Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Para onde corre o mar

Não há dúvidas de que os grupos mais diversos que se manifestam têm em comum o sentimento, não exatamente a visão de mundo. Um sentimento, aliás, que está desencadeando algo belo e surpreendente: a ocupação das ruas no meio de um torneio esportivo nacional, às vésperas do mundial. O sentimento de revolta é um grande combustível. Faz a coragem correr nas veias a ponto de sairmos do Facebook com a intuição certeira de que mudanças reais acontecem em espaços concretos. Não basta compartilhar na web, quem precisa de compartilhamentos – e muitos – é o mundo real, e grandes conquistas se dão nas ruas – com a pressão dos movimentos sociais –, não exatamente nas urnas.

Mas o sentimento também é perigoso quando não aliado a ideias, reflexão, visão de mundo. Por dois motivos que ainda tento entender melhor. Porque pode perder a força com o tempo, esgotar-se pela frustração de não se ver convertido num plano de exigências sólido – ou, e esse é um grande medo – pode ser usado por grupos oportunistas, conservadores, prontos para oferecer soluções fáceis e perigosas para abrandar a multidão. A História existe para mostrar o quanto coisas terríveis podem surgir de manifestações bem intencionadas. Guardadas as (gigantescas) proporções, foi um clima de indignação geral na Alemanha que levou Hitler ao poder. Não é impossível que ao se colocar como alvo da manifestação simplesmente o PT (renuncie Dilma, renuncie Dilma) ou o PSDB (fora Alckmin, fora Alckmin), grupos conservadores como o do Feliciano ganhem força. Por isso defendo que o foco deve ser as estruturas perversas que existem na raiz do sistema e estão sendo, sim, perpetuadas pelo atual governo.

É a hora ideal para colocar como plano de exigências coisas à altura do sentimento de insatisfação geral: reforma agrária, reforma previdenciária (anulando, por exemplo, o perverso fator previdenciário), reforma tributária, educacional, reformas estruturais, com apresentação e discussão de planos, projetos, fixação de prazos e, para pressionar o Estado, ameaças de greves gerais.

O que estou vendo por toda parte é um movimento muito bonito, mas que impacta mais pelo poder estético da multidão em marcha do que por uma proposta de mudança forte e profunda (tomara que ainda venha, lutemos por isso). Vamos para as ruas? Claro. Mas vamos buscar entender por que estamos indo para as ruas, o que queremos indo para as ruas. Senão teremos duas vias possíveis para esse mar de gente: virar tsunami ou morrer na praia.

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Eduardo Sabino é jornalista, Nova Lima, MG