Todos nós estamos acompanhando atônitos, pela mídia nacional, sem que nenhum analista consiga explicar, a movimentação política apartidária que tem acontecido nas últimas semanas no Brasil [G1 Política, “Está difícil de entender, diz Gilberto Carvalho sobre manifestações“; G1, Agência EFE, “‘Geração 64’ elogia manifestações, mas alerta para falta de objetivos“]. Parece que a Nova Era [Tribuna de Minas, “A Igreja Diante da New Age“, 26/09/2012], o futuro, que muitos (as) esperavam começou (de novo) por esses dias. Quando um grupo de descontentes jovens eclodiu pelas ruas, feito gota d’água que cai do balde que transborda as insatisfações, os medos, a raiva e a indignação, fomentando em muitos(as) o desejo (reprimido) por transcendência. Sim, transcendência!
Ao ultrapassar os limites do balde, estrategicamente colocado, a gota trouxe consigo o desconforto, pois o dano foi certo, visto que o recurso paliativo – o balde – fora colocado ali apenas para conter a goteira, fruto do vazamento, verdadeiro problema a ser transcendido. O desconforto causado pelo transbordamento do balde fez com que tivéssemos que sair da zona de conforto [Folha de S.Paulo, “Descolados criam movimento antiviolência em São Paulo“, 14/06/2013] passando à de confronto. Então se atualizaram as capacidades cidadãs de transcendência, para alguns bastante empoeiradas e para muitos jamais utilizadas, e caminhamos daqui para ali, de lá para cá, gritando, a quem pudesse ouvir – quem sabe os representantes do povo, os governantes, tão desacreditados – e o próprio povo: o balde transbordou!
O uso da acupuntura
Enquanto a água cai onde não devia provocando estrago [UOL, “Veja como começou o fogo no carro da Record“; G1 Mundo, “Protestos contra aumento das passagens abalam São Paulo e Rio“, 14/06/2013], caso contrário o preciso uso do instrumento – o balde – não se justificaria, longe dos holofotes e flashes, muitas das causas pelas quais se lutam, a partir do transbordamento da referida gota, são perdidas, fato que aumenta o estrago potencial salientado pelo momento.
Foi assim que, em meio às manifestações cidadãs que clamam pela dignidade do Estado laico, manifesto pela liberdade de crença e consciência representada, por exemplo, por uma orientação sexual livre e não patologizada, que a homossexualidade, defendida pela Resolução CFP 01/99 e amparada por recomendações da OMS, voltou a ser discriminada como doença, com a aprovação do Projeto de Lei da “Cura Gay”, arquitetado pelos fundamentalistas evangélicos que hoje militam na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, comandada pelo pastor Marco Feliciano [Folha de S.Paulo, “Proposta sobre Cura Gay é aprovada em comissão presidida por Feliciano“, 18/06/2013].
Foi assim, também, neste momento histórico quando, de forma difusa se clama por mudanças, que o Supremo Tribunal Federal aceitou o recurso corporativista de uma dentre as 14 profissões da Saúde, a Medicina, para uso da acupuntura exclusivamente pela classe médica [STF, “Decisões Monocráticas“, RE 750384 19/06/2013, RE 753475, 14/06/2013]. Este recurso terapêutico reconhecido mundialmente como sendo multiprofissional pertencente à medicina tradicional chinesa, patrimônio da humanidade, não é redutível ao paradigma da biomedicina como foi aprovado pelo STF. Desta forma, restringiu-se também o direito universal à saúde, na medida em que o oferecimento do serviço torna-se restrito e seguramente menos abrangente.
Substituição do balde
Portanto, o que estamos vendo é a necessidade de reformar a casa para corrigir o problema dos encanamentos e da parte elétrica. Por isso, precisamos de encanadores e eletricistas que saibam transcender. Que consigam compreender que o que está em jogo, isso já se sabe, é muito mais do que um desconto de R$ 0,20 na passagem do transporte público [Estado de S.Paulo, “Protestos falam da disparidade de riqueza“, 19/06/2013].
Transcendência, condição inerente ao humano, indica o desejo e a capacidade de ultrapassar o limite, vencer as intempéries, as vicissitudes que acorrentam à normose, à hipocrisia, à alienação, também própria do humano, construída nos ambientes, profissionais, pessoais, religiosos, fraternais, políticos, ou seja, histórica e socialmente construído.
Penso que, assim como não é mais possível contratar uma empregada doméstica sem lhe pagar os justos direitos trabalhistas, nossa transcendência passa por deixarmos o modelo colonial e assumirmos que, se quisermos transcender o momento, precisaremos transcender a nós mesmos e “nos tornarmos a mudança que queremos promover”. Tornarmo-nos, portanto, os encanadores e eletricistas que gostaríamos de contratar, mas não encontramos.
Trata-se, portanto, de uma questão “transcendente de cidadania ecológica”. De uma ecologia profunda, entendendo o oikos grego como deve ser compreendido (família, casa, lar), portanto é preciso tornar-se um eletricista e encanador cidadão, imbricado na mudança que queremos promover. Na construção de um modelo econômico a serviço do humano, e não o contrário, como vivemos hoje – razão do vazamento [G1, BBC, “Protestos revelam pane do ‘milagre brasileiro’ revela Le Monde“]. Se assim não o fizermos, tudo que faremos será tão somente uma mera substituição do balde.
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Luiz Eduardo V. Berni é psicólogo, São Paulo, SP