O movimento que tem a redução do preço das passagens como principal bandeira, e que eclodiu ontem (17/6) em onze capitais brasileiras, surpreendeu governos e políticos, mas também deixou a imprensa brasileira perplexa. Apesar de todo o aparato de tecnologia e logística das emissoras de TV para a cobertura ao vivo – e da bravura de seus profissionais de campo –, os telejornais, no calor dos acontecimentos, não conseguiram fazer mais do que mostrar os fatos em sua superficialidade, limitando-se, na maioria das vezes, a descrever a imagem captada pelos cinegrafistas nas ruas ou pelo helicóptero de plantão. Faltou um pouco mais de profundidade, especialmente nos noticiários dos canais por assinatura. Faltou um olhar menos descritivo e mais crítico. Faltou coragem e ousadia para comentar o inusitado. Desconhecimento de causa? Despreparo para lidar com um assunto incomum e imprevisível na mesmice de uma realidade a que nos acostumamos?
Uma das análises mais interessantes foi feita por Merval Pereira, na cobertura da Globonews, que, entre outras coisas, citou Manuel Castells, teórico espanhol da comunicação, considerado hoje o “papa” das relações nas redes sociais – o mesmo Castells que há pouco mais de duas décadas pensava e escrevia sobre a questão urbana. A perplexidade generalizada parece ter atingido também os especialistas entrevistados em diferentes canais por assinatura, igualmente pegos de surpresa e talvez sem tempo de pensar direito sobre a causa principal do fenômeno, seus desdobramentos, conexões e consequências. Senti falta – e imagino que alguns telespectadores mais exigentes também – de ouvir uma opinião mais embasada de cientistas que pesquisam os movimentos sociais urbanos. Alguém que pudesse dar conta de responder às perguntas, além de fazê-las, em lugar dos jornalistas, que não sabiam o que perguntar.
Da tela para as ruas
Primeiro: por que justamente o aumento das passagens de ônibus causou tanta indignação, principalmente entre os jovens, quando o país tem problemas muito mais sérios que antes não serviram de motivação? A pergunta foi feita, mas a resposta, que era sempre uma só, parece ter deixado os repórteres satisfeitos: “Os jovens chegaram ao máximo de sua indignação e se organizaram nas redes sociais para ganhar as ruas e protestar contra o aumento das passagens.” Mas como esses jovens acordaram de repente e por que? O que causou esse “despertar coletivo” de modo tão inesperado? E a resposta: “As redes sociais permitiram maior comunicação entre eles e maior disseminação de informações.” Sim, os jovens ficaram bem informados e se politizaram de repente, ao sabor do vento? Acordaram, sem mais nem menos, para o aumento das passagens de ônibus em todo o país, inspirados por uma indignação generalizada que surgiu nos bate-papos de internet e foram às ruas gritar palavras de ordem, cartazes em punho, sem uma direção ou orientação?
Estranhamente, as redes sociais são apontadas como causa, e não como ferramenta revolucionária que permitiu a organização de um modelo de protesto totalmente diferente de tudo o que já se viu antes no país. A internet inaugura, sem dúvida, uma nova fase nos movimentos sociais urbanos (já vivenciada com mais intensidade em outros países) na maneira de exercer a cidadania, tornando-a mais interativa, mais conectada, mais organizada. Mas é uma ferramenta, um canal expresso de comunicação, que traz mudanças no comportamento, no formato, na logística, no modus operandi: mais entrosamento entre distâncias, mais rapidez e eficiência nas ações. Mas não é causa.
Interessante notar que houve uma transposição simbólica das formas de expressão das redes sociais para o asfalto, traduzida por frases de efeito que podiam ser lidas em milhares de cartazes de todos os tipos. Creio que nunca se viu tantos cartazes em uma manifestação por aqui, como se a ideia fosse reproduzir posts em movimento ou como se a rede de perfis virtuais saltasse da tela para as ruas, ratificando sua existência física.
Maturidade política
E a causa? É claro que a juventude de classe média brasileira não acordou sozinha. E não acordou de repente. A internet tornou o despertar mais rápido, sem dúvida. Mas existe uma esquerda resistente, que está representada nos pequenos partidos, que empunha a bandeira da ética e da transparência e que há muito tempo vem conquistando a juventude, usando a mesma linguagem e os mesmos meios que ela: a internet. Para essa esquerda, o importante não é assumir uma autoria do movimento, não é manipular, mas criar, fortalecer e legitimar uma oposição apartidária, capaz de produzir mudança. Dar asas à sociedade civil para que ela assuma seu papel transformador, a partir do ressurgimento do sentimento de brasilidade, da certeza de que os verdadeiros donos do país somos nós. Utópico, porém alcançável, principalmente em tempos de internet.
A juventude protagonista deste novo modelo de movimento social seria, por conseguinte, uma nova força de oposição em franco processo de construção de suas identidades e estratégias, que testa nas ruas e na web o alcance e o limite de seu poder de pressão. E que não quer ser massa de manobra, pois tem ideologia própria. Seria essa esquerda jovem emergente a força opositora que faltava à ex-querda de Dilma e aos outros partidos em fase de deterioração?
