Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Aposentem os espiões

Pode-se ter uma opinião não muito boa do presidente Evo Morales, como é o meu caso, mas não se pode desconhecer que ele é o mandatário da Bolívia, um país soberano que o escolheu em eleições legítimas e, portanto, deve ser tratado pelos outros governos com o respeito devido ao seu cargo. Os países europeus que o maltrataram, impedindo que o seu avião cruzasse seu espaço aéreo ou reabastecesse, agiram de maneira prepotente e torpe. Além disso, fizeram-lhe um favor, presenteando-o com o papel de vítima, que será muito útil para ele perante os eleitores bolivianos neste momento em que, contrariamente à sua própria Constituição, quer se eleger pela terceira vez e, precisamente, estava caindo nas pesquisas.

O incidente é uma das consequências do “caso Snowden”, o funcionário da inteligência dos EUA que, segundo Áustria, Itália, Espanha, França e Portugal, estaria a bordo do avião de Evo Morales como passageiro não declarado. Não foi o que aconteceu, mas o que ficou evidente no episódio é que os serviços de inteligência da União Europeia e dos Estados Unidos, apesar dos seus excessos, deixam muito a desejar. Edward Snowden converteu-se no mais recente herói midiático da frivolidade progressista e de defensores tão notáveis da liberdade de expressão e do direito de crítica, assim como do presidentes Maduro, da Venezuela, do comandante Ortega da Nicarágua e do próprio Evo Morales, que se apressaram a oferecer-lhe asilo, e do presidente Correa, do Equador, cujo Parlamento acaba de aprovar a lei de imprensa mais ameaçadora da história da América do Sul.

Em que consiste o heroísmo de Snowden? Em ter rompido seu compromisso de confidencialidade que teria contraído com o Estado para o qual trabalhava, revelando ao mundo que a espionagem dos Estados Unidos grava conversações privadas dos cidadãos, violando desse modo a intimidade de milhões de famílias, não apenas americanas, mas também de países amigos, entre eles seus aliados da Europa Ocidental. É uma violação que, segundo seus defensores, o honra, pois esse menosprezo permitiu que fosse divulgada uma intolerável infração de privacidade, um direito reconhecido pela Constituição dos EUA e de todas as sociedades democráticas.

Dramatizar em nome de uma liberdade que pisoteiam

Considero essa argumentação (e a consequente indignação) ingênua, no melhor dos casos; no pior, hipócrita e desprovida de realidade. Acaso fizeram algo diferente os espiões, desde que existem, a não ser violar a intimidade de cidadãos de seus próprios países e dos países dos outros? É o que fazem nas ditaduras e nos países democráticos. A diferença é que nas ditaduras isso jamais é castigado e, às vezes, nas democracias, o é, nos casos pouco frequentes em que essas transgressões provocam um grande escândalo ou chegam aos tribunais e merecem uma sanção legal. Em virtude da repercussão do “caso Snowden”, o Congresso dos EUA nomeou uma comissão para investigar o fato.

A verdade é que o sr. Snowden revelou fatos que qualquer pessoa sensata já sabia, embora, certamente, poucos imaginassem a magnitude dessas gravações. Tais violações só eram menos significativas no passado porque não existia, então, uma tecnologia tão avançada no campo das comunicações como a que existe hoje. Esse progresso extraordinário colocou nas mãos das agências de informações um brinquedo muito perigoso, que não ameaça apenas os inimigos da democracia, como também a própria cultura da liberdade e suas instituições representativas.

Se o nosso desejo é que desapareçam todos os espiões, eu o confirmo.

