Multidões nas ruas não me impressionam: o nazismo levou o povo alemão em peso às praças e avenidas de Berlim e grandes cidades germânicas nas décadas de 1930 e 1940, iconografia que pude estudar nos filmes de Leni Riefenstahl durante minha tese de doutorado (“Telejornalismo: estética do engodo”, PUC-SP, 1994). O que se vê agora no Brasil são estudantes classe média (coadjuvados por seus pais) expressando difusamente sua revolta diante de um aumento insignificante (para eles) na passagem de ônibus (como já lembrou alguém: um reajuste de 8 reais no mês, que corresponde a três refrigerantes, cuja suspensão comprometerá o investimento em creches, hospitais e moradias populares), e de quebra protestando contra tudo, como sonham há anos os jornalistas-tuiteiros: criminalidade, corrupção, gastos com as Copas e as Olimpíadas, PEC 37. Nem uma palavra contra os militares de 64 e os torturadores ainda impunes. Ao contrário, alguns se autointitulam “filhos da Revolução” (?!).
Essa “geração canguru” (fica na casa dos pais até se casar, o que pode significar até os 40 anos porque é careta, despolitizada, consumista e de baixa libido: parece que sua carga hormonal é substituída pela adrenalina, que eles aplicam na preferência por filmes de ação, esportes radicais ou em torcidas de MMA – o que explica os casos de vandalismo) deve estar alegrando os velhos milicos da ditadura, pois rejeitam todo tipo de político e de partidos: nenhum deles presta, portanto o Congresso Nacional poderia muito bem ser fechado.
Alguém precisa avisar a essa moçada, que barbariza nas redes sociais Renan Calheiros e o pastor Feliciano, que ambos foram legitimamente eleitos pelo voto. Também me oponho enfaticamente aos dois, mas respeito o voto de quem os elegeu. Não é o que ocorre com quem quer impor sua vontade no grito. E essa geração Facebook, intolerante e exibicionista como ela só, muito chegada a festas, fotos e face e mimada pelos pais, não costuma considerar isso. A eleição de um corrupto para presidir a Câmara é um dos riscos da democracia representativa. Há que se deixar de votar nos responsáveis por isto. Mas é preciso acatar o direito de Feliciano dizer besteira e combatê-lo politicamente, e não pretender simplesmente que meu voto tenha mais valor do que o voto de quem o elegeu: “Não concordo com uma palavra do que você diz, mas defenderei até a morte o direito de dizê-las” (é a máxima voltaireana aplicada inclusive aqui no OI).
Golpismo de classe média
No Rio o buraco foi mais embaixo. Porque os cariocas são os cidadãos mais vaidosos do país e estão com a autoestima abalada, entre outras coisas, pela interdição do Engenhão, pelo “estupro” simbólico do Maracanã e pelo estupro literal da turista americana. Encheram as ruas para resgatar sua imagem de “cidade maravilhosa” perdida, em busca dos holofotes internacionais, já que a Copa das Confederações garante visibilidade mundial.
Atrapalhar (o que já ocorre com a Copa das Confederações) ou até cancelar a Copa do Mundo é o preço que o país poderá pagar por essa garotada desorientada, parte da qual mobilizada por tuiteiros (alguns têm milhares de seguidores. Só o Mauro César Pereira botou 35 mil nas ruas. Ele só não contava com eles cantarem: “eu sou brasileiro/ com muito orgulho/ com muito amoor”).
Porque, não se iludam, o povão não caminhou ao lado desses coxinhas. Lembram-se do 1º de maio, dia do trabalhador? No mundo inteiro, em crise braba, teve passeata, e no Brasil de baixo desemprego e salários reajustados acima da inflação, só shows de comemoração da data? Lá tinha povo. Lembram do comício das Diretas Já? Um milhão de pessoas, lá tinha povo. Nessas manifestações de agora, há vândalos entre a garotada universitária (77%, segundo o Datafolha). Não deixa de ser uma ameaça de golpismo de classe média, uma demonstração de força de uma classe específica.
Futuro imprevisível
Tão cândido o apoio de Tostão, concordando com um manifestante, de que trocava o sistema educacional do Japão pela vitória do Brasil contra o país. Primeiro, que o Japão é do tamanho de Goiás. Depois, o sistema educacional do Japão é tão opressivo que até crianças se suicidam quando não vão bem nos estudos. Conclusão: o Índice de Desenvolvimento Humano não mede o índice de felicidade de uma sociedade.
Acho legítimo protestar, reivindicar, ir às ruas. Acho fascismo se impor ao direito de ir e vir dos outros, hostilizar imprensa e partidos, tentar impedir a realização de eventos internacionais aos quais, acredito, a maioria do povo brasileiro, se consultado, se diria orgulhoso de abrigar. Se houve corrupção, cabe ao Poder Público apurar e punir. Tem razão o manifestante democrático que apelou para o humor, ao exibir o seguinte cartaz, em Vitória, ES: “Não adianta vir como um leão ao movimento se na eleição você vota como um jumento”.
A imprensa internacional diz que o futuro destes movimentos sociais (que, insisto, têm caráter classista) é imprevisível, mas arrisco um palpite: o povão adorou a redução de tarifas conquistadas no grito pelos fascistas de Facebook (por mais que a mídia interesseira doure a pílula, nesses jovens tecnófilos não cabe o rótulo de “idealistas”) e na próxima vez que os poderes públicos, seja quem for que estiver no comando, tentarem aumentar as passagens, os trabalhadores vão engrossar as passeatas de classe média e o país se tornará bem difícil de governar.
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Silvia Chiabai é jornalista