São inúmeros os contrassensos acerca das manifestações em oposição ao aumento das tarifas do transporte público na cidade de São Paulo. Os envolvidos – manifestantes, imprensa, cidadãos, poder público e polícia – sofrem de paradoxos que transparecem o quão incrustado é o problema; e, à mesma medida, suas possíveis convergências. É claro que nas entrelinhas figura uma aspiração muito além de reduzir o valor da passagem de R$ 3,20 para R$ 3,00: o interesse mútuo é fazer uso de um transporte público que atenda às necessidades básicas de locomoção numa megalópole como São Paulo – sem apertos dilacerantes e opções que supram os principais trajetos da população. Insatisfação mais do que concreta, claro.
A questão do preço, porém, é apenas o pontapé primeiro – uma vez que ao ganhar apoio popular o tema suscita outros debates muitos mais complexos e abstratos. Para citar baixo, entre as manifestações de ontem existiam pechinchas para saúde, educação, saneamento e coisas na toada do “Fora, Dilma”.
É interessante que o aporte popular floresça e mantenha corpo para discutir outras pelejas, com envolvimento do cidadão comum e com posicionamentos que busquem debater a vida numa cidade deste porte. No entanto, as novas ordens sugeridas viram produtos, estabelecem relações de pertencimento, com o indivíduo se sentindo inserido por estar protestando e propagando o que é este suposto ativismo. Por isso, a participação de partidos políticos na marcha é mais do que perniciosa e, se articulada nesta esfera, tende a direcionar a massa a interesses singulares, desvirtuando o movimento – ainda que na marcha de segunda-feira (17/6) muitos tenham rechaçado a participação de representantes políticos no ato.
Indignação guardada
Outra insígnia clara é que mesmo que o MPL (Movimento Passe Livre) se esforce internamente para manter o tom pacífico da marcha e defenda uma demanda extremamente fidedigna, o grupo não tem braço nem responsabilidade para frear os ânimos dos muitos participantes que se exaltam diante da chamada “violência” no preço da tarifa e das pressões policiais. Isto, pois, só fortalece uma simbologia pouco democrática do manifesto.
Existe ainda a participação do indivíduo comum que, mesmo não compreendendo em alguns aspectos as entrelinhas do que está sendo discutido, sente cotidianamente o mal-estar de viver na metrópole – vendo-se obrigado a tomar partido. Não à toa, alguns participantes colocaram abaixo o portão do Palácio dos Bandeirantes nesta madrugada, ainda que polícia, mídia e governo tenham tomado tons condescendentes em relação à marcha.
O cenário, sublinhe-se, dados os conflitos de interesse, não poderia ser outro: muitas pessoas se envolvendo pela primeira vez num movimento popular em prol de interesses plural – e, em tal esfera, estimulados por um imperativo eufórico de externar a indignação por muito guardada, muitas vezes incompreendida, todavia, sempre sentida. Por isso, quando impactado pela violência policial, este cidadão tende a se rebelar e a destruir o que encontra pela frente. Ontem, por exemplo, algumas estações do metrô tiveram seus vidros quebrados, simplesmente por estarem fechadas, ainda que a verossimilhança pacifista fosse a regra.
Truculência prevista
Pouco se disse, porém, que entre estes muitos envolvidos há pessoas que um sem número de vezes foram repreendidas em periferias paulistanas, presenciaram – ou vivenciaram – abuso e truculência policial de formas distintas e se veem num momento de “dar o troco” às tantas agruras suportadas. Para este onisciente coletivo, o patrimônio público é a representação do Estado e, por isso, voltar-se contra ele é sinônimo de formalizar tal indignação. Ainda que na esfera do inaceitável, é uma ferocidade ao menos compreensível – e não colocada em pauta em nenhum momento.
Este que você agora lê e muitos outros tiveram demonstrações em caráter empírico na última quinta-feira (13/6), em meio ao confronto, tentando burlar a fumaça das bombas de efeito moral na rua da Consolação e acompanhando o posicionamento brusco e desmedido da polícia com intuito de frear a marcha – o que torna generalizado o engodo da revolta ao ver pessoas sendo violentadas. Daí emerge uma conta de matemática infantil, quando representantes de um Estado dito democrático reprimem, abusam, embrutecem o tom de forma mordaz, e a sensação de mal-estar e o desejo de revanche ecoam como uma corrente de vento.