Essa função só tem graça nas novelas e nos filmes; na realidade, é algo desonroso, que desonra por sua clandestinidade e porque atua irremediavelmente numa perigosa corda bamba que oscila entre a legalidade e a ilegalidade. Desgraçadamente, enquanto existirem as guerras, os perigos de guerras e um terrorismo religioso e ideológico que provoca diariamente os estragos que sabemos, será praticamente impossível que os Estados democráticos renunciem a uma atividade da qual poderiam depender em grande parte a segurança e políticas eficazes contra a repetição de tragédias como as das Torres Gêmeas ou da Estação de Atocha. Contrariamente ao que ocorre nas ditaduras, nas sociedades livres, como os EUA, existe uma Justiça independente, uma imprensa livre, um Congresso representativo e inúmeras associações de direitos humanos, que podem denunciar tais excessos e procurar corrigi-los. Por que Edward Snowden não optou por esse caminho legítimo, em vez de violentar por sua vez a legalidade e tornar-se um instrumento de regimes autoritários e totalitários que se valem dele para atacar o “imperialismo” e dramatizar em nome de uma liberdade e de uns direitos que eles pisoteiam sem o menor escrúpulo? Seu caso é muito semelhante ao de Julian Assange, que despreza a Justiça dos países democráticos e nega-se a responder às acusações que lhe são feitas por assédio e violação sexual, na Suécia, uma das democracias mais genuínas. O que ele planeja é prosseguir sua cruzada libertária desde o Equador, país onde exercer a mínima liberdade de expressão significa correr o risco de ser multado, preso ou expropriado, conforme denunciam hoje em dia todas as associações de jornalistas independentes do mundo.

Depredadores da liberdade que afirmam defender

O direito à privacidade já desapareceu faz tempo no mundo em que vivemos. Esse direito foi desmantelado, antes mesmo dos espiões, pela imprensa marrom e pelas revistas cor de rosa, pela ferocidade dos debates políticos que em sua ânsia de aniquilar o adversário não hesita em expor à luz suas intimidades mais secretas e a avidez de um público por invadir o âmbito do privado a fim de saciar sua curiosidade com segredos de alcova, escândalos de família, relações perigosas, intrigas, vícios, tudo aquilo que antigamente parecia vedado à exposição pública. Hoje, a fronteira entre o privado e o público se eclipsou e, embora existam leis que na aparência protegem a privacidade, poucas pessoas apelam para os tribunais para reclamá-la, porque sabem que as possibilidades de que os juízes lhes deem razão são escassas. Desse modo, embora por inércia continuemos utilizando a palavra escândalo, a realidade a esvaziou do seu conteúdo tradicional e da censura moral que implicava e passou a ser sinônimo de entretenimento legítimo.

Não tem muito sentido converter Edward Snowden em um herói da liberdade por ele ter revelado que não só as donas de casa, os profissionais e os burocratas violam diariamente a privacidade dos cidadãos lendo as revistas, ouvindo ou vendo no rádio e na televisão os programas criados especificamente para violá-la – a grande diversão midiática do nosso tempo – mas também os espiões. Acaso a desgraça de muitos deveria ser um consolo para os outros? De certo modo, sim. Nas pesquisas de opinião realizadas nos Estados Unidos sobre Edward Snowden, a maioria aprova que a inteligência americana grave as conversações privadas. Acho que não seria diferente a reação da opinião pública da grande maioria das sociedades democráticas que vivem, como os EUA, com a aflição de ser novamente vítimas dos atentados terroristas de organizações como a Al-Qaeda, empenhadas em acabar com o Grande Satã, categoria na qual incluem todas as democracias seculares de molde ocidental.

Indubitavelmente, existe o perigo de que essa realidade deteriore as instituições que alicerçam uma democracia. Mas ao mesmo tempo ela é deteriorada por operações midiáticas que deturpam a natureza do exercício da liberdade de expressão e a transformam numa libertinagem irresponsável. A liberdade e a legalidade são igualmente importantes para o funcionamento da democracia e exercer a liberdade contra a legalidade só se justifica em países onde a legalidade se opõe àquela, pois a limita ou a viola. Não é certo que em sociedades como os Estados Unidos ou a Suécia a legalidade se tenha degradado ao extremo de que, somente ao violá-la, seja possível exercer a liberdade. Edward Snowden e Julian Assange não são os paladinos, e sim, os depredadores da liberdade que afirmam defender.

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Mario Vargas Llosa é escritor, Nobel de Literatura