Essa nova esquerda não quer as cores desbotadas de uma política em descrédito. E sabe que, para ser legitimado, seu movimento de mudança precisa ser do povo, não de um partido ou facção política. Precisa ter apelo forte o suficiente para mobilizar a maioria, para trazer a população urbana às ruas. Precisa ter visibilidade no país e no mundo. Precisa ser organizada. E pacífica. Mas, precisava, antes e mais nada, de um bom motivo para despertar no resto da população o mesmo sentimento de inconformismo. O aumento das passagens de ônibus em todo país serviu exatamente a este propósito: um pretexto para convencer a comunidade civil, atrair outras categorias sociais das cidades mais importantes do Brasil e somar forças. A fome ou a corrupção, a que já estamos tão acostumados, não teria o mesmo efeito mobilizador. Não pesa no bolso de quem enfrenta engarrafamentos diários para voltar para casa, chegando quase na hora de ir trabalhar novamente no dia seguinte. Ponto para os estudantes, que nos surpreenderam com uma maturidade política inesperada, talvez usando para isso a maior arma branca de seu tempo: novamente a internet como ferramenta de organização.
Preparação de terreno
O período escolhido? Os jogos da Copa das Confederações. Mais um ponto para os organizadores do movimento. Além de um motivo de grande apelo popular, a realização dos protestos durante os jogos possibilitou maior visibilidade internacional. Foi oportunismo? Sim. Foi um movimento orquestrado? Sim. E a reboque do aumento das passagens vieram os protestos contra a corrupção, contra os gastos com grandes eventos esportivos, contra a PEC 37, contra o descaso dos governos com educação e saúde pública, e por aí vai…
Precisou o país ter dois grandes eventos internacionais para que o governo, enfim, pensasse em melhorar a mobilidade urbana, entre outras coisas? E o povo, não é merecedor de uma vida melhor nas cidades? Quer dizer, então, que toda a estrutura milionária montada para esses eventos e que se tornará herança dos brasileiros – argumento usado pelo governo para justificar os gastos exorbitantes e fazer seu marketing de ocasião – só existe para inglês ver? Se não fossem os grandes eventos, o povo continuaria a gastar horas para cruzar os grandes centros em transportes caros e lotados? A imprensa passou longe de cobrar respostas do governo, desperdiçando munição sobre os atrasos nas obras. A população foi às ruas e cobrou.
Mas o que querem os estudantes e a sociedade civil, que aderiu (e não lhe faltam motivos para isso) ao movimento? Encostar Dilma e seu frágil governo na parede? Desmascarar um governo que se sustenta por números artificiais e pela impunidade generalizada? Mostrar ao povo o que a imprensa deveria mostrar e não mostra? Levantar discussões sobre as quais o jornalismo brasileiro se omite, limitando-se a narrar fatos sem compromisso com a verdade? Vale observar que tudo começou com um boato sobre o fim do Bolsa Família. E a internet, mais uma vez, foi a ferramenta disseminadora. Ninguém ousou até agora ligar esse episódio a outros, mas para quem observa atentamente, os boatos sobre o fim do Bolsa Família podem ter sido a primeira tentativa de atingir o governo e forçar a popularidade de Dilma a cair. Uma espécie de preparação de terreno para o que viria depois: o protesto simultâneo do povo em várias capitais brasileiras.
Desacertos dos governos
Mais impressionante do que ver milhares de pessoas nas ruas, foi a reação dos governos. No Rio, o que chamou a atenção foi a omissão do poder público. O governo de São Paulo, visivelmente acuado, correu aos cofres para liberar mais verbas aos conglomerados que controlam o transporte de massa na capital, com intuito de garantir a melhoria dos serviços e calar a população. Ironicamente, o governo paulista apontou como solução o aumento das facilidades, investimentos e apoio para as empresas que monopolizam de forma descarada os meios de transportes, com lucros exorbitantes e propinas espetaculares, sem perceber que é justamente contra esse tipo de aliança indecente que o povo está gritando. Ou seja: dando mais do mesmo veneno ao povo paulista, aumentado o descontentamento. Esse fato não é, sequer, comentado pela imprensa. Ao contrário, é visto como coisa normal.
Governos de diferentes cidades anunciam hoje, às pressas, queda nos valores das passagens, cedendo às pressões em nome da manutenção da ordem alterada, mas não pelo compromisso com o povo que os elegeu. A semente da revolta, porém, já foi lançada e o povo já mediu seu poder de fogo. E o poder da imprensa de provocar mudanças, onde está? Foi substituído pela participação popular nas redes sociais?
O aumento das passagens foi apenas um pretexto para trazer à tona nas redes uma discussão mais aprofundada que até agora não aconteceu na mídia e que não vai acontecer enquanto os meios de comunicação continuarem a narrar os fatos sem o olhar crítico necessário em momentos como esse. Enquanto a juventude acorda, a imprensa, cujo papel é o de formar opinião, continua se vendendo aos interesses do empresariado que explora o povo, servindo aos governos que roubam impunes. As redes sociais preencheram definitivamente o espaço que a mídia oficial esqueceu de ocupar. É lá que estão acontecendo as discussões, as críticas às notícias equivocadas que os grandes grupos da comunicação veiculam, aos desacertos dos governos antes e depois dos fatos sociais mais recentes.
