da vida pública e da política em si, ela também é uma ferramenta para proporcionar aos cidadãos informações sobre suas obrigações e suas tarefas. Assim, também este deveria ser o papel dos veículos de comunicação, principalmente os chamados veículos de massa, com grande penetração e presença na sociedade. Mas o que vemos nestes últimos dias, é uma série de matérias recheadas de sangue, de adjetivos, de opiniões de “especialistas” que pouco entendem da condição humana e que preferem espremer diante de nossos olhos e ouvidos os casos de barbárie cometidas por ambos os “lados”, porém que formam uma mesma moeda. Somos bombardeados de efeitos, sem, contudo, debatermos as causas, as propostas, as possibilidades de tirarmos algo de aprendizado de tudo isso.
Não encontramos propagados nos veículos de comunicação quaisquer análises mais profundas deste momento, não vemos pesquisas sobre o perfil das pessoas que estão nas ruas, não são passados comparativos com protestos semelhantes ao redor do mundo, não vemos suítes sobre o impacto social que estas manifestações podem causar, enfim, não percebemos a imprensa apta a ir além, sair do senso comum e buscar outras vertentes e outras visões da realidade.
Porém, é bom ressaltar que essa aptidão parece ter mais a ver com vontade (ou interesse). Isso porque alguns veículos já demonstraram a capacidade de mobilização e de investigação, porém em outro assunto, também bem comum atualmente: o futebol. Neste campo, aí sim, encontram-se e criam-se variadas nuances e enormes pesquisas de público, possibilidades e impactos. Afinal, hoje temos mais informações sobre a quantidade de passes de futebol entre dois jogadores do que sobre a renda ou idade dos manifestantes. Não se trata de uma crítica, mas de mostrar um exemplo claro de como deve ser o exercício da comunicação e de como deveríamos estar preparados para encarar este momento histórico. Ou seria melhor dizer dispostos?
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Clara Marcília de Sousa Pinheiro é jornalista/assessora de Comunicação