A série de equívocos só pode ser farta quando se vê por este óculo. Fato é que o MPL precisa de mais pessoas, do envolvimento popular, ampliando assim a visibilidades do movimento; o que, no entanto, tende a exacerbar os níveis de violência durante os protestos, se a toada seguir neste ritmo e a polícia não tiver seus antolhos retirados.
Caso de polícia
Antolhos, pois, como muitas instituições públicas, a Polícia Militar permanece cega e serve como linha de frente de um problema aparentemente irrisório para governo e prefeitura – haja vista a agenda francesa dos respectivos representantes destes órgãos. Se a manifestação ocorresse sem o quebra-pau, a ação seria fruto de uma articulação profícua da Secretaria de Segurança Pública, com louros que aparecem no discurso; dado a perda de controle, na mão contrária, a culpa leva o nome da própria corporação.
Despreparada, educada sob a cultura da repressão e da corrupção e com salários parcos, a policia segue empurrada numa ação cujo resultado pouco ela entende. Retrato de uma síndrome de pequeno poder, de uma sensação de pertencimento e outros estigmas demasiados humanos que tendem a inviabilizar uma ação madura.
Espanca manifestantes, repreende quem não está nem mesmo envolvido com os protestos e faz uso da força numa espécie de troco às condições lamentáveis e ofegantes que sua própria realidade impõe. É notório que a ordem, independente do desenrolar do protesto da semana passada, era repreender sem filtro algum; obedecendo a um imperativo muito distante do discurso democrático e verborrágico que reverbera em discursos de políticos e de jornais condescendentes com o status quo. É como se o caos anunciado abrisse espaço para que todo o descaso com a polícia, por parte do Estado, fosse vingado com bombas e borrachadas dedicadas ao MPL – o que foi minimizado na manifestação desta segunda-feira, já que a opinião pública e a imprensa internacional questionam a postura incongruente.
Chutar cachorro morto
Outro detalhe mantido no obscurantismo foi o posicionamento conservador e retrógado da grande imprensa – que somente resolveu abrir mão de criminalizar o movimento e adotou eufemismos para tratá-lo quando muitos jornalistas foram agredidos na última semana. Juízos de valor e posicionamentos engessados, posturas que deveriam causar urticária em qualquer profissional de mídia, foram discorridos à cara larga – a exemplo de manchetes como “Maior e mais violento protesto contra o aumento das tarifas de ônibus”, publicada no jornal O Estado de São Paulo.
Ainda que se propague o argumento de que as redes sociais possibilitam a aparição do que é “real”, é no discurso da grande mídia que muitos cidadãos se pautam para entender o que ocorre. Por isso, fica a imagem fascista de que os manifestantes cometem única e exclusivamente danos ao patrimônio público – e que a causa em si não tinha respaldo algum para entrar em pauta.
Por isso, o esperado era, no mínimo, uma cobertura menos parcial e mais humana por parte dos jornais, embasada na clássica métrica de um cáustico jornalista do século 19 de que a função da imprensa é “confortar os aflitos e afligir os confortáveis” – desnudando a tragédia dos menos favorecidos e expondo as benesses desfrutadas pelos mais providos. Não foi o que se viu, todavia.
Fato é que, ainda que as manobras contra o movimento se exasperem de forma reacionária, o MPL ganhou corpo e parece abrir precedentes para um comportamento mais incisivo por parte da população paulistana – e brasileira – quanto às necessidades coletivas. Todo o arcabouço do manifesto, ainda que tenha linhas de 20 centavos, está muito mais para a adoção de um posicionamento crítico do que para a redução da tarifa.
E para isso, indiscutivelmente, o cidadão comum deve contribuir. Parafraseando Gramsci, é ele, o elemento popular, quem sente, mas nem sempre compreende ou sabe; enquanto o elemento intelectual sabe, mas nem sempre compreende e, menos ainda, sente. “O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado.”
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Dênis Matos é graduado em Comunicação Social