Desejo adormecido
Cientistas sociais, estudantes, donas-de-casa, professores, gente de todos os níveis socioculturais comenta e opina em um espaço livre que, também ironicamente, gera lucros estratosféricos a seus gestores, mas que se tornou mais democrático do que os veículos de imprensa, cujo papel maior seria o de dar voz ao povo.
Outro fato que chamou atenção para quem observou o que ocorreu simultaneamente em todos os estados, é que houve um padrão na movimentação das pessoas nas ruas, ao contrário do que foi comentado nas coberturas jornalísticas. Parece ter havido uma espécie de racha – que só fortaleceu o movimento principal, em vez de enfraquecê-lo – e os dissidentes foram vistos pela imprensa como um grupo acéfalo de baderneiros que se aproveitou das passeatas para barbarizar. Será? Em todas as cidades havia uma maioria que queria a manifestação pacífica e grupos menores mais radicais (punks? anarquistas?) que fizeram questão de se apropriar dos símbolos do poder (o Congresso, o Palácio Bandeirantes e a Alerj, entre outros) e deixar sua marca (de destruição). Esses grupos se desviaram do trajeto preestabelecido pelos organizadores (e da proposta) e tomaram um rumo paralelo, manobra que foi visivelmente se desencadeando em efeito cascata pelo país, a partir da tomada do teto do Congresso Nacional por um desses grupos, o que parece ter sido orquestrado também em outras cidades através das redes, contando com a facilidade da comunicação online. Grafitaram símbolos, atearam fogo em carros, mas a imprensa ignorou esses grupos enquanto movimento, talvez evitando dar a eles a notoriedade e autoria pretendida com as ações de vandalismo. Eles não representam a maioria, é fato. E provavelmente serão tomados como bodes expiatórios de políticos, na tentativa de dar suporte a teorias da conspiração e de engrossar munição para a troca de baixarias e acusações oportunistas entre partidos.
Diante de tudo isso, seria inocente demais considerar, como a imprensa fez parecer por não investigar os fatos a contento, que a massa adormecida e aparentemente apática de estudantes em todo o Brasil acordou sozinha e ao mesmo tempo. Mas até que existam ‘mentores políticos’ infiltrados nas escolas e na internet, fomentando à distância (ou mais de perto do que se imagina) a Revolta do Vinagre, como vem sendo chamado o movimento, mais uma vez são eles, os estudantes, que assumem um protagonismo corajoso que não era visto desde os Caras Pintadas da era Collor. Da vez anterior, houve uma associação assumida com partidos políticos. Agora, eles se declaram independentes. Se houve uma inspiração politico partidária não revelada, se mentes políticas mais experientes despertaram essa juventude que permaneceu inerte por duas décadas, deu a ela voz própria, a impulsionou a querer transformar o que está errado e a liderar multidões, ao menos conseguiram trazer de volta ao povo brasileiro um pouco de esperança. Fizeram reviver aquele desejo adormecido de mudança, experimentado pela última vez nas Diretas Já! e que se faz mais do que necessário hoje, depois de tanta impunidade.
A voz da juventude
Enquanto a imprensa, por falta de assunto, enfatiza o óbvio, repetindo que a organização dos manifestantes foi através das redes – pelo compartilhamento de informações e criação de tags – tomando a internet como causa e abrindo mão de ir em busca dos verdadeiros motivos que levaram a massa às ruas, perde a boa chance de fazer uma autocrítica, não percebendo que a mesma rede que está mudando as formas de fazer notícia, deixando os profissionais de imprensa e o mercado jornalístico sem saber como agir e como lucrar, também está transformando a maneira de a sociedade se expressar, colocando em xeque o modelo de imprensa praticado até hoje, enquanto abre caminho para que meros espectadores se transformem em atores sociais que empunham câmeras digitais e publicam suas próprias visões de realidade em blogs.
A imprensa que marcou sua estreia na internet com portais jornalísticos que prometiam uma revolução através do conteúdo, ao contrário, sofreu transformações tão profundas que não consegue mais prever impactos futuros a curto prazo. Não transformou a internet como preconizava. Foi (e está sendo) transformada por ela.
Hoje, a principal notícia que não foi dada pelos veículos da grande imprensa, aquela que todos nós gostaríamos de ver no dia seguinte a um fato tão marcante quanto o de ontem, está implícita nas redes sociais, nos milhares de fotos, vídeos e conversas de quem esteve lá ou viu pela TV: o Brasil acordou com a voz da juventude que o representa ecoando em seus ouvidos. A partir de agora, inaugura-se uma nova era para os movimentos sociais no país. Nesse contexto, a internet não é causa nem consequência. É meio. E apesar de ter o poder de incitar ou exacerbar os ânimos que motivam as ações, não pode determinar o desejo.
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Mehane Albuquerque Ribeiro é jornalista, Niterói, RJ