Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Crime sem castigo

O Brasil tem mais é que tentar envolver a ONU na luta pelas liberdades individuais, desrespeitadas pela espionagem em massa comandada pelos EUA. Mas tem chance quase zero de mobilizar a comunidade internacional para impedir – ou ao menos censurar – o programa de vigilância ilegal de cidadãos, empresas, governos e instituições no Brasil, na Europa e, aparentemente, em todos os países onde os americanos têm interesses políticos e econômicos.

A presidente Dilma anunciou que recorrerá ao Conselho de Direitos Humanos contra o grampo dos EUA em e-mails e comunicações pela internet mas, por ironia da história, foram justamente os americanos que patrocinaram uma resolução da ONU defendendo a liberdade na rede, inspirados pela importância da web no despertar da Primavera Árabe.

“Agora, parece irônico. Eles defenderam a liberdade na rede para melhor espionar”, diz um diplomata, entre o sério e o debochado.

Toda vez que a internet entra no foco da comunidade internacional, a conversa emperra. A defesa da liberdade na rede parece provocação com os países autoritários, tipo China, Rússia e Irã, mas a resolução passou por causa do peso dos EUA e aliados, Brasil no meio. Já a governança na internet, criação de regras no território anárquico da web, é sempre bloqueada pelos EUA. Traduzindo para o popular, a ideia em discussão na ONU é a de criar um órgão supranacional para evitar exatamente a espionagem, favorecida pelo fato de as grandes empresas digitais e seus servidores estarem em território americano. O debate não avançou, e ninguém pareceu se importar, nem o Conselho de Direitos Humanos, que prefere deixar este tema longe dos seus domínios em Genebra.

A outra agência da ONU a ser acionada pelo governo brasileiro – a União Internacional de Telefonia – não é exatamente ágil, mesmo considerando-se a lentidão habitual das instituições multilaterais. Está para comemorar 150 anos, foi criada para regulamentar o telégrafo – cabos submarinos, quem lembra? – promoveu uma grande reunião em Dubai no fim do ano passado, mas a anterior acontecera 24 anos antes. Encontros menores são realizados a cada dois anos, e o próximo está marcado para 2014, com uma pauta muito técnica- satélites, órbitas estacionárias – mas com cacife para mexer com muitos interesses econômicos. Mesmo que a espionagem entre no foco da agência e o Brasil consiga fazer valer seu peso no cenário internacional, não dá para imaginar uma reunião de emergência convocada para o próximo mês com o objetivo de enquadrar os Estados Unidos.

“O mal-estar é geral, mas até agora não chegou nenhuma orientação do Itamaraty”, repetem diplomatas brasileiros em Genebra.

Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Parece serem essas as palavras de ordem na diplomacia depois de o técnico Edward Snowden revelar que os EUA montaram uma monumental rede de vigilância ilegal no mundo. Antes de o governo Dilma ficar indignado com a bisbilhotice no Brasil, a União Europeia já cobrara explicações dos EUA pelo desrespeito às regras internacionais de convivência e ameaçara adiar as negociações do tratado de livre comércio até receber garantias dos americanos de que parariam de escutar as conversas dos aliados.

Mas mudaram de ideia, venceu o pragmatismo. Com a perspectiva de adicionar à economia dezenas de bilhões de dólares anuais, a UE começou segunda-feira – como estava previsto antes do escândalo – as conversações com os EUA sobre o megatratado comercial, enquanto uma comissão de funcionários menos graduados discutia os constrangimentos causados pela espionagem e era afastada a vice-diretora da UE, a mais veemente na condenação da espionagem. Para salvar as aparências, a União Europeia abriu uma investigação com o objetivo de comprovar a veracidade das informações sobre espionagem, já confirmadas até pelo presidente Barack Obama.

O mais rápido na censura aos EUA foi o Parlamento Europeu. Enquanto os britânicos defendiam a extradição de Snowden e os franceses lideravam o grupo dos revoltados, os eurodeputados aprovaram resoluções contra o sistema de espionagem e recomendações para proteger o autor de denúncias contra a violação de liberdades democráticas. Mas poucos países prestaram atenção e nenhum se arriscou a oferecer asilo ao ex-técnico da maior agência de segurança do mundo. Pior, os deputados descobriram que são impotentes até para cancelar o contrato com a empresa envolvida no grampo em massa – a californiana Cisco – que a partir deste verão controlará os telefones fixos e a internet de todo o Parlamento Europeu.

Nesse clima, ficará difícil de o Brasil arranjar aliados.

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Helena Celestino é colunista do Globo